O atual presidente de El Salvador, Nayib Bukele, conseguiu a reeleição com grande vantagem nas eleições presidenciais realizadas no domingo (4/2).
É muito provável que quem já ouviu falar de Bukele o associe a algumas destes fatos:
- Assim que venceu as eleições em El Salvador, em 2019, foi apelidado de "presidente millennial" por sua juventude, sua jaqueta de couro e seu boné virado para trás;
- X (antigo Twitter) é sua plataforma favorita para fazer anúncios;
- Ele colocou El Salvador no mapa político mundial por muito mais do que ser um dos países com mais homicídios no mundo.
Alguém que acompanha mais de perto a realidade de El Salvador também deve saber que:
- Bukele planejou um regime de emergência que está prestes a vigorar durante dois anos para combater as temidas e violentas gangues e, com isso, conseguiu pacificar o país;
- Ele construiu uma megaprisão para membros de gangues e fez disparar a taxa de encarceramento no país;
- Estas e outras políticas de segurança lhe renderam uma popularidade sem precedentes, mas também acusações de violações dos direitos humanos.
E provavelmente você também sabe que outros políticos em toda a América Latina o citam como exemplo, e que alguns até cunharam um termo para descrever sua fórmula: "Bukelismo".
Mas há aspectos menos conhecidos que ajudem a compreender de onde vem, quem é e como evoluiu o jovem político que — depois de voltar a concorrer à presidência com base em uma interpretação controversa da Constituição que proíbe a reeleição — está disparado nas urnas este ano, segundo a contagem parcial. Seu segundo mandato deve começar em junho.
1. Origem rica e influência de seu pai
Nascido em San Salvador em 24 de julho de 1981, Nayib Bukele, de 42 anos, cresceu em um bairro rico da capital.
É um dos 10 filhos de Armando Bukele Kattán, o mais velho dos quatro que ele teve com Olga Marina Ortez.
Bukele Kattán, descendente de uma família de imigrantes palestinos que chegou a El Salvador no início do século 20, construiu um variado consórcio empresarial, formado por empresas dos setores publicitário, têxtil, farmacêutico, de bebidas e automotivo.
Ele conquistou tudo, tal como os seus antepassados, superando preconceitos e obstáculos burocráticos, como o decreto que a Assembleia Legislativa aprovou em meados de 1930 e que proibia cidadãos árabes, palestinos, turcos e de outras ascendências de estabelecerem negócios mesmo que tivessem nacionalidade salvadorenha.
Já em 2014, a família contava com ativos avaliados em mais de US$ 18,4 milhões, segundo um balanço apresentado ao Registro Comercial citado pelo jornal digital salvadorenho El Faro.
Após sua morte em 2015, o patriarca Bukele distribuiu a riqueza e os negócios entre seus descendentes. Durante sua vida, ele matriculou Nayib e seus irmãos na privilegiada Escola Pan-Americana.
"É uma escola bilíngue de elite. Embora não seja a mais exclusiva do país, está reservada a um segmento socioeconômico elevado", diz Óscar Picardo, que foi professor na escola primária de Bukele, à BBC News Mundo (serviço em espanhol da BBC).
Acadêmico de destaque, especialista em educação social e atual diretor do Instituto de Ciências, Tecnologia e Pesquisa (ICTI) da Universidade Francisco Gavidia, Picardo foi professor de Nayib por dois anos consecutivos, na 7ª e 8ª série.
"Ele era um aluno mediano e um menino um pouco introvertido", lembra o pesquisador.
"Ele sempre andava com um grupo de amigos, muitos dos quais, já destacados na época, estão com ele no governo ou hoje ocupam cargos públicos", ressalta.
Ele se refere à ministra da Economia, María Luisa Hayem — "uma menina brilhante, muito destacada, com uma personalidade muito agradável" —, ao ministro do Meio Ambiente, Fernando López Larreynaga, ao ministro do Interior, Juan Carlos Bidegaín Hanania, e ao presidente da Comissão Executiva Portuária Autônoma (CEPA), Federico Anliker.
O professor diz não se lembrar de muitos traços do caráter do presidente eleito, mas se lembra de uma históra na qual se percebe a origem dos tweets mais provocativos de Bukele, agora presidente.
“Cada aluno, em seu anuário, escreveu algo que o definia, e ele se autodenominou 'o terrorista da turma' e abaixo disso uma frase que mais ou menos dizia: 'O sangue do aluno é como o do mártir', algo que soa um pouco jihadista", lembra Picardo.
"Ele fez isso de brincadeira, em tom de brincadeira, por causa de sua origem palestina e porque seu pai era uma autoridade muçulmana local", esclarece.
Embora seus ancestrais fossem cristãos, Bukele Kattán converteu-se ao Islã, fundou quatro mesquitas no país, incluindo a primeira em San Salvador, e serviu como imã.
Além dessa comunidade, foi um personagem visível na sociedade salvadorenha, e durante anos dirigiu um espaço de opinião televisivo chamado Clarifying Concepts. Também foi reconhecido pela academia como doutor em química industrial e autor de um livro sobre conceitos de física.
Nayib Bukele tem falado frequentemente sobre a influência que seu pai exerceu sobre ele.
"Para mim nunca houve homem melhor que o meu pai e as pessoas sabem disso", disse ele durante uma entrevista quando já era presidente.
"Acho que ele é o homem mais inteligente que o nosso país já deu à luz, e não só eu estou dizendo isso. Seus testes de QI de 157 dizem isso. Além disso, ele era um gênio, um homem de coragem, um homem que nunca na vida pegou um centavo ilícito, um cientista (...)”.
Os seguidores de Bukele dizem que foi "daí que nosso presidente herdou" sua inteligência.
Mas fontes consultadas pela BBC News Mundo dizem que tudo isso faz parte da mitologia que o presidente criou sobre si mesmo.
2. Um passado como publicitário, sua porta de entrada para a política
Por mais que seu pai o tenha influenciado, Nayib Bukele não seguiu seus passos acadêmicos.
Depois de terminar o Ensino Médio em 1999, ele estudou Ciências Jurídicas na Universidade Centroamericana José Simeón Cañas (UCA) por um período.
Embora não tenha concluído o curso, aos 18 anos ele começou a trabalhar na agência de publicidade da família, Obermet (1999-2006). Depois passou pelas agências Nölck Red América (2006-2010) e 4h Saatchi & Saatchi (2010-2012).
Foi justamente ali que ele entrou para a política e marcou, segundo seus críticos, todo o seu trabalho nesse novo campo.
Estas empresas foram responsáveis, durante 12 anos, pela propaganda política da esquerdista Frente Farabundo Martí de Libertação Nacional (FMLN), um dos dois partidos históricos do país, juntamente com a direita Arena.
E uma das suas primeiras atribuições foi a campanha publicitária da candidatura presidencial de Schafik Hándal, também de antepassados ??palestinos, em 2004.
"É um setor que Bukele conhece muito bem, no qual aprendeu muito e onde aprendeu sobre marketing político, e depois explorou toda essa capacidade em seus cargos públicos", explica o acadêmico e analista Picardo.
Na verdade, foi com a FMLN que ele assumiu seu primeiro cargo, o de prefeito de Nuevo Cuscatlán (2012-2015), município de cerca de 8 mil habitantes na periferia da capital.
Ele também esteve à frente do o governo municipal de San Salvador (2015-2018). Foram bons tempos para a FMLN, que governou o país entre 2009 e 2019.
Os críticos dizem que, embora durante a sua primeira campanha à presidência ele se apresentasse como um novato na política, com a sua estética de empreendedor tecnológico, na verdade ele já tinha anos de carreira no setor.
"Diz-se que estamos numa época em que os outsiders têm um papel maior na política, mas ele não é um deles. Ele vem das mesmas estruturas, de dentro do que ele chama de 'as mesmas esferas de sempre'", diz o analista político César Artiga à BBC Mundo.
"O seu trabalho como publicitário foi muito útil e essa é a chave (da sua política)", concorda José Miguel Cruz, que já dirigiu o Instituto Universitário de Opinião Pública (Iudop) da UCA.
"Essa é a sua habilidade: vender imagens, vender uma impressão, dizer às pessoas o que elas querem ouvir", acrescenta Cruz, que hoje atua como diretor de pesquisa do Centro Kimberly Green para a América Latina e o Caribe da Universidade Internacional da Flórida.
A sua forma preferida de se comunicar são as redes sociais, ferramenta que maneja perfeitamente, concordam os especialistas consultados,. Elas também lhe serviram, na ausência das estruturas e dos operadores políticos que os partidos tradicionais tinham, para transmitir a sua mensagem diretamente para milhares de pessoas.
3. Um político que 'não acredita em ideologias'
Em uma conversa informal transmitida ao vivo em uma dessas plataformas, o Instagram, em março de 2020, Bukele confessouao rapper René Pérez, mais conhecido como Residente: "Não acredito em ideologias".
A porto-riquenha acabava de lhe perguntar o que ela pensava sobre o aborto, prática ilegal em qualquer circunstância em El Salvador, onde mulheres que sofreram abortos espontâneos ou emergências obstétricas foram condenadas por homicídio a penas de até 40 anos.
E Bukele, antes de responder, explicou: "Há pessoas que, se têm uma ideologia de direita, têm um conceito de dogmas do qual não podem escapar porque são de direita; ou se é de esquerda e tem um conceito de dogmas dos quais não pode escapar porque é de esquerda. Como não pertenço a nenhum deles, vou lhe contar o que vem do meu coração."
Esclarecido isso, ele disse não ser a favor do aborto: "No futuro perceberemos que é um grande genocídio".
Porém, essa suposta falta de ideologia não foi algo sempre presente na sua carreira.
Houve um tempo em que ele se definia como "esquerda radical".
"Sou um esquerdista radical porque quero mudanças radicais em El Salvador, onde a 'lei da selva' não deveria mais prevalecer", respondeu ele ao jornalista Juan José Dalton em setembro de 2012, quando ainda era prefeito de Nuevo Cuscatlán.
Na ocasião, ele disse que alguns setores políticos não viam com olhos favoráveis a sua integração na FMLN, considerando-a um sinal de "gentrificação" da direção do partido.
"No mundo de hoje há conservadores e radicais: os conservadores não querem mudanças e os radicais, como eu, querem mudanças e sem esperar tanto tempo", disse, em uma espécie de declaração de intenções.
Nos dois anos seguintes, ele compartilhou diversas publicações no Twitter que mostravam afinidade com a esquerda.
São tuítes hoje deletados e recuperados pelo El Faro em um artigo em que Bukele, ainda prefeito, comentava a comemoração do nascimento de Ernesto "Che" Guevara, enviava condolências pela morte do líder cubano Fidel Castro e opinava sobre a esquerda no Chile.
Ele também publicou posts sobre a Nicarágua de Daniel Ortega — "O progresso na Nicarágua é visto em todos os lugares, não apenas na capital. É impressionante" – ou sobre a Venezuela do falecido Hugo Chávez.
No entanto, durante uma visita a Washington, um mês depois de ter vencido as eleições presidenciais de 3 de fevereiro de 2019, ele fez um discurso na Heritage Foundation, sede de uma das organizações mais conservadoras dos Estados Unidos, que conseguiu seduzir não só os governo do republicano Donald Trump, mas também os setores empresariais de El Salvador e a Arena, partido que até recentemente era seu forte rival.
Na ocasião, ele falou da importância da livre iniciativa, da intervenção limitada do Estado, disse que a China "não respeita das regras" e apontou para uma ruptura com a Nicarágua e a Venezuela.
"Foi um discurso completamente conservador, de direita, quase libertário, ao contrário do que ele sustentava até então", disse o acadêmico José Miguel Cruz à BBC News Mundo.
Ele evita dar entrevistas, mas conversou duas vezes com o comentarista político norte-americano Tucker Carlson, ícone da direita americana.
Na última vez, em novembro de 2022, ele defendeu o bitcoin, que passou a funcionar como recurso legal em El Salvador, e mencionou o projeto de construção da Cidade Bitcoin e os planos de mineração de criptomoedas utilizando a energia dos vulcões como iniciativas importantes para desenvolver o país e criar uma marca.
"Um relançamento da marca país que nos teria custado centenas de milhões de dólares. E agora [devido à criptomoeda] já não custa nada para nós", destacou ao jornalista.
"Ele sempre foi muito hábil em identificar o que os outros querem ouvir", explica o analista Cruz.
"E nesse sentido foi uma estratégia de comunicação muito hábil, não só com as massas, mas com as elites intelectuais e políticas do país. Ele chegou à FMLN com discurso de adesão plena e ficou lá até que isso lhe era conveniente. Quando não era mais, ele os deixou."
Metamorfose
Assim como Cruz, outros especialistas consultados pela BBC News Mundo também destacam a capacidade de Bukele de fazer uma leitura do ambiente político, compreender seu público e se adaptar a ele.
Ao lançar-se na sua primeira candidatura à presidência, ele estava perfeitamente consciente do cenário generalizado de desilusão.
Apenas alguns meses antes, o Latinobarómetro de 2018 tinha pintado um cenário sombrio: apenas 28% da população considerava a democracia importante e mais de 50% afirmava não se importar em viver em uma democracia ou em uma ditadura.
"Depois de uma longa guerra civil, quando os Acordos de Paz foram assinados em 1992, as pessoas esperavam que o novo sistema distribuísse bem-estar e estabilidade econômica para a maioria, mas duas décadas depois viram que essas promessas não foram cumpridas", explica Cruz.
"Os problemas políticos do país não foram resolvidos, pelo contrário, aprofundaram-se, assm como a violência, com as gangues. Isso se tornou insuportável", continua.
"Nesse contexto chega Bukele, que lê muito bem o sentimento popular, e vai no embalo dele, atacando o sistema. Inicialmente apontando para quem o representa: os partidos políticos tradicionais.”
Ana María Méndez-Dardón, diretora para a América Central do Escritório de Washington para a América Latina (WOLA), concorda.
"Ele entrou (na presidência) aproveitando o descontentamento geral com o bipartidarismo histórico e o fluxo de novas gerações que diziam 'não me identifico mais com isso, não faço parte do que foi a guerra, do que foi o pós-guerra, e agora preciso de algo diferente da FMLN e da Arena'", explica.
Para alcançar esse grupo de cidadãos, ele criou a imagem de um milenial progressista, tolerante, inovador e eficiente, capaz de resolver os problemas mais urgentes como se fosse o CEO de uma empresa.
Mas, uma vez no poder, essa imagem de um político moderno começou, aos olhos de muitos, a desmoronar e a trazer à mente um passado que na verdade não era tão distante.
Um dos episódios que marcou a mudança foi o de 9 de fevereiro de 2020, quando ele invadiu a Assembleia Legislativa com os militares – na qual o seu partido, Nuevas Ideas, ainda não tinha o controle que tem agora – e ameaçou dissolvê-la se os deputados não autorizaram a negociação de um empréstimo.
Ele também adota frequentes referências a ser "um instrumento de Deus" e sobre o estabelecimento de um regime excepcional que limita liberdades — algo que já dura quase dois anos.
"Se olharmos para a história latino-americana, os regimes de detenção ou estados de exceção são utilizados por governos autoritários, pelo autoritarismo, por ditaduras militares", enfatiza Méndez-Dardón.
Embora houvesse quem falasse de uma "transformação radical" de Bukele, de uma reviravolta, isso não pegou todos de surpresa.
"Fala-se muito sobre Bukele antes e agora, mas eu não falaria em metamorfose", disse César Artiga à BBC Mundo.
"Todas aquelas tendências autoritárias, concentração de poder, todas aquelas inconsistências nos discursos, inconsistências pelas quais ele não é questionado, já eram vistas quando ele era prefeito", aponta o analista.
Ele acredita que o presidente reeleito, a quem chama de político "oportunista", "revelou a sua verdadeira face" agora que ocupa "um cargo com muito poder".
A advogada e analista Tahnya Pastor Meléndez, embora em tom diferente, também acredita que ele continua "exatamente o mesmo", como já demonstrava quando ocupava cargos municipais.
Ele se fortaleceu nos primeiros dois anos à frente do Executivo, diz o especialista, ao sentir-se "encurralado" com uma Assembleia em que o seu partido ainda não tinha a maioria. O Nuevas Ideas assumiria o controle do parlamento unicameral nas eleições legislativas de 2021.
Até então, "aquela Assembleia o bloqueou muito e já dava para ver o estilo dele de 'vou fazer o que acho certo, e não importa se eu passar por cima desses dois partidos políticos' (Arena e FMLN)", afirma.
Segundo a analista, foi precisamente esta "ingovernabilidade pela ingovernabilidade" que levou o seu partido a obter a maioria em 2021.
Pastor Meléndez também o descreve como difícil de classificar no espectro político e com tendências autoritárias, afirmando que "é alguém interessado em resolver problemas".
"Ele quer dar resultados e quer dá-los rapidamente. E é isso que as pessoas veem."
Ele também utilizou sua máquina política poderosa para difundir esta ideia através das redes sociais, o que juntamente com os resultados de segurança aumentaram a sua popularidade.
"E isso gerou enormes expectativas entre a população de que o problema econômico e de corrupção será resolvido neste novo período", afirma Pastor Meléndez.
O desafio é enorme no país que menos crescerá na região, segundo o Fundo Monetário Internacional.
El Salvador tem um índice de endividamento muito elevado, déficit na balança comercial e uma elevada dependência das remessas familiares. Além disso, nos últimos quatro anos, 200 mil pessoas caíram na pobreza extrema, segundo a Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal).
Para se enxergar essa realidade, é preciso deixar para trás o calçadão de Surf City, um corredor de praia de 21 km que sua gestão transformou em mais uma das imagens do país, ou a impressionante Biblioteca Nacional de El Salvador construída com doações chinesas no centro da capital e que o próprio Bukele inaugurou com uma visita oficial.
*Com reportagem adicional de Marcos González, correspondente da BBC News Mundo no México.