"Eu sou Marta. Um ser humano que ficou na rua." Assim a estilista e escritora Marta Rivera, 57 anos, moradora de Achupallas, na comuna de Viña del Mar (centro-oeste), se identificou ao Correio. Por volta das 23h de sexta-feira (2/2), as duas casas de sua família, construídas em amplo terreno, foram engolidas pelo fogo. Uma terceira, em obras, virou cinzas. "A primeira informação que nos chegou foi a de que o incêndio atingiria outro povoado. De repente, me deparei com o fogo tomando a nossa residência. Todo o bairro foi destruído, todos os morros da região foram queimados. Eu me sentei diante de minha casa e comecei a ver como se queimava", contou, após um dos incêndios florestais mais devastadores da história do Chile. Até a noite deste domingo (4/2), 99 corpos tinham sido encontrados — 32 identificados — e 370 moradores eram dados como desaparecidos. Pelo menos 3 mil imóveis foram destruídos.
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O presidente Gabriel Boric visitou a área afetada, em Quilpué, e declarou que o Chile vive "a maior tragédia desde o terremoto de 27 de fevereiro de 2010" — o tremor e um tsunami deixaram 800 mortos. "Decretei luto nacional de dois dias, a contar da manhã de segunda-feira (5/2). O Chile inteiro chora e sofre por nossos mortos. Da região de Valparaíso, envio um abraço solidário e minhas mais sentidas condolências a cada uma das vítimas que perderam um ente querido e aos que perderam suas casas, suas lembranças e seus pertences", disse. "Saibam que não estarão sozinhos." O governo impôs toque de recolher, entre 18h de domingo e 10h desta segunda-feira (5), nas comunas de Limache, Quilpué, Villa Alemana e Viña del Mar.
Em meio à tragédia, Marta ajudou vizinhos com hipertensão e crise nervosa. "Perdi o meu mundo", lamentou. Ela morava com o marido em uma das casas arrasadas. Na outra, viviam um amigo, que sofre de problemas cardíacos, e a esposa. "O incêndio foi muito rápido. Perdemos o nosso cão. Uns jovens nos retiraram de nossa residência. Usaram uma lata para jogar água sobre nossos corpos e nos levaram até um local seguro, cruzando uma passarela sobre a estrada", relatou.
Apenas a roupa
Também moradora de Achupallas, a zeladora de carros Beatriz Moya, 62, disse ao Correio que as pessoas somente se deram conta da gravidade da situação quando "as chamas estavam em cima". "Um vento horrível atraiu o fogo para nossas casas. Paus queimados e faíscas caíram sobre os morros onde vivíamos. Em um piscar de olhos, tudo queimou. Eu e meus vizinhos ficamos apenas com a roupa do corpo", desabafou, por telefone, no fim da manhã deste domingo. "Estamos na área onde ficava nossa casa. Tentamos remover os escombros, limpar e ver o que é possível resgatar. Também cuidamos do nosso terreno para que não venham tomá-los", comentou.
Beatriz, o marido e os filhos trabalhavam no momento em que o fogo chegou a Achupallas. "Meus vizinhos me telefonaram e disseram para que eu não subisse o morro, pois tudo tinha sido incendiado, inclusive, minha casa", disse ela. Uma família de idosos vizinhos não conseguiu se salvar e morreu queimada. "Na parte baixa do morro onde morávamos, havia cinco corpos calcinados. Para tentar fugir, outra vizinha correu, caiu escada abaixo e morreu. Foi muito desesperador. Jamais me esquecerei do que vivemos", acrescentou. Entre lágrimas, ela se desesperou: "Perdemos tudo. Todo o nosso esforço. Tudo se foi com as chamas". Ela crê em incêndio intencional. "Houve a mão de alguém aí. Mais de mil famílias viviam aqui em Achupallas. Todas perderam suas casas. O morro foi consumido por inteiro pelas chamas. Bolas de fogo saltavam para todos os lados. Ficamos sem nada." As autoridades não descartam motivação intencional.
"Estamos diante de uma catástrofe sem precedentes. Uma situação dessa envergadura nunca havia ocorrido na região de Valparaíso", admitiu a prefeita de Viña del Mar, Macarena Ripamonti. O Jardim Botânico da cidade ficou 98% destruído e ficará fechado por pelo menos seis meses. René Lues Escobar, vereador de Viña del Mar, disse que povoados inteiros foram dizimados. "O calor intenso veio acompanhado de ventos de até 100km/h, o que ajudou a manter o fogo. A parte leste de Viña del Mar foi a mais afetada. Tivemos cinco pontos simultâneos de incêndios florestais", explicou à reportagem, por telefone.
"O trabalho dos bombeiros foi muito difícil, pois precisaram combater o fogo em locais diferentes. Na sexta-feira à tarde e durante todo o sábado, os bombeiros aplicaram sua capacidade técnica e operacional total. Tiveram o apoio do Carabineiros do Chile (a polícia), da Defesa Civil e da Cruz Vermelha", acrescentou o político, que completou 61 anos ontem. Escobar aponta o incêndio como o desastre urbano mais importante da história de Viña del Mar. De acordo com a agência France-Presse, no total, foram registrados 92 incêndios — ao menos 29 deles seguiam ativos.
O domingo amanheceu frio na região de Valparaíso, o que ajudou a mitigar mais potenciais danos do incêndio. "Mas a coisa pode mudar, a depender do clima nos próximos dias", alertou o vereador. De acordo com Escobar, a maioria das vítimas morreu dentro de suas casas. "Pessoas com problemas de locomoção e idosos não saíram a tempo. Outras se recusaram a abandonar seus lares por temerem saques."
DEPOIMENTO
"Muitos de nós fomos castigados"
"Veremos o que o destino nos reserva. Creio que muitos de nós fomos castigados. São muitas casas, muitos mortos e desaparecidos. Conheço pessoas que tinham um comércio, a três ou quatro quadras de minha casa, que estão mortas. O primo de uma amiga também morreu queimado, ao tentar resgatar um cão de estimação. Ela também sofreu queimaduras.
Minha amiga lutava contra um câncer do marido e, agora, passa por isso. Em cinco minutos, todo o nosso bairro foi incendiado. Era como uma imensa língua de fogo, abastecida por 85km/h de vento. Os bombeiros não conseguiram passagem para chegar às ruas e conter as chamas. O fogo começou a muitos quilômetros e saltou de um lado a outro, invadindo os bairros. Há muitos mortos em meio aos escombros de suas casas."
Marta Rivera, 57 anos, estilista e escritora, moradora de Achupallas, na comuna de Viña del Mar