A reputação do Senegal como bastião da democracia numa região instável está em risco depois de manifestantes entrarem em confronto com a polícia em frente ao Parlamento, na segunda-feira (5/2).
Os parlamentares aprovaram um projeto de lei controverso para estender o mandato do presidente Macky Sall e adiar as eleições. O próprio mandatário já havia proposto o cancelamento da votação, que estava planejada para ocorrer daqui a três semanas.
A oposição afirma que alguns dos seus representantes foram removidos à força do edifício do parlamento pela polícia e impedidos de votar ao local.
Khalifa Sall, um dos principais opositores e antigo presidente da Câmara localizada na capital Dakar, que não tem parentesco com o presidente, chamou o adiamento da eleição de um "golpe constitucional" e instou as pessoas a protestarem contra a decisão. A coalizão política que ele lidera promete apelar aos tribunais.
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Thierno Alassane Sall, outro candidato, também sem parentesco com o presidente, chamou o adiamento de "alta traição" e instou os seus apoiadores a se reunirem em frente à Assembleia Nacional para protestar e "lembrar aos deputados que devem permanecer do lado certo da História".
A proposta de postergar o pleito precisava do apoio de três quintos (ou seja, 99) dos 165 parlamentares para ser aprovada. A coligação Benno Bokk Yakaar, da qual faz parte o partido Aliança para a República do presidente Sall, tem uma ligeira maioria entre os legisladores.
No final, 105 deputados votaram a favor do projeto. Originalmente, foi proposto um adiamento de seis meses, mas uma alteração de última hora estendeu o prazo para 10 meses. Com isso, as eleições foram remarcadas para 15 de dezembro.
Macky Sall reiterou que não planeja concorrer novamente ao cargo. Mas os opositores acusam-no de tentar agarrar-se ao poder ou de influenciar indevidamente quem o suceder.
Assim que o adiamento foi confirmado, os manifestantes marcharam por Dakar para pedir uma reversão da decisão. Pelo menos 150 pessoas foram presas nos últimos dois dias.
O Ecowas, o bloco regional da África Ocidental, apelou à classe política do Senegal para "tomar medidas urgentes que restaurem o calendário eleitoral" em linha com a constituição.
Em um post publicado nas redes sociais, a ex-primeira-ministra Aminata Touré condenou a aprovação do projeto de lei.
O Senegal é visto há muito tempo como uma das democracias mais estáveis da África Ocidental. Trata-se do único país desta região que nunca sofreu um golpe militar, com três transferências de poder em grande parte pacíficas, sem nunca atrasar qualquer eleição presidencial.
Pelo menos até agora.
Em 2017, as tropas senegalesas lideraram a missão da África Ocidental enviada à vizinha Gâmbia para expulsar o governante de longa data Yahya Jammeh, depois de ele se recusar a aceitar que tinha perdido uma eleição.
E numa região assolada por golpes de Estado, o presidente Sall tem sido um ator-chave na pressão da Comunidade Econômica dos Estados da África Ocidental (Cedeao) para forçar os líderes militares a realizar eleições e a entregar o poder aos civis.
Mas as credenciais democráticas do Senegal estão agora em jogo, com uma crise constitucional. O país enfrenta um teste crítico que envolve integridade eleitoral e independência judicial, apontam os analistas.
As tensões têm aumentado há mais de dois anos, quando líderes da oposição denunciaram uma suposta tentativa deliberada de excluí-los das eleições, acusando os candidatos de crimes que não cometeram. Um grande partido da oposição foi até banido do pleito.
Agora, as autoridades negaram ter utilizado o sistema legal para obter ganhos políticos — e o presidente Sall disse que o objetivo era acalmar a situação política atrasando a votação. Mas isso não parece ter funcionado até agora.
"A decisão lançou o Senegal nas águas desconhecidas de uma crise constitucional", disse à BBC o analista Mucahid Durmaz, especialista em África Ocidental da empresa de inteligência de risco Verisk Maplecroft.
"A Constituição exige que as eleições sejam organizadas pelo menos 30 dias antes do final do mandato do presidente em exercício. O governo de Sall expira em 2 de abril. E o decreto que detalha o calendário eleitoral deve ser divulgado 80 dias antes da votação. Mesmo que ele nomeie um presidente de transição após 2 de abril, a legalidade desse ato será contestada."
As autoridades restringiram o acesso aos serviços de internet móvel na segunda-feira (5/2) para evitar o compartilhamento do que classificaram como "mensagens de ódio e subversão", que representassem uma ameaça à ordem pública — em outras palavras, a ideia era dificultar a organização dos manifestantes.
Alguns senegaleses relataram à BBC que têm usado wi-fi e redes privadas virtuais (VPNs) para contornar as restrições, mas nem todos conseguem fazer isso.
A oposição também condenou o corte do sinal do canal de televisão privado Walf TV por "incitação à violência" devido à cobertura das manifestações.
Dois políticos da oposição, incluindo a antiga primeira-ministra Aminata Touré, outrora uma aliada próxima do presidente Sall, que agora se tornou uma opositora, foram detidos brevemente na sequência dos protestos.
Os críticos temem que esta repressão possa mergulhar o país numa turbulência política maior que, por extensão, poderá ser perigosa para toda a região da África Ocidental.
Os índices de satisfação com a democracia no Senegal diminuíram drasticamente durante o governo Sall. Em 2013, o instituto de pesquisas Afrobarômetro concluiu que, depois da posse de Sall, mais de dois terços dos senegaleses estavam razoavelmente ou muito satisfeitos com a democracia. Em 2022, menos da metade seguia com a mesma opinião.
No entanto, Durmaz diz que não prevê a possibilidade de um golpe militar, porque o Senegal tem uma "gama diversificada de partidos políticos, uma sociedade civil robusta e líderes religiosos influentes que podem intervir para mediar disputas entre os políticos".
Vinte pessoas integraram a lista final para disputar as eleições, mas vários outros foram excluídos pelo Conselho Constitucional, o órgão judicial que determina se os candidatos cumprem as condições exigidas para concorrer.
Os nomes mais proeminentes eram o do líder da oposição, Ousmane Sonko, barrado por causa de uma condenação por difamação, e Karim Wade, filho de um ex-presidente, que foi acusado de ter nacionalidade francesa. Ambos dizem que os casos contra eles têm motivação política.
Apesar do atraso, é improvável que Sonko consiga participar das eleições, uma vez que o partido já o substituiu por Bassirou Faye, que também está preso, mas continua elegível para concorrer, detalha Durmaz.
Sonko demonstrou que é capaz de mobilizar os apoiadores e, por isso, enquanto permanecer barrado, as tensões provavelmente permanecerão elevadas.
O partido de Sonko, chamado Pastef, prometeu resistir ao atraso da votação, classificando a decisão como uma "séria ameaça à democracia" e um "desprezo à vontade do povo".
Esta não é a primeira vez que os principais candidatos da oposição são impedidos de concorrer nas eleições presidenciais. Karim Wade e Khalifa Sall foram presos por corrupção em 2015 e 2018, respectivamente, e impedidos de concorrer em 2019.
Desta vez, as alegações de corrupção judicial que envolvem o Conselho Constitucional, apresentadas pelo partido de Karim Wade, motivaram um inquérito parlamentar.
O presidente Sall justificou o atraso nas eleições dizendo que era necessário tempo para resolver a disputa que se seguiu entre o Conselho e alguns membros do parlamento.
Wole Ojewale, coordenador regional para a África Central do Instituto de Estudos de Segurança, sediado em Dakar, entende que o atraso não se justifica.
"O presidente não é responsável pelo processo eleitoral e o órgão eleitoral não levantou dúvidas sobre a capacidade de realizar as eleições. Não creio que nada deva inviabilizar o processo político."
Os críticos de Sall sugerem que ele teme que o sucessor escolhido pelo presidente, o primeiro-ministro Amadou Ba, corre o risco de perder as eleições.
"O partido [do presidente Sall] perdeu o ímpeto. Há indicações de que provavelmente eles querem ver como podem mudar de posição ou substituir o candidato", avalia Ojewale.
O especialista diz que ainda há uma janela para conduzir a eleição conforme programado. Caso contrário, o país poderá mergulhar numa agitação generalizada, tornando-se um Estado policial onde as liberdades civis serão corroídas. Essa é a mesma opinião de Durmaz.
A CEDEAO e a União Africana reforçaram a necessidade de diálogo. A França, os Estados Unidos e a Unão Europeia apelaram à realização de eleições o mais rápido possível.
Contudo, Durmaz diz que a imagem internacional do presidente Sall minimizaria qualquer pressão externa sobre ele.
"Não espero um impulso firme da CEDEAO para reverter o adiamento das eleições no Senegal", antevê ele, observando que a credibilidade de organizações regionais como a CEDEAO e a União Africana "foi significativamente manchada devido à incapacidade de enfrentar a democracia frágil nos países geridos por civis".
Todos os olhares estarão agora voltados para os blocos regionais, para ver como eles vão lidar com mais uma dor de cabeça democrática na África Ocidental.
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