A guerra na Ucrânia, a Otan, um jornalista americano detido na Rússia e seu "relacionamento pessoal" com Donald Trump foram alguns dos temas da primeira entrevista do presidente da Rússia, Vladimir Putin, a um jornalista ocidental desde o início da invasão da Ucrânia.
A entrevista do presidente russo ao jornalista americano Tucker Carlson durou mais de duas horas e continua sendo muito comentada. Ela foi transmitida pela mídia estatal da Rússia, pelo website do próprio Carlson e pelo X, antigo Twitter, onde teve mais de 85 milhões de visualizações.
Mas o que Putin disse e o que ele ganhou com essa entrevista?
O que disse Putin?
"O encontro completo de mais de duas horas saiu exatamente conforme o previsto", segundo Keir Giles, especialista em Rússia e Eurásia do think tank (centro de pesquisa e debates) Chatham House, com sede em Londres.
"Ela foi uma plataforma para que Putin oferecesse um extenso monólogo explicando o mundo segundo Vladimir, com base em um relato totalmente distorcido do passado histórico da Rússia e seus vizinhos", comentou ele.
A primeira meia hora da entrevista parecia uma aula de história, com Putin falando quase sem intervalos. Ela se seguiu à pergunta de abertura de Carlson: se Putin invadiu a Ucrânia porque estava ameaçado por um possível ataque dos Estados Unidos através da Otan.
Putin respondeu: "Não é que os Estados Unidos fossem lançar um ataque-surpresa à Rússia... estamos em um talk show ou em uma conversa séria?"
O presidente russo transmitiu sua reclamação constante sobre a expansão da Otan para o leste, no que a Rússia considera ser sua área de influência. "Nunca concordamos que a Ucrânia pudesse entrar para a Otan", nas palavras dele.
Putin também relembrou os combates na região de Donbas, no leste da Ucrânia, onde Moscou havia provocado uma guerra civil. E disse que quer ver a "desnazificação" da Ucrânia, que ele afirmou ser ainda um trabalho em andamento.
Kiev sempre contestou ferozmente as afirmações russas sobre o nazismo.
Questionado sobre a possibilidade de paz, Putin respondeu:
"Se você realmente quiser parar de lutar, você precisa parar de fornecer armas", em referência ao apoio ocidental à Ucrânia. "O conflito acabaria em poucas semanas. É isso."
Putin também falou sobre o jornalista americano Evan Gershkovich, preso na Rússia em 2023 enquanto fazia seu trabalho, acusado de espionagem.
Ele disse acreditar que pode ser atingido um acordo para sua libertação "se os nossos parceiros tomarem medidas recíprocas". E deu sua maior indicação até agora sobre o que ele quer em troca da liberdade do jornalista americano.
Putin falou em um "patriota" russo que havia "eliminado um bandido" em uma capital europeia.
Aparentemente, ele confirma relatos anteriores de que a Rússia exige uma troca de prisioneiros com Vadim Krasikov, o suspeito agente da inteligência russa que matou um separatista checheno em um parque de Berlim, na Alemanha, em 2019.
Questionado quando foi a última vez em que falou com o presidente americano Joe Biden, Putin respondeu: "não consigo lembrar quando falei com ele". E acrescentou que os dois falaram pela última vez antes da invasão da Ucrânia, em fevereiro de 2022.
Em nenhum ponto da entrevista, Carlson mencionou nominalmente o ex-presidente Donald Trump. Mas Putin o fez.
"Eu tinha um bom relacionamento pessoal com Trump", disse ele. O presidente russo afirmou que também gostava de George W. Bush.
Por que Putin escolheu Tucker Carlson para a entrevista?
Putin concordou em ser entrevistado por Carlson porque sua abordagem é diferente do noticiário "unilateral" sobre o conflito na Ucrânia pela grande imprensa ocidental, segundo o porta-voz do Kremlin Dmitry Peskov.
Mas a historiadora e jornalista Anne Applebaum tem outra teoria.
"Quando Carlson fala em nome de Putin, suas palavras são repetidas na Hungria e na Rússia, onde têm ressonância", escreveu ela na revista americana The Atlantic. Para Applebaum, é como se Putin dissesse: "Veja, um importante jornalista americano nos apoia."
Giles é da mesma opinião. Para ele, Carlson ofereceu a Putin "uma plataforma aberta por horas" que consistiu de "delírios e desinformação sem questionamentos".
"A única surpresa foi que Carlson se mostrou um entrevistador espetacularmente ruim, mesmo quando tentava ajudar Putin", observa ele.
Tucker Carlson tem 54 anos de idade e é um grande apoiador de Donald Trump, que aparentemente será o candidato do Partido Republicano na eleição presidencial americana de 2024.
Carlson é ex-apresentador da TV Fox News e defende abertamente Vladimir Putin, desde o início da guerra na Ucrânia. Ele já chamou muitas vezes o presidente ucraniano Volodymyr Zelensky de "ditador".
Carlson insiste que também apresentou um pedido de entrevista a Zelensky e que entrevistou Putin porque "os americanos têm o direito de saber tudo o que puderem sobre uma guerra na qual eles estão envolvidos".
Carlson foi demitido da Fox News no ano passado. Mas, antes disso, ele já exercia imensa influência como âncora de um talk show político no horário nobre, que definia a agenda dos conservadores e do Partido Republicano.
A mensagem de Carlson é "populista", segundo Yotam Ophir, que estuda desinformação na Universidade Estadual de Nova York (SUNY, na sigla em inglês), nos Estados Unidos.
A palavra "eles", por exemplo, é usada em muitos programas de Carlson, explicou Ophir à BBC.
"Eles estão vindo pegar você... o país que você ama está mudando diante dos nossos olhos. E apenas nós da Fox estamos dispostos a dizer a verdade e lutar pelos valores das pessoas."
"Eles", no programa de Carlson, costuma incluir imigrantes, membros do movimento Vidas Negras Importam, os democratas e a comunidade LGBTQIA+.
Carlson também dá asas às teorias da conspiração. No passado, ele afirmou que o governo americano guarda secretamente uma espaçonave alienígena.
No seu novo programa no site tuckercarlson.com e no X, o apresentador já entrevistou importantes políticos de direita, como o primeiro-ministro da Hungria, Viktor Orbán, o novo presidente da Argentina, Javier Milei, e, é claro, o próprio Donald Trump.
No período que antecedeu o lançamento do seu novo programa, Carlson explicou como ele imagina o jornalismo moderno.
"No nível mais básico, as notícias que você consome são uma mentira", segundo ele. "Uma mentira da mais furtiva e insidiosa espécie. Os fatos foram omitidos de propósito, junto com a proporção e a perspectiva. Você está sendo manipulado."
A correspondente da BBC no leste europeu, Sarah Rainsford, afirma que "Putin estava totalmente no comando" dessa entrevista. Para ela, Carlson "parecia apoiar" suas palavras, "em vez de pressionar Putin, que foi indiciado como suspeito de crimes de guerra".
Putin está tentando influenciar os Estados Unidos?
"Muitas vezes, é difícil determinar se os propagandistas do Kremlin são agentes de influência conscientes", afirma Keir Giles.
Mas ele defende que "no caso de Carlson, existe um claro registro de uso das oportunidades para atacar e prejudicar os Estados Unidos e seu sistema democrático".
Os Estados Unidos irão escolher seu próximo presidente no dia 5 de novembro. Ainda não é definitivo, mas realmente parece que será uma eleição entre Biden e Trump. Trump está na frente na corrida pela indicação republicana e o presidente Biden, muito provavelmente, irá conseguir a candidatura democrata.
Tucker Carlson é um grande nome nos Estados Unidos e tem mais de 12 milhões de seguidores no X.
Muitos de seus seguidores são republicanos. Seu antigo programa na Fox News chegou a ter audiência de cinco milhões de espectadores durante seu auge.
"Carlson procura entrevistados que os órgãos de imprensa responsáveis evitam apresentar, que promovem uma série de desinformações sensacionalistas, antivacinas, anti-Biden ou contra o Ocidente", acrescenta ele.
Esta foi a primeira entrevista frente a frente concedida por Putin à imprensa ocidental, desde o início da invasão da Ucrânia. E está atraindo dezenas de milhões de visualizações.
A entrevista também está recebendo enorme cobertura na Rússia. Os jornalistas do país enfrentam fortes restrições do governo Putin e não podem descrever o conflito na Ucrânia como sendo uma guerra.
Algumas manchetes da imprensa russa sobre Carlson relembram a era soviética, com as notícias sobre cada passo dos VIPs do momento.
Mesmo se a entrevista não influenciar diretamente a eleição presidencial americana, ela certamente recebeu destaque.
O relacionamento 'pessoal' entre Putin e Trump
"Eu tinha um bom relacionamento pessoal com Trump", disse Putin na entrevista. E também gostava pessoalmente do ex-presidente americano George W. Bush.
Surgiram notícias nos últimos meses de que o Kremlin enviou mensagens afirmando que o presidente Putin está pronto para negociar com a Ucrânia. E esta entrevista parece ter vindo em um momento oportuno.
"Os interesses de Putin e Carlson coincidiram nessa entrevista", afirma Giles.
"Os dois estavam falando para públicos parecidos sobre assuntos similares. Putin precisava do público de Carlson nos Estados Unidos, é claro, para influenciá-lo em direção ao argumento que Putin quer que eles ouçam, ou seja, que os Estados Unidos podem pôr fim aos combates na Ucrânia."
Mas Giles afirma que isso é "desinformação".
"Quando Putin fala sobre as negociações em andamento e a oferta que está sobre a mesa para que os Estados Unidos terminem a guerra, realmente não é algo viável", explica ele.
"Putin está pedindo que os Estados Unidos parem de financiar a Ucrânia, o que irá encerrar a guerra, segundo ele, em questão de semanas. Mas é claro que esse fim é a destruição completa da Ucrânia, com a Rússia ficando mais poderosa, em busca do seu próximo alvo."
É consenso entre os analistas que o interesse de Putin é que Trump seja o próximo presidente americano.
O Congresso dos Estados Unidos aprovou bilhões de dólares de apoio à Ucrânia, a serem distribuídos ao longo de um amplo período. Mas, se Trump for eleito, ele poderá usar seu poder executivo para retardar ou até mesmo suspender esse apoio.
Donald Trump já fez isso quando era presidente, em relação a parte do apoio militar aprovado pelo Congresso.
Alguns dos seus colegas republicanos condenaram rapidamente essa ideia, mas é possível que, se Trump for eleito em novembro, o apoio americano aos esforços de guerra seja totalmente eliminado.
Para Keir Giles, esta entrevista "é apenas uma forma de enfraquecer a disposição dos Estados Unidos e seus aliados de apoiar a Ucrânia". Ele defende que "todos os envolvidos se beneficiaram, mas prejudicando os Estados Unidos e o Ocidente".
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