"Bolovo, a Ameaça Urbana": assim foi batizado um episódio do especial de Natal que o grupo Hermes e Renato gravou em 2004, para a MTV Brasil.
Nele, um cidadão pacato desafia a morte (e perde) ao se alimentar exclusivamente, por dias a fio, de bolovo. Por bolovo, entendia-se um salgado presente nas estufas dos botequins mais pedestres.
Um ovo cozido, envolto com carne moída na massa de coxinha, formando um bolinho que depois era empanado e frito.
Pouca gente chamava o salgado de bolovo naquela época. Ou talvez a denominação fosse popular em Petrópolis, onde os humoristas viviam antes de se mudarem para São Paulo.
"Era bolinho de carne com ovo, bolinho de ovo", conta Adriano Silva, mais conhecido por encarnar o personagem Joselito, o sem-noção. "A galera diminuiu para bolovo."
Depois do especial, o nome pegou em São Paulo. O bolovo ganhou um makeover. Ressurgiu quase irreconhecível nos bares de Pinheiros e Santa Cecília.
A jornalista inglesa Catherine Balston morava há pouco tempo na cidade quando se deparou com ele, o bolovo gourmetizado. O encontro disparou um curto-circuito em sua cabeça: aquilo era um scotch egg.
O bolovo brasileiro e o scotch egg britânico nasceram semelhantes e se tornaram quase idênticos. Ambos têm o passado humilde como referência conceitual.
Ambos se tornaram veículos da criatividade dos chefs: quase qualquer comida, da linguiça ao hadoque defumado, pode envolver um bolovo ou um scotch egg.
Catherine ficou obcecada pela semelhança entre os dois quitutes. Pesquisou por semanas e concluiu que bolovo e scotch egg são apenas duas das muitas expressões do ovo cozido e envolto em carne. Há receitas do mesmo gênero na Holanda, na Bélgica, na Índia, na Indonésia e na Polônia.
Origem controversa
Quanto ao scotch egg, a loja de comidas finas Fortnum and Mason, de Londres, reivindica sua paternidade.
"O primeiro e o melhor: nós criamos o scotch egg em 1738, como uma refeição para os viajantes que saíam de Piccadilly [região central de Londres, onde se encontra a F&M] para o oeste", alardeia o site da loja.
Segundo o aristocrático food hall, a receita original se fazia com ovos de galinhas jovens, de tamanho reduzido.
Depois de cozidos, eram encapados com uma mistura de carnes, temperos e anchovas, empanados com farinha de rosca sazonada com macis (a membrana externa da noz-moscada) e fritos.
As evidências apontam para uma gênese menos autoral. O Oxford Companion to Food, obra máxima de referência na gastronomia britânica, diz que "sua origem é incerta, embora ele possivelmente seja descendente de uma forma indiana de cafta".
O prato em questão é o nargisi kofta, ovos embrulhados em carne de carneiro condimentada e servidos em abundante molho de curry.
O scotch egg evoluiu para um petisco que não é nem sofisticado, nem exótico. Tipicamente, ele é cozido até a gema ficar dura e envolto em carne de linguiça –na Inglaterra, porco temperado com pimenta-do-reino branca, tomilho e sálvia.
"Os pubs começaram a fazer scotch eggs para não deixar estragar a linguiça que sobrava", afirma Greigor Caisley, chef australiano residente em São Paulo.
"É algo que a gente comprava no supermercado ou na loja de conveniência", diz Catherine.
Na Inglaterra, os mercados contam com corredores específicos de sanduíches, lanches e refeições prontas que as pessoas comem na rua ou nos parques, em substituição ao almoço com mesa, cadeira, prato e talheres.
O scotch egg figura nessa seção e é comido frio, para quebrar um galho na correria. Ou melhor, costumava ser assim.
Bolovo 'gourmetizado'
No século 21, a gastronomia britânica progrediu para muito além da sua proverbial fama.
"Os pubs mudaram, e o scotch egg também", afirma Catherine. Muitos bares tradicionais deram lugar aos gastropubs, com serviço de mesa e pratos elaborados.
O scotch egg precisava de um redesenho. No ovo – a gema começou a vir cremosa, menos cozida – e na carne.
O pub The Lamb ("O Cordeiro"), na região londrina de Bloomsbury, honra o próprio nome com um scotch egg de cordeiro e damasco, mostarda de cerveja à parte.
Perto dali, o scotch egg do The Lady Ottoline é feito com salmão defumado e servido com maionese de erva-doce e curry e custa mirabolantes £ 12, cerca de R$ 75 (o da Fortnum & Mason sai por £ 4,50, ou R$ 28).
Em Londres, é possível comprar scotch eggs de vários sabores no site The Gourmet Scotch Egg Co.
O serviço de catering Finest Fayre atende a mercados de rua por toda a cidade, com versões de chorizo espanhol, black pudding (chouriço de sangue) e hadoque defumado, entre tantas.
Na Fortnum and Mason, alegada inventora do bolovo inglês, as opções disponíveis na tarde de domingo (24/9) eram: grão-de-bico, queijo feta e pimenta; cogumelos selvagens e trufas e; coronation chicken (frango com maionese e curry, receita criada para a coroação de Elizabeth 2ª). Nada do scotch egg clássico.
O bolovo brasileiro, cujo nascedouro nunca foi estudado a sério, foi pelo mesmo caminho. Greigor, chef do bar Guarita, em Pinheiros, participou dessa história.
Ele começou a fazer scotch egg no Drake’s, pub que funcionava no prédio do Centro Britânico Brasileiro, em São Paulo.
A clientela passou a chamar o quitute de bolovo. Greg, então, decidiu brincar também com o bolovo brasileiro, que ele serve no Guarita.
Da nova geração de bolovos, o Guarita é um dos poucos que seguem a fórmula tradicional, com massa de coxinha e carne moída. Na maioria dos bares paulistanos, a massa foi abolida: o bolovo se tornou, tecnicamente, um scotch egg.
O bar Bagaceira, em Santa Cecília, oferece bolovo de morcilla – chouriço de sangue hispano-americano. No Bar do Momo, no Rio, usa-se massa de bolinho de bacalhau.
No Pinati, restaurante israelense em Higienópolis, o que envolve o ovo é falafel. O nome da criatura: falovo.
Brasileiros e ingleses competem para ver quem é mais criativo ao fritar um ovo cozido.
Confeitarias da Grã-Bretanha inventaram o "scotch egg de Páscoa" – na Fortnum and Mason, ele é feito com chocolate ao leite recheado de ganache de laranja (a gema do ovo) e "empanado" com praliné de amêndoas.
Já a Colman’s, fabricante de condimentos, em 2022, lançou um scotch egg pascal quase padrão, salgado, feito com cordeiro (símbolo do sacrifício de Jesus) e acompanhado de geleia de hortelã.
Fica aí a dica para 2024 no Brasil: o bolovo de Páscoa. E que o Universo me perdoe por isso.