Rafael Correa, presidente do Equador entre 2007 e 2017, denuncia uma "acefalia" do Estado e associa a recente explosão de violência a uma série de erros, de omissões, do desmantelamento de instituições e da penetração do narcotráfico nas diversas esferas de poder. "Nunca vi uma destruição tão rápida de um país em uma época de paz. Sem bloqueios e sem sanções", afirmou ao Correio, em entrevista exclusiva por videoconferência a partir de Bruxelas, capital da Bélgica, para onde migrou com a família, também em 2017. O economista de 60 anos assegura que, durante o seu governo, o Equador foi o segundo país mais seguro da América Latina. "Hoje, somos um dos cinco mais violentos do mundo", lamentou. Durante 20 minutos, ele analisou a crise de segurança equatoriana, acusou o governo de Lenín Moreno, seu ex-vice, de traição e de sucatear o Estado, e apoiou as medidas tomadas pelo atual presidente. No entanto, disparou: "Daniel Noboa não está preparado para governar". Correa criticou o gabinete do atual governo e garantiu que o Palácio de Carondelet não tem um plano de segurança. Também admitiu que os cartéis mexicanos do narcotráfico encontraram guarida no Equador depois que perderam mercado na América do Norte, com uma ação mais incisiva do governo dos Estados Unidos contra o comércio de drogas.
Quais as causas da onda de violência que assola o seu país?
É o acúmulo de erros, de ódio e de instruções dadas nesses últimos sete anos, junto à mudança na conjuntura internacional. Os cartéis mexicanos perderam mercado nos Estados Unidos e fizeram um pacto com organizações equatorianas. Há uma tremenda debilidade do Estado equatoriano, uma acefalia. Quando deixei o governo, tínhamos quase 5,8 homicídios por quase mil habitantes. Éramos o segundo país mais seguro da América Latina. Em 2023, tivemos 42 homicídios por cada 100 mil habitantes. Somos um dos cinco países mais violentos e perigosos do mundo. Nunca vi uma destruição tão rápida de um país em uma época de paz. Sem bloqueios e sem sanções.
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E o que levou a essa destruição?
Em 2017, ganhamos as eleições com Lenín Moreno. Ele nos traiu e nos perseguiu, com o respaldo dos EUA. Destruiu todas as instituições do Estado, como o Ministério Coordenador da Segurança, que coordenava toda a área de segurança, inclusive com a Colômbia, com as comissões binacionais de fronteira. A luta contra o crime transnacional tem que ser transnacional. A droga vem da Colômbia. Eles eliminaram essas comissões binacionais, assim como o Ministério da Justiça, que se encarregava do sistema carcerário. Nossas prisões eram um exemplo para a América Latina. Construímos 11 penitenciárias. No nosso governo, houve três ou quatro mortos por ano nos presídios. Em 2022, tivemos 400 mortos. Eliminaram o Ministério do Interior, responsável pela polícia e pela segurança do cidadão. Hoje, a polícia é uma república independente e altamente corrupta, além de infiltrada pelo crime organizado. Reduziram em um terço o orçamento para a reabilitação social, acabaram com a escola para agentes carcerários.
Quando a situação da segurança no Equador piorou?
A situação piorou em 2017, durante o governo de Lenín Moreno. Ele foi nosso vice-presidente e nos traiu. No ano seguinte, fizeram uma consulta totalmente constitucional para nos bloquear politicamente, mas tomaram três das cinco funções do Estado, ilegalmente: a eleitoral, a judicial e a de transparência e controle social. Com a nomeação de um conselho transitório, tomaram a Corte de Justiça, a Promotoria, a Controladoria, o Ministério Público... Foi um golpe de Estado. Declararam seis meses de vacância constitucional. Dedicaram-se a destruir o país e a me perseguir. Enquanto isso, o crime organizado foi rampante e se fortaleceu. A isso somam-se a crise econômica, o que facilitou a captação de jovens desempregados, e o fato de os cartéis mexicanos terem perdido mercado no norte e começado a mirar para o sul. Esses cartéis fizeram convênios com grupos como Los Lobos e Los Choneros, que se infiltraram no Estado, nas Forças Armadas, na Polícia Nacional, no Judiciário, no sistema carcerário e no próprio governo de Guillermo Lasso. Agora, é difícil de combater esses grupos, que são poderosos e se infiltraram no Estado. Eles têm aliados dentro da polícia e das Forças Armadas.
Como o senhor vê as medidas anunciadas até o momento pelo presidente Daniel Noboa? São suficientes?
Não, é óbvio que não. Mas, depois do acúmulo de erros, e ele segue os cometendo, um grande acerto foi declarar o estado de emergência, com conflito interno, de tal maneira que se possa mobilizar as Forças Armadas com poder letal. Porque o crime organizado declarou guerra ao Estado. Não podemos permitir isso. Por isso, ofereci todo apoio ao presidente Noboa. Mas ele não está preparado para governar. É filho de um dos homens mais ricos do país, um produtor de bananas, que tem milhões e quis ser presidente. Ele não está preparado. O seu gabinete é de chorar. O ministro da Defesa (Gian Carlo Loffredo) é um tiktoker. A ministra do Interior (Mónica Palencia) não sabe onde está. O diretor de Segurança é um empresário amigo do presidente. Não há uma equipe de governo. Isso me preocupa e me desespera muito. Nossas Forças Armadas são muito profissionais e farão o que têm que fazer. Mas, sem respaldo político e orçamentário, até onde podem chegar?
O Equador, então, segue uma receita para o desastre?
O presidente nunca esteve preparado, mentiu durante a campanha. Naturalizaram a mentira. O Plano Fênix de segurança propôs polícias mais do que espetaculares, melhores do que Robocops, com drones. Mas não existem, não há nada. Ele não tem um plano de segurança. Agora, teve que usar as Forças Armadas, pois estamos em uma guerra aberta com esses grupos e exige-se apoio político e econômico.
Como se espera que seu país saia dessa crise?
Com união. Os setores políticos ofereceram apoio. Temos a oportunidade de fazer um governo de coalizão nacional ou, por último, um grande grupo de assessores nacionais. De gente que conheça de segurança e que apoie as medidas. Mas é preciso que haja orçamento para isso.
De que forma o governo deve atacar a violência em suas causas estruturais?
O presidente teve que reagir. Era uma urgência... Quando há um incêndio, você se preocupa em apagar o fogo. Depois, pensa em como organizar os bombeiros. O crime organizado declarou guerra ao Estado, começou a cometer ataques terroristas. É preciso responder com todo o poder do Estado. Depois, podemos conversar sobre como evitar mais violência. Há dois elementos da violência: a delinquência comum, que tem muito que ver com a crise econômica e a deterioração dos serviços do Estado (saúde, educação etc); e o crime organizado, que tem outra lógica. Para combater a delinquência comum, é necessária a polícia, mas, também, o desenvolvimento socioeconômico. O crime organizado não depende das condições econômicas. O que fazer? Isso depende de causas externas, de consumidores da droga na Europa e nos EUA, de cartéis no México. No âmbito interno, a estratégia para bloquear o crime organizado tem três eixos: inteligência, para descobrir a estrutura de liderança, o fluxo de dinheiro, a rota da droga; tecnologia, como o bloqueio de celulares nas prisões e para encontrar as armas; e a cooperação internacional. A droga vem da Colômbia, do departamento de Putumayo, e vai para Bélgica, Holanda e Estados Unidos. Os países têm que se unir para cortar a fonte de financiamento e atacar a produção e o consumo da droga.
Que ajuda o Brasil pode oferecer ao Equador nesse sentido?
Toda a ajuda é bem-vinda, sempre que se respeite a soberania de um país. Creio que temos tudo para fazê-lo. Temos Forças Armadas muito profissionais, a polícia tem mais problema. Se querem nos ajudar com tecnologia para a detecção de drogas e de armamentos, para rastrear o dinheiro; se querem nos ajudar com especialistas em inteligência, para descobrirmos as estruturas dessas organizações, será uma ajuda bem-vinda.
Se o senhor fosse o atual presidente, que medidas tomaria?
Com urgência, eu adotaria o estado de emergência adotado por Noboa. Porém, com estratégia e com uma equipe de governo para atacarmos o problema por várias frentes. Um bom ministro da Justiça, depois de recuperarmos o Ministério da Justiça, que foi eliminado... Tentaria recuperar as prisões e a reabilitação social. Parece que o chefe da máfia, "Fito", fugiu da penitenciária em 25 de dezembro. Teoricamente, os agentes carcerários fazem duas revistas por dia. Como isso pôde ter acontecido? Claramente, por causa da corrupção. Temos que acabar com a corrupção na prisão e recuperar os equipamentos tecnológicos. Quando convém a eles, funcionam. Temos que resgatar os sistemas de controle, instalar inibidores de celulares e isolar os líderes dos grupos criminosos. A polícia tinha que estar nas ruas, não nos escritórios. São 5 mil policiais no setor burocrático. A Imigração vira para o outro lado e a pessoa passa. Precisamos de uma equipe de trabalho, atuando em várias frentes e de forma permanente.
O narcotráfico se infiltrou na estrutura de Estado do Equador?
No poder político, no atual governo, eu não sei. No governo anterior, isso era claro. Não sei se o partido de Noboa foi financiado pelo narcotráfico. É claro que o narcotráfico se infiltrou entre juízes e promotores. É preciso implementar promotores e juízes sem rosto. Mas temos que depurar o sistema judicial, as Forças Armadas, a Polícia Nacional. Eu aplicaria o polígrafo (detector de mentiras). Nós aplicávamos prova de confiança para cada policial. Tudo isso foi derrubado. A polícia foi tomada pela corrupção e infiltrada por esses grupos.
Alguns especialistas e a ministra Mónica Palencia dizem que a situação se deteriorou durante seu governo...
Que louco! Basta olharmos as cifras. Éramos o segundo país mais seguro da América Latina. Mónica Palencia não é especialista em nada. É uma mexicana, que foi nacionalizada por eles porque queria virar presidente. Que ela apresente uma prova disso. É uma barbaridade que dizem. Disseram que fiz um pacto com o crime organizado. Se isso fosse verdade, teríamos sido os principais importadores de droga para a Europa. Agora, sim, somos os principais. É muita irracionalidade.
O senhor vê a ação de cartéis mexicanos dentro do Equador?
Segundo informes de inteligência, a hipótese mais crível é a de que, a partir de 2017, com o enfraquecimento do Estado e a perda de mercados na América do Norte, que ocorreu em 2010 ou 2011, esses cartéis entraram, em sua casa, como se fossem cães. Firmaram pactos com grupos da delinquência organizada, como Los Lobos e Choneros. Os Choneros se aliaram ao Cartel de Sinaloa e os Lobos se separaram e fazem negócios com o Cartel de Jalisco Nueva Generación. Com o enfraquecimento do Estado, tiveram financiamento e a crise econômica para captar jovens, armar-se e infiltrar-se. As autoridades sabem de onde sai a droga: do porto de Guayaquil. Por que não colocam escâneres? Multiplicaram-se as permissões de exportação para empresas fantasmas. Não fazem nada. Porque o narcotráfico se infiltrou no Estado.