Os homens encapuzados invadiram o estúdio da emissora pública TC Televisíón, em Guayaquil, por volta das 14h20 (16h20 em Brasília), durante o programa ao vivo El noticieiro. Carregavam pistolas, uma espingarda, bananas de dinamite e granadas. "Querem matar todos nós. Ajudem-nos, por favor", escreveram jornalistas em mensagens enviadas para a polícia. A transmissão não foi interrompida. Ao fundo, era possível escutar tiros, detonações e gritos. Um dos marginais chegou a colocar uma dinamite no bolso da camisa do apresentador, que implorava por sua vida. Enquanto o drama se desenrolava no estúdio, em Quito, a 405km ao norte, o presidente equatoriano, Daniel Noboa, declarava guerra total às organizações do narcotráfico.
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"Assinei o decreto executivo declarando Conflito Armado Interno e identifiquei os seguintes grupos do crime organizado transnacional como organizações terroristas e atores não estatais beligerantes", escreveu na rede social X (antigo Twitter), ao citar 22 grupos criminosos, entre eles os Águilas, Choneros, Lobos, Patrones, Los Tiburones e Tiguerones", anunciou. "Ordenei às Forças Armadas a executarem operações militares para neutralizarem esses grupos." Por volta das 17h50 (19h50 em Brasília), Noboa instalou oficialmente o Conselho de Segurança Pública do Equador (Cosepe) e avisou: "Não permitiremos que grupos terroristas perturbem a paz do país".
Horas depois, a polícia invadiu a emissora e prendeu 13 pessoas. Todas foram formalmente indiciadas pelo crime de terrorismo. "Como resultado da intervenção na TC Televisión, nossas unidades policiais até o momento conseguiram apreender vários indivíduos e indícios vinculados ao ilícito", anunciou a força de segurança, também por meio da rede social. O Correio entrou em contato com uma jornalista da emissora, mas ela declinou o pedido de entrevista. "Sinto. Não é o momento. Há muita comoção agora", justificou-se. Na segunda-feira (8/1), em resposta à fuga de Adolfo Macías "Fito" — chefe da quadrilha Los Choneros —, Noboa tinha decretado estado de exceção por 60 dias e impôs toque de recolher de seis horas, entre as 23h e as 5h. A medida também passou a vigorar dentro das penitenciárias do país.
Como reação ao estado de exceção, criminosos semearam o terror no Equador, que vive uma crise de segurança desde o assassinato do candidato a presidente Fernando Villavicencio, em 9 de agosto passado. Os marginais sequestraram sete policiais em Machala (sudoeste), em Quito e em El Empalme (sul), explodiram um posto policial, incendiaram carros e detonaram um artefato diante da casa do presidente da Corte Nacional de Justiça, Iván Saquicela. Em penitenciárias de cinco cidades, detentos fizeram reféns 125 guardas carcerários e 14 funcionários administrativos. Na Universidade de Guayaquil, houve pânico e terror, depois que criminosos tentaram sequestrar estudantes. Alunos e professores ergueram barricadas dentro das salas de aula com cadeiras e mesas.
Advogado constitucionalista baseado em Quito, André Benavides afirmou ao Correio que a situação no Equador é "bastante crítica". "Vários grupos de delinquentes tomaram emissoras de televisão e terminais de ônibus. O presidente decretou o conflito armado interno, o que supõe o uso das Forças Armadas não apenas para efetuar as prisões desses grupos, mas para neutralizá-los", explicou, por telefone. "Estamos vivendo uma guerra interna com os delinquentes. Estou certo de que as forças armadas conseguirão neutralizar esses grupos organizados."
Com a experiência de quem trabalhou ao lado das forças policiais por duas décadas, a equatoriana María Fernanda Noboa González— Ph.D. em estudos estratégicos e de segurança — entende que o caos teve início com a assinatura de um acordo de paz com a Colômbia e a legitimação das dissidências das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc), a maior guerrilha da América Latina. Tal cenário, combinado aos efeitos da pandemia da covid-19, teria levado a uma profissionalização dos grupos criminosos. "Eles começaram a estabelecer zonas de soberania e de governança, especialmente nas áreas próximas à costa e aos portos, entre elas a região de Guayaquil, a província de Esmeraldas (norte) e alguns setores montanhosos do Equador, no leste", disse ao Correio.
González compara o penúltimo decreto de Noboa, assinado na segunda-feira, a um estado de exceção e esclarece que a transferência de lideranças do narcotráfico entre estabelecimentos do sistema penitenciário levouo Palácio de Carondelet, sede do Executivo, a tomar a medida. "O toque de recolher imposto pelo decreto de anteontem deflagrou uma série de incidentes negativos, em termos de segurança. Como várias ordens partiram de dentro das prisões, as penitenciárias passaram a ficar sob custódia das Forças Armadas e da polícia. Os pretextos foram a fuga de um dos líderes dos grupos criminosos e rebeliões sincronizadas em seis presídios."
De acordo com o jornalista Christian Zurita — amigo de Fernando Villavicencio e testemunha da execução do candidato a presidente, em 9 de agosto passado —, a invasão de criminosos à emissora TC Televisión teve o objetivo de semear terror em toda a população equatoriana. "Entrar em um canal de tevê com dinamites, disparare deixar feridos é um fato para demonstrar que eles são os que detêm a capacidade decontrolar o país", disse à reportagem. "Sob essas circunstâncias, o ataque à imprensa, em um horário de transmissão ao vivo, coloca a sociedade em uma condição por demais vulnerável e de terror."
Enquanto falava ao telefone, Zurita relatava que "incidentes extremamente violentos" ocorriamem boa parte do Equador. "Os eventos obedecem a uma condição e a uma resposta reativa da delinquência organizada. Neste momento, temos ataques desses grupos à Universidade de Guayaquil. Durante a madrugada de hoje (ontem), criminosos roubaram e atearam fogo a carros em várias rodovias", lembrou o jornalista, que também substituiu Villavicencio como candidato nas eleições de agosto de 2023. Ele explicou que o decreto de Noboa qualifica como grupos terroristas as organizações do narcotráfico no país.
EU ACHO...
"O Equador enfrenta uma série de eventos sistemáticos organizados pela delinquência. Eles ocorrem em várias cidades e províncias do país. Foi uma medida de retaliação atransferência de um criminoso, Adolfo Macías ('Fito'), de uma prisão da provínciade Guayas para outro centro de reabilitação social. Isso foi uma das questões que detonaram o caos."
André Benavides, advogado constitucionalista baseado em Quito
"O decreto de Noboa é uma reação aos atos de violência das últimas horas. Desde o assassinato de Fernando Villavicencio, estamos imersos nessa condição de brutalidade. O governo tentou ser prudente no manejo desse tema e buscou dar prioridade a assuntos econômicos. Será preciso dispor de muita força, trabalho, decisão e determinação para neutralizar esses grupos."
Christian Zurita, amigo de Fernando Villavicencio e testemunha da execução do candidato a presidente
PALAVRA DE ESPECIALISTA
"É preciso atacar as causas estruturais"
"Espera-se do Equador uma reinstitucionalização de todo o setor de segurança. Não se pode pensar que se pode controlar a violência com mais violência, com mais ações de força. Também é preciso atacar as causas estruturais da criminalidade organizada e da explosão de violência: a impunidade e a corrupção. Descriminalizar um Estado que está em processo de criminalização implica em ações tomadas pelas várias agências do governo, assim como no bom funcionamento do Judiciário, no manejo da Assembleia Nacional do Equador, dos meios de comunicação e do setor acadêmico.
O presidente Noboa pediu uma cooperação internacional junto ao comando policial e militar de países amigos, no sentido de orientar as linhas de ação estratégica e táticas para neutralizar ou antecipar a ameaça. Noboa tenta aplicar o chamado Plano Fênix, mas os resultados ainda são parciais. Chegamos ao ponto de violência transbordando pelas ruas e da consolidação de vários mercados criminais.
O contágio se deve ao contato com a Colômbia e com todo o fortalecimento das ações, sobretudo na zona de Nariño, na fronteira equatoriana-colombiana. Houve um descuido em relação aos critérios sobre como conduzir a inteligência do Estado e um desmantelamento, por parte dos governos anteriores, do ministério coordenador da segurança. Isso causou o enfraquecimento da capacidade do Estado para manter uma governança da segurança." (RC)
María Fernanda Noboa González, equatoriana, Ph.D. em estudos estratégicos e de segurança