Menos de um mês depois de receber uma carta de signatários da Declaração Casablanca pela Abolição da Barriga de Aluguel — documento firmado em 3 de março de 2023 por mais de 100 especialistas de 75 países —, o papa Francisco pediu o fim da prática em todo o mundo e qualificou-a como "deplorável". "O caminho até a paz exige o respeito da vida, de toda vida humana, a começar pela do menino não nascido no seio materno, que não pode ser suprimida nem converter-se em produto comercial. Nesse sentido, considero deplorável a prática da chamada barriga de aluguel", declarou o pontífice.
Para Francisco, a prática representa "grave violação da dignidade da mulher e da criança, baseada na exploração de situações de necessidade material da mãe". "Um filho é sempre um presente, nunca um objeto de contrato. Por isso, apelo à comunidade internacional para que se comprometa a proibir universalmente esta prática", disse. O líder católico defendeu que, em cada momento de sua existência, a vida humana deve ser preservada e tutelada. No entanto, admitiu constatar, "com pesar, especialmente no Ocidente, a persistente difusão de uma cultura de morte, que, em nome de uma falsa compaixão, descarta crianças, idosos e enfermos".
Coordenador da Declaração Casablanca pela Abolição da Barriga de Aluguel e doutor em direito, o franco-chileno Bernard Garcia Larrain admitiu ao Correio que está "muito contente" com as palavras de Francisco. "Nós mesmos estivemos em contato com o Vaticano. Fomos lá em maio e em setembro passado, onde nos reunimos com a Câmara Pontifícia pela Vida e com a Secretaria de Estado. A nossa porta-voz, Olivia Morel, escreveu uma carta ao papa há uma semana, na qual pediu-lhe apoio no tema", explicou. Larrain espera que a demanda de Francisco pelo fim da barriga de aluguel tenha um efeito "muito positivo". "A voz do papa é escutada em todo o mundo, não apenas pelos cristãos. Este pontífice, em especial, costuma ser ouvido para além dos ambientes cristãos. Para a Santa Sé, esse não é um tema religioso, mas humano", observou o jurista, que vive no Líbano.
"Se o Papa não defender a humanidade contra a exploração reprodutiva da barriga de aluguer, quem o fará?", questionou ao Correio a francesa Aude Mirkovic, professora de direito privado e diretora jurídica da ONG Juristes pour l'enfance ("Advogados pelas crianças"), baseada em Lyon. Durante anos, ela trabalhou incansavelmente para tentar decifrar questões relacionadas à barriga de aluguel escondidas atrás de slogans e de fotos de casais sorridentes e com filhos felizes. "Isso é uma fachada. A realidade mostra-se diferente: a de um mercado de escravos moderno. Em um catálogo, escolhemos o nosso transportador, o nosso fornecedor de ovócitos e de esperma; programamos a concepção de uma criança no laboratório; com uma cesariana agendada previamente para podermos reservar as passagens aéreas. O bebê é separado da mãe biológica. Os 'pais' talvez sejam amorosos, mas ainda são estranhos à criança", comentou.
Mirkovic considera encorajador que o papa, "uma personalidade mundialmente famosa e desprovida de conflito de interesses", peça ao corpo diplomático que se empenhe em uma abordagem internacional, a fim de proibir a barriga de aluguel. A espanhola Berta O. Garcia, vice-diretora da Coalizão Internacional para Abolição da Maternidade de Aluguel, afirmou à reportagem que não ficou surpresa com as declarações do pontífice, apesar de considerar que o líder catòlico demorou muito para fazê-las. "Acima da fé, estão os interesses de uma indústria muito poderosa, que se enriquece por meio da exploração reprodutiva das mulheres e da colocação de seus filhos à venda", lamentou. Ela aposta que as palavras do papa podem "agitar as consciências entre os crentes". "Resta saber se tais falas surtirão algum impacto político. Seria algo certamente desejável", disse.
Filha de barriga de aluguel, a norte-americana Olivia Maurel teve a ideia de escrever uma carta ao pontífice em que pedia-lhe para se pronunciar sobre o tema. "Estamos criando gerações de crianças que sofrerão gravemente. Eu sofri profundamente. Trauma de abandono, temas de saúde mental, drogas e álcool", desabafou ao Correio a porta-voz da Declaração Casablanca pela Abolição da Barriga de Aluguel.
Celibato
Charles Scicluna, arcebispo de Malta e subsecretário do Dicastério do Vaticano para a Doutrina da Fé, defendeu, em entrevista publicada pelo jornal Times of Malta, no domingo, que a Igreja deveria "pensar seriamente" sobre a revisão no celibato do sacerdócio. "Se dependesse de mim, eu revisaria a exigência de que os padres sejam celibatários", declarou. "Esta é provavelmente a primeira vez que digo isso publicamente e pode soar herético para algumas pessoas", acrescentou.
EU ACHO...
"O papa discursou ante os diplomatas e falou de paz. O tema da barriga de aluguel é mundial e tem a ver com a paz. Todos os países têm que trabalhar no sentido da proibição. A barriga de aluguel se insere em um mercado mundial. Ainda que um país proíba a prática, como a França, os cidadãos podem se dirigir a outras nações, entrar em contato com mulheres e retornar com as crianças para sua terra natal. Há clínicas contratadas pela internet. A prática da barriga de aluguel utiliza as mulheres como um meio, e não como uma pessoa, dotada de valor infinito."
Bernard Garcia Larrain, coordenador da Declaração Casablanca pela Abolição da Barriga de Aluguel e doutor em direito
"No começo de dezembro, tive a ideia de escrever uma carta para o papa.Estou extremamente orgulhosa de queFrancisco tenha assumido uma posição tão poderosa contra a barriga de aluguel. Fique muito emocionada ao ouvir o seu discurso.É um grande passo para nós, que trabalhamos arduamente contra a barriga de aluguel. Muitos católicos estão especialmente nos EUA e na Ucrânia, onde a barriga de aluguel é muito usada. Espero que isso abra os olhos de muitas pessoas que seguem o papa e o adoram. Não fazemos comércio vendendo crianças e alugando nossos úteros. Isso é escravidão moderna. Bebês não devem ser arrancados de suas mães ao nascer."
Olivia Maurel, porta-voz da Declaração Casablanca pela Abolição da Barriga de Aluguel e filha de barriga de aluguel
"Espero que as palavras do papa motivem e encorajem os países a embarcarem nessa abordagem internacional rumo à abolição. Pessoas, e Estados, têm confiança no pontífice. Ele não é um político em busca de reeleição, fala em favor da humanidade. Suas palavras tocam além dos católicos: a preocupação de livrar a humanidade desse flagelo reúne pessoas muito diversas. O tema é transpartidário, como demonstra, em particular, a Declaração de Casablanca, que reúne especialistas e todos os lados e tendências, em torno de um objetivo claro: construir um mundo sem barriga de aluguel para as gerações futuras."
Aude Mirkovic, professora de direito privado e diretora judídica da ONG Juristes pour l'enfance ("Advogados pelas crianças")