Quando as bombas israelenses silenciarem na Faixa de Gaza, será a hora de revirar os escombros, sepultar mais mortos e começar a pensar o futuro de um território praticamente devastado. Mais de 10 mil instalações foram completamente destruídas e 20% da infraestrutura ficou danificada. Além do desafio da reconstrução, os palestinos precisarão fazer escolhas políticas e forjar um governo que seja aceito por todas as facções de Gaza e da Cisjordânia.
O primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu, insiste na eliminação do movimento fundamentalista palestino Hamas, responsável pelo massacre de 1,2 mil pessoas em kibbutzim no sul do Estado judeu, em 7 de outubro. "Aqueles que acham que vamos parar vivem desconectados da realidade", avisou. Para Netanyahu, é impensável a existência do Hamas, responsável pelo controle de Gaza antes da guerra.
Em entrevista ao Correio, Basem Naim — chefe do Departamento Político do Hamas em Gaza e ex-ministro da Saúde no enclave — defendeu que "apenas os moradores de Gaza e os palestinos têm o direito de decidir sobre o futuro". "Ainda é cedo para falarmos sobre o tema, antes do fim da agressão à Faixa de Gaza. A decisão será exclusiva dos palestinos. Estamos prontos para fazer parte de um governo de unidade nacional, após discutirmos o assunto internamente e com outras facções."
AFP - Garoto palestino tenta salvar pertences em meio aos escombros de prédio atingido por míssil, em Khan Yunis
Naim acredita que a ocupação e o cerco impostos por Israel serão os principais desafios impostos à reconstrução da Faixa de Gaza. "Uma das principais condições a serem alcançadas imediatamente, tão logo a agressão termine, é o fim do cerco a Gaza, com a abertura de todos os postos fronteiriços e a permissão de entrada de material. Outro desafio será lidar com centenas de milhares de pessoas que perderam suas casas e com toda a infraestrutura destruída. Tudo isso terá que ser reconstruído", disse o líder do Hamas.
Embaixador palestino no Brasil, Ibrahim Alzeben ressalta que a participação do Hamas e de outras facções é estratégia suprema da Organização para a Libertação da Palestina (OLP). "Isso é a democracia. O povo palestino decidirá seu presente e seu futuro, com base no respeito aos intereses supremos da nação e de acordo com o direito internacional. Qualquer pessoa que concordar com estes dois princípios tem o direito de participar no processo democrático." Ele lembrou que o Hamas faz parte do tecido político palestino desde 1987.
Para Alzeben, o mais importante é restaurar a esperança e a segurança, e "abrir a porta à verdadeira paz e à vida normal" em Gaza, na Cisjordânia e em Jerusalém. "Vítimas inocentes não retornarão à vida. Pagamos centenas de milhares de vítimas, enquanto buscamos a nossa soberania e os nossos direitos legítimos, na condição de um povo com seu Estado e seu patrimônio. Vamos reconstruir Gaza e restaurar a vida em suas terras, depois de terem sido contaminadas por bombas. Quando a Segunda Guerra Mundial terminou, a Europa regressou ao seu esplendor. Ainda que o processo seja oneroso, o importante é que haja vontade", acrescentou o embaixador.
IDF/AFP - Soldados israelenses caminham por rua destruída, em meio a combates com o Hamas
Incerteza
Na opinião de Richard Falk — professor de relações internacionais da Universidade de Princeton e ex-relator especial da ONU para a Palestina Ocupada (2008-2014) —, o futuro do controle sobre Gaza é incerto. "Se Israel prevalecer, Gaza estará pronta para ser administrada como um território dividido, com Israel no controle direto da parte norte. O sul será governado de modo indireto, por meio de uma coalizão fraca de palestinos submissos", opinou. "Se Israel não acabar com a devastação, por conta das pressões, especialmente dos EUA, uma unidade administrativa nacionalista palestina mais dedicada provavelmente governará Gaza e continuará a pressionar pela realização dos direitos palestinos, com mais intensidade."
Professor de ciência política da Universidade Bar Ilan, em Ramat Gan, o israelense Gerald Steinberg entende que os arranjos em Gaza serão complexos. Ele espera que Israel se responsabilize pela segurança e mantenha a capacidade militar, enquanto necessário, para impedir a reconstrução da "infraestrutura terrorista". "Na política, a Autoridade Palestina terá papel formal nas eleições. Gaza precisará se transformar de uma entidade corrupta do terror, com serviços sociais e econômicos baseados na dependência da ONU, em uma sociedade autossustentável."
AFP - Garoto palestino tenta salvar pertences em meio aos escombros de prédio atingido por míssil, em Khan Yunis
IDF/AFP - Soldados israelenses caminham por rua destruída, em meio a combates com o Hamas
AFP - Garoto palestino tenta salvar pertences em meio aos escombros de prédio atingido por míssil, em Khan Yunis
"Não aceitamos o patronismo de Israel", diz líder da Iniciativa Nacional Palestina
Em entrevista ao Correio, Mustafa Barghouti, um dos políticos mais influentes da Palestina fala sobre reconstrução do Estado após a guerra
Aos 69 anos, o médico e ativista palestino Mustafa Barghouti ocupa o cargo de secretário-geral da Iniciativa Nacional Palestina. Um dos políticos mais influentes da Palestina, foi cotado para receber o Prêmio Nobel da Paz e chegou a disputar a presidência da Autoridade Palestina (AP), em 2005. Membro do Conselho Legislativo Palestino desde 2006, é um potencial candidato à sucessão do presidente Mahmud Abbas nas próximas eleições. Em entrevista ao Correio, por telefone, Barghouti acusou Israel de querer expulsar a população da Faixa de Gaza para o Egito e advertiu que o enclave palestino será parte do futuro Estado palestino. Ele também defendeu que o Hamas não poderá ser totalmente excluído do processo decisório na Palestina. Ao ser questionado sobre os planos de tentar a sucessão a Mahmud Abbas, Barghouti admitiu: "Estou pronto para ser candidato".
Jaafar Ashtiyeh/AFP - Mustafa Barghouti, leader of the Palestinian National Initiative party, speaks during a press conference about the humanitarian crisis and the political situation in Gaza Strip, in the West Bank city of Ramallah on October 15, 2023, amid the ongoing battles between Israel and the Palestinian Islamist group Hamas. Israeli forces were on October 15, readying for a looming Gaza ground invasion aimed at destroying Hamas, the Palestinian Islamist militant group that unleashed the bloodiest attack in the country's history. (Photo by Jaafar ASHTIYEH / AFP)
Como vê a proposta de um governo unificado da Cisjordânia e da Faixa de Gaza sob a Autoridade Palestina?
Benjamin Netanyahu disse que não há lugar para a Autoridade Palestina na Faixa de Gaza. A meta de Israel é negligenciar Gaza por completo. Eles realizam esses bombardeios terríveis e assassinam pessoas. Nós estimamos que mais de 25 mil palestinos foram mortos desde 7 de outubro, incluindo aqueles que estão sob os escombros. Há mais de 50 mil feridos. Pelo menos 10 mil crianças morreram. Eles bombardeiam todos os lugares e forçam as pessoas a se deslocarem para o sul, para depois empurrá-las para o Egito. Mas as pessoas não sairão. Se elas não saírem, isso significará o fracasso do ataque de Israel.
Como pensa o futuro governo no enclave?
Depois da guerra, os palestinos deveriam ser capazes de formar um governo de unidade nacional, que incluiria todos os grupos palestinos. Ele teria a tarefa de preparar terreno para as eleições livres. Não aceitamos o patronismo de nenhum organismo internacional ou de Israel. Gaza e Cisjordânia estão unidas. A Faixa de Gaza é parte do futuro Estado palestino. Por esse motivo, a única solução é o governo de unidade nacional, com uma liderança nacional unificada. O povo que governa Gaza deveria ser aquele eleito democraticamente pela população.
O Hamas deve fazer parte desse governo de unidade nacional?
O Hamas é parte do povo palestino e parte dos grupos palestinos. Ele não pode ser totalmente excluído. No entanto, o Hamas se mostra flexível em relação a esse assunto. Eles aceitariam apoiar um governo de unidade nacional em que eles confiem, mesmo que não tenham integrantes dentro dele.
Como o senhor imagina que será o esforço de reconstrução da Faixa de Gaza? Concorda com a presença de forças estrangeiras de paz?
Eles podem enviar tropas de paz para permanecerem nas fronteiras da Faixa de Gaza, não dentro do território. Gaza precisa ser controlada pelo próprio povo de Gaza, não por estrangeiros. Se quiserem enviar soldados para ficarem nas fronteiras, poderão fazê-lo. Mas, sobre o tema da destruição de Gaza, Israel tem que pagar compensações por tudo o que eles arruinaram. Seria uma compensação semelhante à que a Argentina pagou a Israel pelas atrocidades contra o povo judeu. O spaíses que participaram da guerra, enviando seus aviões e suas bombas, também terão que contribuir para reerguer o que destruíram. É inacreditável! Mais de 70% das casas de Gaza foram danificadas ou transformadas em ruínas. Eles destruíram todas as universidades, muitos hospitais, 422 estabelecimentos de saúde e mais de 300 escolas. Insisto que Israel deve pagar indenizações. Se não o fizerem dessa vez, retornarão a Gaza e destruirão as coisas.
Os palestinos aceitariam operários de países árabes para ajudarem a reerguer Gaza?
Qualquer um que quiser vir ajudar será bem-vindo. Não vejo problema nisso. Mas Israel tem que pagar as compensações.
O nome do senhor é cotado como potencial sucessor de Mahmud Abbas. Quais serão suas prioridades em um eventual governo palestino?
Sim, se houver eleições democráticas livres, ainda não estou morto... Eu estarei pronto a participar. Não há problema nisso. Eu o fiz em 2005. Estou pronto para ser candidato. A coisa mais importante, para mim, agora, é parar a guerra. Deter a agressão e providenciar um cessar-fogo completo. A segunda prioridade, ao mesmo tempo, é trazer material para apoiar o povo de Gaza. As pessoas estão famintas e privadas de água. Temos infecções em todos os lugares. Temos 350 mil palestinos que estão doentes por causa da falta de água potável e de abrigo. As pessoas estão jogadas nas ruas. Precisamos de suprimentos de primeiros socorros que ainda não chegaram a Gaza. Depois do cessar-fogo, podemos trocar os prisioneiros e começar um processo político verdadeiro, a fim de acabar com a ocupação israelense. Após isso, é claro, a coisa mais importante será reconstruir Gaza e apoiar esse povo maravilhoso, que tem sido submetido a uma inacreditável quantidade de atrocidades e de bombardeios, além de pressão psicológica. Todas as pessoas em Gaza perdera familiares. Alguns perderam uma filha, um pai, uma mãe, um amigo. É algo muito doloroso.
O senhor acredita que essa guerra pode reforçar a luta do povo palestino por um Estado independente e soberano?
Absolutamente, creio que sim. Depois do que está acontecendo, isso mostra que ninguém pode viver novamente sob ocupação. Acho que toda a dor que tivemos, todo o sangue que perdemos deveria abrir a porta para um Estado palestino independente livree democrático. (RC)
DEPOIMENTO - "Apenas os nossos filhos governarão a Palestina"
"Com os seus crimes, Israel transformou Gaza numa terra arrasada. A destruição cobriu todas as partes da Faixa de Gaza de morte e de dor. O mais importante é mostrar a devastação psicológica que transformou uma geração inteira numa geração de resistência e vingança. Falar de paz com Israel para milhares que perderam família, casa, trabalho, escola e granja seria uma espécie de autoengano, piada de mau gosto, na melhor das hipóteses.
Quando a agressão terminar e o massacre parar, apenas os nossos filhos e filhas governarão a Palestina. Apenas os palestinos. Sob a bandeira da Organização para a Libertação da Palestina (OLP). Essa questão, infelizmente, preocupa quem assiste ao massacre e ao genocídio como se fosse um videogame. A questão mais importante é como parar a limpeza étnica na Palestina e como levar os criminosos de guerra para o seu lugar natural, depois de terem destruído a região e as possibilidades de paz."
Ibrahim Alzeben é embaixador palestino em Brasília
EU ACHO...
"A menos que Israel consiga fazer a limpeza étnica de Gaza, ao deslocar os palestinos para o outro lado da fronteira, especialmente para o Egito, o Hamas continuará a marcar forte presença e se tornará mais popular por sua liderança de resistência, sob as mais desafiadoras condições. É importante entender que o massacre israelense se coloca apenas marginalmente sobre Gaza, e está mais centralmente associado à tentativa de ganho do controle da soberania da Cisjordânia. A incoporação da Cisjordânia completaria o projeto sionista de estabelecer Israel 'do rio ao mar', ou seja, do Rio Jordânia ao Mar Mediterrâneo. Tal cenário, caso ocorra, produziria uma forte reação. Israel teria que se submeter a forte solidariedade às iniciativas de apoio à luta pela libertação da Palestina."
Richard Falk, professor de relações internacionais da Universidade de Princeton e ex-relator especial da ONU para a Palestina Ocupada (2008-2014)