Os índices de violência no Brasil recuaram nos dez primeiros meses de 2023, em comparação com o mesmo período do ano passado, segundo dados do Ministério da Justiça e Segurança Pública.
No período foram registrados 30.985 homicídios, uma queda de 3,3% em relação a 2022.
A redução foi um pouco mais acentuada entre os registros de roubo de veículos (6,8%) e, especialmente, de roubos a bancos e outras instituições financeiras (38%).
Ainda assim, o Brasil é considerado um dos países mais inseguros do mundo.
No Índice de Paz Global (GPI), desenvolvido pelo Institute for Economics and Peace (IEP), centro de estudos com sede na Austrália, o país está na 132ª posição, de uma lista de 163 nações.
Mesmo entre países da América Latina, o Brasil está entre os cinco mais perigosos — ficando atrás apenas da Colômbia, da Venezuela e do México.
E a preocupação com a segurança segue sendo uma das principais para a população.
Segundo uma pesquisa do Datafolha divulgada em setembro, seis em cada dez brasileiros sentem insegurança ao caminhar pelas ruas da cidade onde moram.
De acordo com o instituto, 34% dizem se sentir muito inseguros após o anoitecer e 26% responderam ter um pouco de insegurança.
Viver assim, em constante estado de alerta e preocupação com a segurança, pode ser bastante prejudicial para a saúde mental e física, de acordo com especialistas consultados pela BBC News Brasil.
"Não só a violência direta, mas a própria percepção de que ela existe, impacta diferente sistemas do nosso corpo - desde níveis fisiológicos até cognitivos", explica Christian Haag Kristensen, psicólogo e professor da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS).
"A percepção sobre a violência é cada vez mais um tema recorrente entre os pacientes que me procuram."
Mais fácil para alguns, mais difícil para outros
Pedro Henrique de Abreu, de 42 anos, mora em Salvador, cidade que está entre as 15 mais violentas do Brasil, segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública.
A lista, com base em dados de 2022, considera apenas municípios com mais de 100 mil habitantes e tem um total de 50 cidades - das quais 12 delas ficam na Bahia.
Ele afirma que a preocupação e o debate sobre a insegurança são constantes. "Eu ando na rua sempre alerta", diz.
"E isso cansa, porque te mantém permanentemente em um estado de olhar para os lados, virar para trás cada vez que ouve um barulho."
Abreu afirma ainda que por morar em um bairro mais nobre, ser homem e branco considera-se mais privilegiado e acredita que corre menos riscos.
"Mas sempre que recebo visitas me perguntam sobre a segurança, onde é seguro ou onde não andar", conta.
"As pessoas visitam Salvador já com a sensação de que algo vai acontecer a elas, muito porque todos dizem que algo vai acontecer e se cria uma paranoia", afirma ele, que se diz "teimoso" por tentar fugir da sensação de que precisa ter medo e se esconder atrás de muros, grades e alarmes.
Mas, segundo Haag Kristensen, para algumas pessoas pode ser mais difícil fugir do estresse e da tensão causadas pela insegurança urbana.
"O impacto da percepção da violência pode variar de acordo com a maneira como cada um de nós lida com estressores", diz o psicólogo.
Ele explica ainda que esse efeito é mediado pela capacidade de cada ser humano de perceber seus recursos internos e externos para lidar com aquilo que vê como uma ameaça.
A pesquisa do Datafolha sobre a percepção da violência demonstrou, por exemplo, que enquanto 53% dos homens afirmam sentir alguma insegurança em sua cidade. Entre as mulheres, são 65%.
Por outro lado, o ambiente em que cada pessoa vive também pode influenciar como se enxerga a cidade e os seus riscos.
Os mais ricos descrevem a maior diferença entre a percepção da cidade onde moram e do próprio bairro.
Entre quem ganha mais de dez salários mínimos, só 7% disseram se sentir muito seguros ao caminhar nas ruas da cidade.
Mas, em seus próprios bairros, 20% sentem-se dessa forma. A diferença não é tão grande entre os mais pobres.
A pesquisa também apontou maior sensação de insegurança entre os entrevistados nos Estados do Sudeste e Nordeste.
O paulista Arthur Mondin, 59 de anos, diz se sentir mais seguro ao redor da sua casa do que em outras áreas de São Paulo.
Ele vive com a família no Alto da Boa Vista, um bairro nobre na Zona Sul da cidade.
"Faço tudo no meu bairro a pé, mas fico com medo de passar de noite de carro em outras regiões", diz.
"Mas, no meu próprio prédio, muitas pessoas têm pedido por melhoras na segurança. Ano passado até criamos uma associação no bairro para desenvolver um projeto para lidar com o aumento no número de assaltos a pedestres."
Kristensen explica que "existem diferenças na maneira como as pessoas percebem o que está acontecendo também em relação aos recursos que cada um possui para lidar com o que está acontecendo".
"Isso inclui algo que é muito importante nesse processo, que é ter uma rede de apoio ou a percepção de que existe ou não um apoio social."
Como nosso corpo reage à sensação de insegurança?
Segundo o professor da PUC-RS, a exposição crônica a um fator de estresse coloca o corpo em um estado permanente que os especialistas apelidaram de "luta ou fuga".
"Nossos sistemas fisiológicos sabem lidar bem com estressores agudos, mas não tanto com aqueles que são crônicos", diz.
"Quando permanentemente ativados, podem nos levar a quadros de adoecimento."
Esse estado pode prejudicar o sistema imunológico e causar diferentes problemas gástricos e digestivos, como gastrite, úlceras e síndrome do intestino irritável.
Kristensen afirma ainda que disfunções dermatológicas, circulatórias e até reprodutivas - como a diminuição da fertilidade - também podem aparecer.
No campo da saúde mental, as consequências podem ser ainda mais extensas.
Um estudo publicado em 2021 na revista acadêmica Social Science & Medicine, desenvolvido por pesquisadores britânicos e argentinos, mostrou que pessoas que moram em áreas consideradas mais inseguras têm maior probabilidade de desenvolver transtornos, incluindo depressão e sofrimento psicológico.
A pesquisa também encontrou indícios de níveis elevados de ansiedade e sintomas de transtorno psicótico.
Em alguns casos, esse estresse constante pode levar ao que os especialistas chamam de hipervigilância, um estado constante de alerta e sensibilidade sobre os perigos ao redor.
Embora a hipervigilância não seja um diagnóstico, é um sintoma que pode aparecer como parte de diversos transtornos mentais.
Também pode ser causada por exposição a eventos traumáticos ou o sentimento de medo intenso por um período mais longo de tempo.
Pesquisas mostram que alguns dos sinais mais comuns da hipervigilância são a fixação em potenciais ameaças, um reflexo de sobressalto aumentado, pupilas dilatadas, frequência cardíaca mais alta e pressão arterial elevada.
Em alguns casos, esse estado pode levar a sérios impactos na qualidade de vida.
Segundo especialistas, pessoas que exibem esses sintomas podem ter dificuldade para dormir ou relaxar, o que pode piorar ainda mais a sensação de ansiedade ou levar a acessos de raiva.
Problemas de concentração e dificuldade de interação social, especialmente em eventos grandes e locais barulhentos, também são consequências.
Já pessoas que foram de fato expostas a eventos de violência ou algum outro tipo de trauma podem desenvolver o chamado transtorno de estresse pós-traumático (TSPT).
Esse quadro gera sintomas como pensamentos intrusivos do momento do evento, efeitos negativos sobre o pensamento e o humor e alterações no estado de alerta e nas reações.
Kristensen explica que, em muitos casos, a sensação de medo ou insegurança é alimentada por conteúdos consumidos pelas redes sociais ou pela televisão, o que torna a situação ainda mais complexa.
"Aquela ideia de chegar em casa e a ameaça acabar não existe mais", diz.
"Seguimos recebendo de forma ativa ou passiva informações, notícias e imagens de situações de violência pelo grupo do WhatsApp, por exemplo."
Segundo o especialista, esses conteúdos funcionam quase como uma "caixa de ressonância", que continuam nos lembrando das situações de violência e ativando os sistemas de alerta do corpo.
"Tudo ocorre de forma muito sutil, e muitas pessoas não se são conta dos efeitos deletérios que isso tem do ponto de vista da saúde de psicológica."
O que fazer?
Mas o que pode ser feito para mitigar esses efeitos negativos?
Kristensen afirma que consumir informações nas redes sociais com mais critério é uma boa forma de tentar evitar o sentimento de hipervigilância ou a preocupação constante com a segurança.
"Ao invés de ficar passivamente expostas a toda forma de conteúdo, as pessoas devem delimitar o tempo e buscar aquele conteúdo que de fato as interessa", diz.
"Outra estratégia é colocar em perspectiva as informações que recebemos e avaliar: 'essas coisas horríveis que estão acontecendo no mundo estão acontecendo comigo neste momento?'."
Fazer atividades físicas regularmente, ter contato com a natureza e interações sociais saudáveis também podem ajudar a controlar a ansiedade e o medo e se desligar da violência, diz o psicólogo.
Em casos mais graves, buscar ajuda médica e aconselhamento psicológico podem ser imprescindíveis.
Também é importante focar em soluções coletivas, afirma Kristensen, especialmente em situações de maior vulnerabilidade social e menor acesso às soluções individuais.
"É importante poder encontrar dentro das relações na comunidade situações de maior apoio social e interações mais positivas", diz.
"Ou seja, grupos dentro da comunidade ligados ou não a questões religiosas que possam trazer um convívio social com valores e elementos mais saudáveis."
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