ARGENTINA

Argentina enfrenta inconformismo nas ruas e medidas extras na economia

Sindicatos mobilizam milhares em Buenos Aires com o objetivo de pressionar a Justiça a derrubar os planos de ajuste de Milei. Presidente envia novo projeto ao Congresso e diz que convocará plebiscito se pacote for rejeitado

Milhares de argentinos voltaram às ruas de Buenos Aires, ontem, contra o recém-empossado governo de Javier Milei. Na terceira manifestação em repúdio ao superpacote de ajuste do presidente ultralibertário, cerca de 20 mil pessoas desafiaram as restrições impostas a protestos e marcharam até o Palácio da Justiça, sede da Suprema Corte. Convocados pelas lideranças das principais centrais sindicais, pediram a declaração de inconstitucionalidade do Decreto de Necessidade e Urgência (DNU), que impulsiona uma profunda desregulação econômica no país.

O Congresso, onde o governo tem a terceira minoria, pode invalidar o decreto, mas é um trâmite que levaria vários meses. Na noite de terça-feira, em entrevista a uma emissora de televisão argentina, Milei afirmou que, se o Parlamento rejeitar o DNU, ele "convocará um plebiscito".

"Eles não conseguem aceitar que perderam, que o povo escolheu outra coisa", repreendeu. Pela Constituição, porém, caso uma consulta seja convocada pelo Executivo, ela é sempre não vinculante. As declarações do presidente seriam, assim, uma forma de marcar posição política.

Emergência

Enquanto a marcha seguia pela capital, o porta-voz de Milei, Manuel Adorni, anunciava o envio de um outro pacote de medidas ao Congresso para ser discutido em sessões extraordinárias. "O texto inclui reformas profundas, necessárias e urgentes em questões tributárias, trabalhistas, criminais, energéticas e eleitorais", assinalou Adorni, em uma coletiva de imprensa. Entregue ao Parlamento pelo ministro do Interior, Guillermo Francos, o projeto, com 664 artigos, declara emergência pública até 31 de dezembro de 2025.

Segundo Adorni, trata-se de um complemento ao DNU, divulgado na semana passada. Na ocasião, argentinos também foram às ruas, com panelas, para protestar contra as medidas, que incluem a revogação de normas trabalhistas, privatização de empresas e alterações de leis. "Os senadores e deputados da nação terão que escolher se vamos em direção à liberdade, para acabar com essa decadência", disse, em referência à crise no país.

A mobilização de ontem foi convocada pela Confederação Geral do Trabalho (CGT), pelo Sindicato dos Trabalhadores da Construção (UOCRA) e pela Associação dos Trabalhadores do Estado (ATE), entre outros. Organizações sociais também aderiram à mobilização. 

Há duas semanas, poucos dias após tomar posse, Milei adotou um protocolo com restrições à realização de protestos, inclusive suspendendo benefícios sociais de quem participar dos atos. Com policiamento reforçado, houve confrontos e detenções.

Aos gritos de "a pátria não se vende" e agitando bandeiras argentinas, os manifestantes apoiaram a petição entregue pelas centrais sindicais à Justiça contra o decreto que inclui a reforma de mais de 300 leis e que entrará em vigor amanhã, no âmbito de um forte ajuste fiscal. 

"Não questionamos a legitimidade do presidente Milei, mas queremos que respeite a divisão dos poderes. Os trabalhadores têm a necessidade de defender seus direitos quando há uma inconstitucionalidade", disse à imprensa Gerardo Martínez, secretário-geral do sindicato da construção, um dos líderes da manifestação em frente ao Palácio dos Tribunais de Buenos Aires.

"Viemos dizer 'não' ao decreto porque ignora um dos poderes do Estado, o Congresso", disse à agência de notícias France Presse (AFP) Adrián Grana, um dos manifestantes, para quem a iniciativa presidencial "é um decálogo para favorecer os poderosos em demérito do povo".

Diálogo

O "decretaço", como vem sendo chamado pelos argentinos, limita o direito à greve, modifica convênios trabalhistas e o sistema de indenizações por demissão, redefine a jornada de trabalho, abre as portas à privatização de empresas públicas e revoga leis de proteção aos consumidores contra aumentos dos preços, num momento em que a inflação passa de 160% e a pobreza atinge mais de 40% da população.

"Hoje (ontem), nós nos voltamos para a Justiça, mas há outro capítulo centrado no Congresso, que terá que fazer um debate profundo (sobre o conteúdo do decreto), observou Martínez. O dirigente sindical instou o governo a "formar uma mesa coletiva de diálogo tripartite com empresários e sindicatos, como tiveram outros países que atravessaram um ajuste severo".

Entre os pontos polêmicos do decreto estão a revogação da lei de mobilidade da aposentadoria e da que regula os aluguéis. O DNU também libera o preço de comissões bancárias e taxas punitivas para dívidas e permite aos clubes esportivos se tornarem sociedades anônimas.

"O decreto é destrutivo de todos os direitos trabalhistas. O povo argentino elegeu Milei como presidente da nação, não como imperador", criticou Martín Lucero, um professor de 45 anos que veio de Rosário apoiar a marcha. Ainda na semana passada, a Justiça abriu um expediente para analisar uma ação coletiva contra o decreto.

Javier Milei, que assumiu o cargo em 10 de dezembro, convocou o Congresso a celebrar sessões extraordinárias que foram instaladas anteontem para tratar leis complementares ao decreto, como as reformas de impostos e à lei eleitoral, entre outras.

Milei também encerrou por decreto cerca de 7 mil contratos de funcionários públicos no âmbito da redução dos gastos do Estado, que visa a chegar ao equivalente a 5% do Produto Interno Bruto (PIB). "Todas as medidas me atravessam em cheio, vão nos matar de fome", disse Sofía Julián, 33 anos, que vive na periferia sul de Buenos Aires. "Estamos unidos e organizados e vamos continuar lutando para nos opor às decisões que este governo tomar contra o povo argentino", acrescentou.

 


Mais Lidas