Um vídeo que mostra uma juíza gritando com uma testemunha durante uma audiência virtual viralizou nas redes sociais nos últimos dias. Nas imagens, Kismara Brustolin, do Tribunal Regional da 12ª Região (TRT-SC) sobe o tom de voz para interromper o depoimento e exigir que o homem a chame pelo pronome de tratamento “excelência”.
Sem que a testemunha atendesse aos pedidos, a juíza encerrou o depoimento durante a sessão da Vara do Trabalho de Xanxerê e disse que ele seria desconsiderado.
Em nota enviada à BBC News Brasil, o TRT-SC informou que “a juíza foi afastada das audiências até que seja concluído o procedimento apuratório de irregularidade pela Corregedoria Regional ou verificada eventual incapacidade laboral, com o seu integral afastamento médico”.
Para Silvia Souza, conselheira federal da OAB São Paulo e presidente da Comissão Nacional de Direitos Humanos da OAB, a juíza “se excedeu”. Ela reconhece que o juiz é a autoridade máxima em um julgamento e deve ser respeitado, mas o mesmo deve ocorrer em relação às outras partes do processo.
“Às vezes esse poder sobe à cabeça e a pessoa acha que pode gritar com a testemunha ou advogado e isso é incompatível com a atividade da magistratura. Essa posição (de juiz) não pode ser confundida com uma posição autoritária e ditatorial”, afirma à BBC News Brasil.
Na visão de Souza, a testemunha demonstrou na gravação que não estava acostumada com o ambiente jurídico e não entendeu o que a juíza falou.
“Ele (testemunha) inclusive diz: ‘eu não estou entendendo’. Ele não se referiu a ela (juíza) de forma desrespeitosa ou que maculasse a liturgia jurídica. Já a resposta dela denota autoritarismo. O juiz está ali para prestar um serviço ao povo e precisa se comunicar de modo que todos compreendam o que está acontecendo”, diz.
Para a conselheira federal da OAB, comportamentos como o da juíza devem ser denunciados, expostos e investigados. Ela afirma que todas as partes do processo, inclusive o magistrado, devem ter um tratamento respeitoso.
Ela afirma que, “por conta de um sentimento de superioridade”, já presenciou juízes se negando a conversar com advogados.
No entanto, a lei federal 8906, de 1994, prevê que juízes e advogados devem ser tratados de maneira igualitária.
“Não há hierarquia nem subordinação entre advogados, magistrados e membros do Ministério Público, devendo todos tratar-se com consideração e respeito recíprocos”, diz o texto.
É obrigatório chamar o juiz de excelência?
No vídeo da audiência que viralizou, realizada no dia 14 de novembro de 2023, a juíza chama a atenção da testemunha diversas vezes. A intenção da magistrada é exigir que a testemunha a chame de excelência.
“Senhor Leandro, eu chamei sua atenção. O senhor tem que responder assim: 'O que a senhora deseja, excelência?', diz no vídeo.
Na sequência, a testemunha questiona se ele é realmente obrigado a fazer isso.
“O senhor não é obrigado. Mas, se o senhor não fizer isso, o seu depoimento termina por aqui e será totalmente desconsiderado”.
Em seguida, pede para que ele pare de falar e o chama de “bocudo”.
Representantes da seccional catarinense da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) enviaram ofício ao presidente da Corte para cobrar providências. A suspensão, no entanto, não impede Kismara de proferir sentenças e despachos pendentes.
A juíza alegou que a testemunha "faltou com a educação" e "não cumpriu com a urbanidade", por isso desconsideraria o depoimento.
Mas é realmente obrigatório chamar um juiz de excelência?
Juízes ouvidos pela reportagem disseram que não é obrigatório usar esse pronome de tratamento para juízes.
De acordo com o Manual de Redação do Conselho Nacional de Justiça, disponível em seu site oficial, deve usar “Vossa Excelência” ao se destinar a juízes e outros profissionais. Entre eles, presidente e vice-presidente da República, ministros de Estado, ministros do Tribunal de Contas da União, ministros dos tribunais superiores, membros dos tribunais e governadores e vice-governadores de Estado e do DF.
Silvia Souza, afirma que excelência é o pronome correto para se tratar um magistrado, mas o desrespeito a essa regra não deve ser visto como uma ofensa.
“Você pode esperar que eu saiba dessa regra porque sou advogada. Mas normalmente um cidadão comum só vai chamar o juiz de doutor e isso não deve ser um problema. Se você não recebe do próprio juiz um tratamento que respeite a dignidade humana, o que você vai esperar na hora em que ele for proferir uma sentença?”.
Para ela, o tratamento entre o juiz e as partes deve ser cada vez mais humanizado e igualitário. A coordenadora nacional da Ordem dos Advogados do Brasil criticou inclusive a disposição do Tribunal do Júri.
“A topografia no tribunal coloca o promotor do lado do juiz. Um degrau abaixo, num canto ficam o advogado e o réo, enquanto no outro canto estão os jurados. Se você é uma pessoa leiga e vê o advogado do lado do réu num patamar mais baixo, a leitura é que o promotor está ao lado do juiz e isso influencia na decisão do jurado”, explica.
Em novembro de 2019, o então ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Marco Aurélio Mello repreendeu a advogada Daniela Lima de Andrade Borges durante uma sustentação oral sobre a cobrança de contribuição previdenciária sobre o salário-maternidade.
“Novamente, a advogada se dirige aos integrantes do tribunal como ‘vocês’. Há de se observar a liturgia. É uma doutora, professora…”, disse o ministro na época.
Na sequência, a advogada demonstrou constrangimento, pediu desculpas e seguiu a sustentação.
'Eu sou policial, eu sou juiz'
Na mesma semana, um morador da Asa Sul, em Brasília, ameaçou um entregador de refeições por aplicativo após ele se recusar a levar o produto até o apartamento dele. Os insultos foram gravados pelo próprio entregador, que divulgou as imagens nas redes sociais.
O entregador disse que não era obrigado a fazer isso, se sentiu ameaçado pelas palavras do morador e disse que chamaria a polícia. Nesse momento, o homem respondeu ao entregador com um insulto.
"Não precisa chamar a polícia, não. Eu sou policial, eu sou juiz", diz ele no vídeo, antes de insultar o entregador.
No dia seguinte, o morador, que se identificou como Carlos Augusto, disse em entrevista à TV Globo que não é juiz, mas perito da Justiça. Ele disse que está arrependido.