Javier Milei assumiu a presidência da Argentina há menos de um mês, no dia 10 de dezembro.
Mas as medidas anunciadas por ele foram tantas – e tão arrasadoras – que muitos argentinos acham difícil acreditar que o governo "libertário" ainda tem menos de três semanas no poder.
Na quarta-feira (27/12), o novo presidente argentino enviou ao Congresso um pacote de leis que altera ou revoga cerca de 20 leis em diversos setores, como o tributário, eleitoral e penal.
O pacote é composto por mais de 600 iniciativas que deverão ser debatidas pelo Legislativo argentino, em sessões extraordinárias convocadas por Milei, até o dia 31 de janeiro.
Trata-se da terceira e última parte do conjunto de reformas liberais propostas pelo novo chefe de Estado desde que assumiu o poder, no início do mês.
Na semana passada, Milei já havia gerado forte polêmica ao anunciar, em cadeia nacional, outro pacote de medidas – estas, aprovadas diretamente pelo Executivo, sem passar pelo debate no Congresso.
O "megadecreto" assinado em 20 de dezembro – horas depois de enfrentar o primeiro de vários protestos de organizações sociais – altera ou revoga 366 leis do país. O objetivo é desregulamentar diversos setores da economia, que vão do setor trabalhista, comercial e imobiliário até o de saúde e esporte.
O polêmico "decreto de necessidade e urgência" (DNU) gerou diversos panelaços em vários pontos do país e questionamentos sobre sua constitucionalidade, que deverão chegar à Justiça argentina.
Uma das medidas estabelece a desregulamentação dos preços, que irá aumentar ainda mais o custo de vida no país.
Some-se aos dois pacotes o fortíssimo ajuste anunciado pelo ministro da Economia, Luis Caputo, dois dias depois de assumir o cargo.
As "medidas de emergência" implementadas por Caputo, como parte da terapia de choque para tirar a economia argentina da sua estagnação, incluíram a súbita desvalorização do peso em 54% com relação ao dólar, que repercutiu imediatamente nos preços das lojas e supermercados.
Todas essas medidas, aliadas ao inesperado temporal que causou enormes destruições e perda de vidas em partes da província de Buenos Aires, fizeram com que dezembro acabasse sendo um mês atordoante para muitos argentinos, que terminam o ano repletos de ansiedade e preocupações.
Mas quantos destes anúncios estão de acordo com as promessas de Milei durante a campanha eleitoral, quando ele aparecia nos comícios armado de uma motosserra, como símbolo dos cortes de gastos públicos que se propunha a fazer?
E o que aconteceu com suas propostas de dolarizar a economia e "dinamitar" o Banco Central?
'A casta'
A maior parte das propostas legislativas apresentadas por Milei, tanto no polêmico DNU, quanto no pacote da última quarta-feira, está de acordo com suas ideias "liberais e libertárias". Afinal, elas procuram eliminar muitas das normas que restringem a liberdade de mercado, que é o seu principal objetivo.
O drástico corte de gastos anunciado por Caputo também era esperado.
Uma das principais promessas de campanha de Milei era reduzir o déficit fiscal (ou seja, o desequilíbrio entre receitas e despesas do Estado).
O presidente considera que o déficit é a mãe de todos os problemas econômicos da Argentina, especialmente da inflação, que já supera 160% ao ano.
Mas, durante a campanha, Milei garantiu diversas vezes aos seus apoiadores que o ajuste cairia "sobre a casta", como ele chama, pejorativamente, o setor político.
Depois da posse, Milei substituiu a palavra "casta" por "Estado".
Ele afirmou no seu discurso de posse que o ajuste cairia "com toda força sobre o Estado e não sobre o setor privado".
De fato, sua primeira medida como presidente foi promulgar um decreto que cortou pela metade a quantidade de ministérios, que passou de 18 para 9, e o número de secretarias, que foi reduzido de 106 para 54.
Segundo Caputo, foram reduzidos "em mais de 50% os cargos hierárquicos da política e 34% do total de cargos políticos do Estado nacional".
O novo governo também anunciou que reduziria outros benefícios a que os políticos costumam ter direito, como o uso de assessores, motoristas e telefones celulares.
"Quando chegamos [ao governo], minha irmã começou a analisar. Tínhamos 121 carros. Dois motoristas por carro, para a secretaria-geral da Presidência. Tudo foi retirado", disse Milei em 26 de dezembro, em entrevista ao canal de televisão argentino LN+.
"Luis Caputo encontrou 600 [carros no Ministério da Economia]", prosseguiu Milei. "Fora! Acabaram os privilégios."
No mesmo dia, o presidente argentino assinou outro decreto de redução do Estado, cancelando os contratos de cerca de 7 mil funcionários públicos admitidos no último ano.
O presidente afirma que, se toda essa economia for contabilizada, acrescentando-se o congelamento por um ano das obras públicas e da publicidade estatal, o principal prejudicado pelos cortes é o Estado argentino.
"60% dos ajustes recaem sobre o setor público e 40% sobre o setor privado", repete Milei, em diversas entrevistas a meios de comunicação locais que o apoiam.
'Plano motosserra'
Mas os críticos do presidente libertário destacam que seu "plano motosserra", como foi apelidado pela imprensa, recai principalmente sobre os trabalhadores e não sobre "a casta".
Seu plano de congelar as obras públicas, por exemplo, deixará cerca de 250 mil operários sem trabalho, segundo o sindicato da construção civil.
Já a proposta de suspender por um ano a chamada "pauta oficial" (os avisos institucionais do governo na imprensa) irá gerar demissões e poderá causar o fechamento de meios de comunicação pequenos, com forte dependência dessa receita.
Mas o principal golpe para os trabalhadores foi causado pelo vertiginoso aumento do dólar oficial, que passou, de um momento para outro, de cerca de 400 para mais de 800 pesos.
E a consequente transferência desse aumento para os preços fez com que a inflação dobrasse neste mês, passando de menos de 13% em novembro para mais de 25% em dezembro, segundo a maioria das consultorias privadas.
O influente banco de investimentos norte-americano J. P. Morgan chegou a calcular que a alta de preços irá atingir 60% ao mês no verão argentino.
E some-se ainda o anúncio de que, a partir de janeiro, serão reduzidos os subsídios à energia e ao transporte, que são uma das principais causas do déficit fiscal.
Atualmente, esses subsídios representam um enorme percentual do preço do combustível e das tarifas dos serviços públicos.
E milhões de pessoas dependem desse auxílio do Estado.
"Este não é um ajuste sobre a política, mas sobre os argentinos", resumiu o conhecido jornalista radiofônico argentino Marcelo Longobardi.
Já o economista Diego Giacomini, que foi sócio de Milei por 15 anos e escreveu quatro livros em conjunto com ele antes de romper relações, declarou que não tem certeza se o peso do ajuste irá recair principalmente sobre o Estado.
"Javier Milei sempre prometeu que quem pagaria o plano de ajuste seria a casta, não as pessoas, [mas] quando observamos as medidas com os números oficiais do Ministério da Economia, verificamos que 67% do ajuste está sendo pago pelas pessoas, não pela casta", afirmou ele ao jornal Perfil.
"Sendo generoso, apenas 37% teriam chances de não ser pagos pelas pessoas", destacou Giacomini, que é o diretor da consultoria econômica E2.
'Motosserra vs. liquidificador'
O receio de muitas pessoas na Argentina é que o ajuste leve uma parcela considerável da classe média e baixa para abaixo da linha da pobreza.
Este nível já atinge quase 45% da população do país, segundo a última pesquisa da Dívida Social Argentina, realizada pela Universidade Católica Argentina (UCA).
Afinal, antes mesmo da posse do novo governo, um terço dos trabalhadores registrados já era pobre, devido à redução do salário real.
E este problema será agora agravado, com a aceleração ainda maior da inflação.
"[Milei] trocou a motosserra pelo liquidificador", acusou Carlos Melconian, ex-candidato a ministro da Economia pela coalizão de centro-direita Juntos pela Mudança, em entrevista à Rádio Mitre, de Buenos Aires.
Para o economista, o verdadeiro corte de gastos será feito pela liquefação do poder aquisitivo dos salários e das aposentadorias.
Alguns também defendem que as medidas do novo governo para reduzir o tamanho do Estado têm importância mais simbólica do que real, já que elas representam uma economia muito pequena para os cofres públicos.
"Pura fumaça: o corte do gabinete de Javier Milei representa 0,00142% do PIB", destacou em manchete o portal de jornalismo político Letra P, em referência à economia comparada ao Produto Interno Bruto da Argentina.
Os críticos destacam que os anúncios oficiais não incluem cortes de salários de funcionários públicos e legisladores.
"Existe dinheiro para os capitalistas e ajuste contra os que têm menos, contrariando exatamente o que afirmou Milei, que o ajuste seria pago pela casta", destacou o líder da organização social Polo Operário, Eduardo Belliboni, que convocou a primeira marcha contra os ajustes do governo, em 20 de dezembro.
"A casta está no governo e o ajuste, quem paga é o povo", acusou ele.
Mas o governo salienta que, junto com as medidas de ajuste, foi anunciado um aumento de 100% da assistência oferecida às famílias com menos recursos, através do Abono Universal por Filho, e o cartão-alimentação foi aumentado em 50%.
"Estamos fazendo um enorme esforço", declarou Milei.
Aumento de impostos
Mas não só a liquefação salarial afeta os bolsos dos trabalhadores argentinos, que já perderam cerca de um quarto do seu poder aquisitivo com a constante desvalorização do peso e a inflação crescente desde 2017, segundo as estatísticas oficiais.
A outra forma que Milei pretende usar para atingir seu objetivo de reduzir o déficit fiscal em cerca de 5% do PIB é aumentando certos impostos.
Este aumento é tão contrário aos ideais libertários que uma de suas frases mais conhecidas e repetidas antes de chegar ao poder era: "prefiro cortar um de meus braços a aumentar os impostos".
Seus detratores agora relembram essa citação com frequência nas redes sociais.
Mas seu primeiro pacote de medidas econômicas "de emergência" aumentou os impostos sobre as importações, exportações e a compra de dólares.
E o mais polêmico é que o novo presidente declarou que está disposto a fazer retornar um imposto que ele próprio votou a favor de que fosse eliminado apenas dois meses antes de vencer as eleições, quando ainda era deputado nacional.
Trata-se de um imposto de renda (ou imposto "sobre os lucros", como dizem os argentinos) que foi revogado em setembro passado, a pedido do então ministro da Economia Sergio Massa – o adversário de Milei nas eleições presidenciais – com o voto favorável do libertário.
No dia 19 de setembro, antes de votar a favor da revogação do tributo, Milei deu um breve discurso explicando seu apoio à medida.
Para ele, "o Estado é uma organização criminosa violenta que vive de uma fonte de coação de receita chamada impostos e, por isso, os impostos são um assalto e estarei de acordo com qualquer iniciativa que consista em baixar os impostos."
Milei acrescentou que o imposto de renda "penaliza o acúmulo de capital, o que acaba se manifestando em menos postos de trabalho, menos produtividade e menores salários".
"Mas, como se tudo isso fosse pouco", prosseguiu ele, "nós nos encontramos frente ao delírio descomunal de tratar o salário como lucro, o que é um total delírio e, por isso, esse imposto também é imundo e precisa ser eliminado."
Agora na presidência, Javier Milei afirmou que está disposto a reinstituir este imposto para ajudar a financiar os governos das províncias, que dependem dessa arrecadação para pagar salários.
Por isso, ele incluiu o projeto de lei como terceiro ponto dos temas enviados ao Congresso, ao convocar sessões extraordinárias a partir de 26 de dezembro.
"Para mim, não parece nada simpático, mas a realidade é que isso [a revogação da lei] gerou enorme desequilíbrio nas províncias", argumentou o presidente argentino, na entrevista para o LN+.
O porta-voz do governo, Manuel Adorni, também justificou a reversão em uma de suas entrevistas coletivas diárias.
"Milei, enquanto deputado, votou para revogar o imposto. Ele nunca deixou de afirmar no momento oportuno que [a medida] precisava vir acompanhada de uma redução de gastos, que o Executivo deveria fazer", declarou ele, criticando o governo do presidente anterior, Alberto Fernández, que reduziu gastos e, em seguida, tornou a elevá-los.
Javier Milei também destacou que prefere recriar esse imposto, um dos mais progressivos do país, a enviar fundos nacionais para as províncias, já que isso não permitiria que ele atingisse sua meta de chegar ao equilíbrio fiscal em 2024.
"Não iremos alterar nossa política de déficit zero, ela é inabalável", definiu ele, em entrevista à Rádio Rivadavia.
Imposto transitório
Esta reversão deve ser enviada ao Congresso, que pode aprová-la ou não.
Mas Milei afirma que será uma medida temporária, enquanto a economia do país se recupera e aumentam as reservas do Banco Central, hoje no vermelho.
O presidente disse o mesmo sobre todo seu plano de ajuste: "o que recai sobre o setor privado é transitório", segundo ele.
Este conceito foi ratificado por Adorni, seu porta-voz: "este é um pacote de emergência e qualquer correção de alta será de curtíssimo prazo".
Já o ministro da Economia pediu paciência.
"Podem confiar que, assim que o país der a partida e tivermos superávit e economia, vamos devolver tudo para as pessoas", afirmou Caputo ao canal LN+.
"Como? Com menos impostos, com mais oportunidades de trabalho. E vamos conseguir isso antes do que se acredita."
Mas muitos se mostram céticos sobre a possibilidade de que Milei acabe reduzindo tributos – mesmo os que compartilham a mesma ideologia do governo.
"Na Argentina, os impostos transitórios são permanentes", destacou o economista liberal Roberto Cachanosky no X, antigo Twitter.
Ele ressaltou que o próprio imposto de renda começou de forma provisória e relacionou outros três tributos que começaram "como de emergência" e depois foram mantidos, incluindo as "retenções" ou direitos de exportação que foram criados com a crise de 2001/2002 e acabam de ser novamente aumentados por Milei.
E a dolarização?
Os três pacotes polêmicos anunciados por Milei nas suas primeiras semanas como presidente deixaram de lado um ponto que, durante a campanha, talvez tenha sido sua proposta mais controversa: a eliminação do peso e sua substituição pelo dólar americano, com o consequente fechamento do Banco Central argentino.
Consultado sobre essas famosas promessas eleitorais, o ministro da Economia garantiu que elas continuam no horizonte.
"O presidente sempre fez campanha pela dolarização e pelo fechamento do Banco Central e essas bandeiras não foram perdidas", declarou Caputo.
"Muitas pessoas perguntam e elas continuam sendo as bandeiras."
Mas, para o ministro, estas medidas "não podem ser o ponto de partida".
"Recebemos um paciente em terapia intensiva", comparou ele.
"Primeiro, é preciso retirá-lo da terapia intensiva... você não pode mandá-lo praticar esportes no dia seguinte. Estamos neste processo, fazendo o que é preciso fazer e a única coisa que era possível fazer."
"O ponto de partida é controlar este caos", segundo Caputo, e a dolarização "é a linha de chegada".
"O presidente não mente e isso é algo que quero que fique bem claro: é preciso ter um contrato de verdade com as pessoas", concluiu o ministro.
Gostou da matéria? Escolha como acompanhar as principais notícias do Correio:
Dê a sua opinião! O Correio tem um espaço na edição impressa para publicar a opinião dos leitores pelo e-mail sredat.df@dabr.com.br