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'Minha religião permite o aborto': as judias e muçulmanas que brigam na Justiça por direito de abortar nos EUA

Desde que Suprema Corte anulou direito constitucional ao aborto, dezenas de Estados aprovaram leis que proíbem o procedimento; muitas estão sendo contestadas com argumento até então empregado por opositores do aborto: o da liberdade religiosa.

Ativistas pelos direitos ao aborto e contra-manifestantes protestam em frente à Suprema Corte dos EUA em junho de 2023 -  (crédito: Reuters)
Ativistas pelos direitos ao aborto e contra-manifestantes protestam em frente à Suprema Corte dos EUA em junho de 2023 - (crédito: Reuters)
BBC
Alessandra Correa - De Washington para a BBC News Brasil
postado em 21/12/2023 05:58 / atualizado em 21/12/2023 12:11

Desde o ano passado, quando a Suprema Corte, a mais alta instância da Justiça dos Estados Unidos, anulou o direito constitucional ao aborto, que vigorava desde 1973 e se aplicava a todo o país, dezenas de Estados aprovaram leis que proíbem a interrupção voluntária da gravidez quase completamente.

Muitas dessas leis estão sendo contestadas na Justiça com um argumento até então comumente empregado por opositores do aborto, mas agora usado para defender o acesso ao procedimento: o da liberdade religiosa.

Fiéis e líderes de diversas religiões, entre eles judeus, muçulmanos e membros de denominações cristãs, argumentam em ações judiciais que suas crenças permitem e até recomendam o aborto em circunstâncias proibidas pelas leis estaduais.

Nestas e em outras religiões, há visões diversas sobre o aborto, condenado por algumas denominações e aceito por outras, em certas situações.

Segundo o instituto Brennan Center for Justice, ligado à Universidade de Nova York, desde a decisão da Suprema Corte, já foram movidos pelo menos 38 processos contestando a proibição do aborto em 23 Estados.

Calcula-se que pelo menos 15 dessas ações usem o argumento de que as restrições infringem as garantias de liberdade religiosa ou a separação entre religião e Estado.

Esses processos alegam que as leis violam o direito ao livre exercício da religião, tanto de mulheres cuja crença permitiria o aborto, quanto de líderes religiosos, já que as proibições interferem em sua capacidade de aconselhar seus fiéis sobre o tema.

Outro ponto alegado em alguns casos é o de que as proibições incorporam uma ideologia cristã conservadora nas leis estaduais.

Defensores e autores dessas leis muitas vezes citam explicitamente a crença de que a vida começa no momento da concepção (na união do espermatozoide com o óvulo) para justificar a proibição ao aborto.

No entanto, várias mulheres e líderes religiosos afirmam não compartilhar dessa crença, que pertence a certos grupos cristãos.

"Embora algumas religiões acreditem que a vida humana começa na concepção, esta não é uma opinião compartilhada por todas as religiões ou por todas as pessoas religiosas", ressaltam advogados da União Americana pelas Liberdades Civis (ACLU, na sigla em inglês), que representam os autores de uma ação coletiva em Indiana.

Crença judaica

Uma das ações é movida por Lisa Sobel, Jessica Kalb e Sarah Baron, três mulheres judias na faixa dos 30 anos, que têm filhos e precisariam de fertilização in vitro para engravidar novamente.

Elas contestam as leis do Kentucky, que estão entre as mais restritivas do país e proíbem o aborto mesmo em casos de incesto ou estupro, a não ser para evitar riscos graves à saúde da gestante.

Sobel, de 39 anos, diz à BBC News Brasil que entrou na Justiça não porque não quer mais filhos, mas exatamente porque tem vontade de aumentar a família.

Quando deu à luz sua filha, em 2019, já havia passado por duas rodadas de fertilização in vitro para conseguir engravidar e, após o parto, sofreu hemorragia grave e necessitou de transfusão de sangue de emergência

Sobel e o marido são membros ativos de uma sinagoga reformista. De acordo com sua crença judaica, o aborto seria permitido para preservar a saúde física ou mental da gestante e até exigido se o feto não for sobreviver após o nascimento.

"Nossa crença judaica é de que a vida não começa na concepção, mas sim no primeiro suspiro (no nascimento)", diz Sobel à BBC News Brasil.

"E de que minha vida (da gestante) tem precedência sobre o feto, e isso é importante, porque preservar a minha vida me permitiria cuidar da minha filha e, em teoria, me permitiria ter outros filhos."

Sobel afirma, no entanto, que, se tiver complicações em uma nova gestação, não terá acesso a um aborto.

Diz ainda que, se após fertilização in vitro, precisar descartar embriões excedentes, poderia ser punida pelas leis do Kentucky, que consideram que a vida começa na concepção e são ambíguas, deixando incertezas em relação à fertilização in vitro.

Muitas vezes, para mulheres judias devotas, a decisão de interromper uma gravidez é tomada após consulta com seu rabino.

Mas, no caso de Estados em que o procedimento é proibido, mesmo que o rabino recomende, elas não teriam essa opção.

"Nossas clientes querem praticar sua religião. E o judaísmo comanda ser fecundo e se multiplicar", diz à BBC News Brasil o advogados Aaron Kemper, afirmando que as leis as impedem de ficar grávidas de uma maneira que esteja de acordo com suas crenças religiosas.

"Como parte dessa religião, elas querem fazer o que for preciso para ter mais filhos."

Crença islâmica

Outro processo que vem gerando atenção foi iniciado em Indiana pelo grupo Hoosier Jews for Choice, que diz defender o acesso ao aborto no Estado em ações "guiadas pelos valores judaicos", e por cinco mulheres anônimas, entre elas três judias, uma muçulmana, e uma que segue o que é descrito como um "sistema de crenças espirituais independentes".

A lei em Indiana só permite o aborto em casos de estupro, incesto, riscos graves à saúde física da gestante ou se o feto tiver uma anomalia letal.

O processo judicial foi posteriormente reconhecido como uma ação coletiva, em nome de todas as pessoas do Estado cujas crenças religiosas as orientariam a obter um aborto em situações que são proibidas por lei.

Uma das autoras anônimas, que será identificada aqui pela inicial A., é uma muçulmana de 24 anos, recém-formada na universidade, que não é casada, não tem filhos e nem pretende ter.

Ela e as outras autoras do processo dizem temer engravidar e, por conta das proibições estaduais, não ter acesso a um aborto caso necessitem, mesmo que fosse autorizado ou orientado por suas religiões.

A. diz que "há uma variedade de pontos de vista entre os muçulmanos sobre quando precisamente a vida começa e as circunstâncias sob as quais o aborto é obrigatório, recomendado ou permitido pelo Islã".

Também diz acreditar que, "conforme os ensinamentos do Islã, a vida da gestante, incluindo o seu bem-estar geral, sempre tem precedência sobre o feto".

Como tem doença de Crohn (que afeta o aparelho digestivo), ela toma medicamentos que não são recomendados durante gravidez e diz ter risco maior de aborto espontâneo ou outras complicações.

A. evita fazer um controle de natalidade com hormônios por temer efeitos colaterais devido a sua doença e diz que a única maneira de garantir que não precisará de um aborto é "se abster de relações sexuais".

Os advogados de A. dizem que, como muçulmana, "entre suas crenças está a de que a vida não começa na concepção" e que "até que o feto ganhe consciência, ou talvez uma alma, chamada de ruh em árabe, o feto é apenas parte do corpo da mãe".

O texto da ação menciona que "pela tradição islâmica, o ruh é soprado no útero por volta dos 120 dias de gestação".

"Estudiosos muçulmanos indicam que, dentro de 40 dias após a concepção, é apropriado buscar um aborto por qualquer motivo, incluindo motivos não autorizados (pela lei de Indiana)", dizem os advogados.

"(Após 40 dias), o aborto ainda pode ser obtido se houver necessidade urgente que o justifique aos olhos da lei islâmica, incluindo a saúde física ou mental da mãe."

Divisões no cristianismo

Também no cristianismo há divisões. Nos Estados Unidos, a Igreja Católica, a Assembleia de Deus, a Igreja Mórmon e a Convenção Batista do Sul estão entre as que condenam o aborto completamente.

Outras, como Episcopal, Evangélica Luterana na América, Unida de Cristo e Metodista Unida permitem o procedimento em situações que são proibidas em vários Estados.

Alguns processos contestam a "linguagem abertamente religiosa" nas leis do aborto.

No Missouri, o grupo Americanos Unidos pela Separação entre Igreja e Estado e o Centro Nacional de Direito da Mulher moveram ação em nome de líderes de sete denominações, entre eles das igrejas Unida de Cristo, Metodista Unida e Associação Unitária Universalista, rabinos e um bispo episcopal.

Segundo os autores, a lei interfere em sua liberdade religiosa, demonstra preferência por uma religião e viola a Constituição do Estado.

Eles citam, entre outros pontos, um trecho da lei que diz que "Deus Todo-Poderoso é o autor da vida" e pronunciamentos de legisladores nos debates, ressaltando a fé cristã e a crença de que a "vida começa na concepção".

Na Flórida, a lei que proíbe o aborto a partir de 15 semanas de gestação foi contestada em ações movidas por rabinos, líderes budistas e das igrejas Episcopal, Unida de Cristo, Associação Unitária Universalista e outras denominações.

Um dos argumentos é o de que a lei interfere no direito ao livre exercício da religião, garantido na Constituição, e ameaça a separação entre Igreja e Estado.

"Desde tempos imemoriais, as questões de quando um feto se torna uma vida e como valorizar a vida materna na gravidez têm sido respondidas de acordo com crenças e credos religiosos", dizem os autores.

"(A lei) codifica um entre os possíveis pontos de vista religiosos sobre a questão e, em sua operação, impõe encargos severos aos fiéis de outras crenças."

Segundo os processos, a lei "estabelece uma elevação perniciosa dos direitos legais dos fetos enquanto, ao mesmo tempo, desvaloriza a qualidade de vida e a saúde da gestante" e está "em conflito direto com as obrigações clericais e a fé" dos autores.

Algumas das ações, como em Indiana e Kentucky, citam as chamadas leis de Restauração da Liberdade Religiosa (RFRA, na sigla em inglês) desses Estados, que proíbem o governo de “onerar substancialmente a liberdade religiosa de uma pessoa”, a não ser que se comprove ter "razão convincente" e use o meio "menos restritivo" para isso.

'Liberdade religiosa vale para todos?'

As RFRA, principalmente em Estados dominados por legisladores conservadores, foram criticadas na época de sua aprovação por abrirem a possibilidade de que a religião fosse usada para discriminar determinados grupos.

Pela RFRA, uma pessoa pode buscar isenção de uma lei ao alegar que "sobrecarrega substancialmente" o exercício de sua fé.

Kemper, o advogado do Kentucky, diz à BBC News Brasil que a RFRA tem sido usada com sucesso “principalmente por cristãos conservadores”.

Ele cita o exemplo do início da pandemia de covid-19, quando o governo estadual ordenou que serviços não essenciais fossem fechados, mas igrejas ganharam na Justiça isenção para reabrir usando a RFRA e o argumento de liberdade religiosa.

"Queremos saber se a lei e a liberdade religiosa se aplicam a todas as religiões ou apenas a um grupo de cristãos", afirma Kemper.

Segundo Christine Ryan, diretora associada de Religião e Direitos Reprodutivos do projeto de Direito e Religião da Universidade Columbia, em Nova York, o argumento da liberdade religiosa para defender o acesso ao aborto não é novo nos Estados Unidos.

Nas décadas de 1960 e 1970, antes de a Suprema Corte garantir o direito constitucional ao aborto, rabinos, líderes de algumas denominações protestantes e de outras religiões já usavam o argumento contra proibições estaduais.

Calcula-se que esses líderes religiosos também tenham ajudado mais de meio milhão de mulheres a interromper a gravidez, mesmo em Estados onde era ilegal.

"Nos tribunais, a liberdade religiosa foi articulada como um direito que impugnava as restrições ao aborto, com dois argumentos principais: de que as proibições violavam a separação entre Igreja e Estado e a cláusula da Constituição que garante o livre exercício da religião", diz Ryan à BBC News Brasil.

A partir de 1973, quando a Suprema Corte garantiu o direito constitucional ao aborto em todo o país, o argumento de liberdade religiosa passou a ser empregado cada vez mais por conservadores cristãos, tanto em ações para restringir o procedimento quanto em outros temas.

Vários Estados passaram a permitir, por exemplo, que profissionais de saúde se recusassem a participar de abortos por motivos religiosos.

'Desafiando a narrativa dominante'

Entre os casos vitoriosos na Suprema Corte nos últimos anos estão desde o de empregadores que não queriam que seu plano de saúde pagasse por contraceptivos, alegando motivos religiosos, até o de um confeiteiro que desafiou leis antidiscriminação e se recusou a fazer um bolo de casamento para um casal gay, já que sua crença religiosa condenava esse tipo de união.

Um dos pontos destacados em decisões do tipo é o de que colocar interesses seculares ou médicos acima de interesse religiosos interfere na garantia de livre exercício da religião, prevista na Constituição federal e nas constituições estaduais.

Especialistas em Direito salientam o fato de que as leis de aborto estaduais trazem exceções por razões seculares, como permitir o procedimento caso a vida da gestante esteja em risco ou, em alguns Estados, em caso de estupro ou incesto.

Ao garantir essas exceções por motivos seculares, o governo estaria enfraquecendo seu argumento para negar exceções por motivos religiosos.

Ryan diz que os novos processos judiciais também são importantes porque, na maioria dos casos, os autores são simplesmente indivíduos que sentem que, devido a sua fé religiosa, devem ter acesso a um aborto ou, no caso de líderes religiosos, ajudar alguém a obter o procedimento.

"Estão desafiando a narrativa dominante de que a religião é (sempre) contra o aborto", afirma Ryan.

"Os tribunais não tiveram problemas em aceitar a religiosidade das reivindicações contra o aborto. Para defender a liberdade religiosa de forma neutra, devem tratar estas reivindicações com (a mesma) seriedade."

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