A uma semana do Natal, o Vaticano deu um passo adiante na inclusão da comunidade LGBTQIAPN na Igreja Católica. Em iniciativa considerada histórica, foi autorizada a bênção não litúrgica de casais do mesmo sexo. Divulgado ontem, o documento segue, de qualquer forma, com o veto explícito ao matrimônio homossexual. A medida também se aplica aos casais tidos como em "situação irregular" pela Santa Sé, como os que estão na segunda união após um divórcio. E promete despertar um novo ponto de tensão com a ala religiosa mais conservadora, na avaliação de especialistas.
"Essa bênção nunca acontecerá ao mesmo tempo que os ritos civis de união, nem mesmo em conexão com eles. Nem sequer com as vestimentas, gestos ou as palavras próprias de um casamento", explica o registro do Dicastério para a Doutrina da Fé, um dos principais "ministérios" da Santa Sé. O texto apresenta uma minuciosa e longa definição do termo "bênção" nas escrituras católicas para insistir que as pessoas que procuram um relacionamento transcendente com Deus e o seu amor não devem ser sujeitas a "uma análise moral exaustiva" para atingi-los. "Em última análise, uma bênção oferece às pessoas um meio de aumentar a sua confiança em Deus."
- Pela primeira vez, Vaticano autoriza bênção para casais homossexuais.
- Por que decisão da Igreja Católica de abençoar casais gays não deve ser passo para reconhecer casamento homoafetivo.
Chancelado pelo papa Francisco, o documento, inclusive, contém uma carta enviada pelo pontífice a dois cardeais conservadores e que foi publicada em outubro. Na resposta preliminar, ele sugeriu que tais bênçãos poderiam ser oferecidas em algumas circunstâncias, contanto que não se confunda o ritual com o sacramento do casamento.
É a primeira vez que a Igreja abre caminho de forma explícita à bênção de casais do mesmo sexo, um tema que suscita tensões em seu seio devido à forte oposição da ala conservadora, especialmente nos Estados Unidos. Apesar de os relacionamentos homoafetivos não serem reconhecidos pela Santa Sé, alguns religiosos já abençoaram casais do mesmo sexo. Isso tem ocorrido, principalmente, na Bélgica e Alemanha.
Debate
A nova declaração foi divulgada um mês e meio após a conclusão do Sínodo sobre o futuro da Igreja Católica. Durante a reunião mundial consultiva, bispos, mulheres e laicos debateram questões sociais como a aceitação de pessoas LGBTQIAPN e os divorciados que se casaram novamente.
Logo na abertura do encontro, no início de outubro, cinco cardeais conservadores pediram publicamente ao papa para reafirmar a doutrina católica sobre os casais homossexuais. Já na época, Francisco se disse aberto à possibilidade de que casais do mesmo sexo recebessem bençãos de padres. O documento final do Sínodo não incluiu essa questão.
A autorização de bênção aos casais marca uma grande mudança na orientação da Igreja em relação a esse tema em apenas dois anos. Ainda em 2021, o Vaticano havia reiterado que a homossexualidade é um "pecado", confirmando que os casais do mesmo sexo não podem receber o sacramento do casamento.
O reverendo norte-americano James Martin, que defende maior acolhida para os católicos da comunidade LGBTQIAPN , saudou a novidade como um "grande passo em frente" e uma "mudança dramática" na política do Vaticano. "(A mudança) reconhece o desejo profundo de muitos casais católicos do mesmo sexo pela presença de Deus e pela ajuda nos seus relacionamentos de compromisso", observou, acrescentando: "Juntamente com muitos padres católicos, terei, agora, o prazer de abençoar os meus amigos em casamentos entre pessoas do mesmo sexo".
"Essa decisão esclarece as coisas porque havia um vazio nesta questão", disse Patrick Vadrini, especialista em direito canônico e professor emérito da Pontifícia Universidade Lateranense, em Roma, à agência France Presse (AFP). "Ao definir grandes normas gerais, a Igreja deixa nas mãos de quem tem contato direto com as pessoas à medida que a norma é aplicada. Nós nos adaptamos às pessoas", declarou.
Transexuais
No mês passado, associações e fiéis católicos do movimento LGBTQIAPN celebraram a permissão do batismo de pessoas trans como um primeiro passo para a inclusão. Consideraram, porém, que as condições da aplicação da medida favorecem decisões arbitrárias em dioceses contrárias a essa abertura. O documento, também publicado pelo Dicastério para a Doutrina da Fé, estabeleceu que os fiéis transgênero podem ser batizados, desde que isso não provoque "escândalo" ou "confusão".
Redigido em resposta a perguntas formuladas pelo bispo italiano José Negri, que lidera a diocese brasileira de Santo Amaro (SP), e aprovado pelo papa Francisco, o documento não incluiu objeções ao batismo de filhos de casais do mesmo sexo, sejam eles adotados, ou nascidos de barriga de aluguel. Essas situações já ocorreram em diferentes dioceses do mundo, mas, registradas oficialmente, ganham um novo peso, segundo observadores atentos da Igreja.
"É, definitivamente, um passo para uma Igreja mais inclusiva e um lembrete de que os católicos transgênero não são apenas pessoas, mas também católicos. Em muitas paróquias e dioceses, eles foram duramente excluídos", considerou na ocasião, o padre James Martin.
Desde sua eleição em 2013, o papa Francisco, um jesuíta argentino, que insiste na importância de uma Igreja "aberta a todos", tem despertado repetidamente a indignação dos conservadores, especialmente por limitar o uso da missa tradicional em latim em 2021. Dessa vez, não deve ser diferente.
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