A crise em torno da região de Essequibo, disputada pela Venezuela e pela Guiana, parece ter reacendido um antigo temor comum à direita e à esquerda no Brasil: a presença de tropas norte-americanas em plena floresta amazônica.
A preocupação ganhou novo impulso nesta quinta-feira (07/12) depois que o Comando Sul das Forças Armadas norte-americanas anunciou que irá realizar exercícios militares em parceria com as Forças de Defesa da Guiana.
No Brasil, o principal assessor do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) para assuntos internacionais, o embaixador Celso Amorim, disse que seu principal temor com a escalada da crise entre Guiana e Venezuela é que ela sirva de pretexto para a presença de militares estrangeiros na Amazônia.
"O que eu temo mais, pra falar a verdade, é que você crie precedentes até para ter bases e tropas estrangeiras na região. Não estamos falando de uma região qualquer. Estamos falando da Amazônia, que é sempre objeto de muita preocupação de nossa parte. Essa é a nossa preocupação maior", disse Celso Amorim em entrevista ao Canal Meio.
Exercícios militares envolvendo norte-americanos na Amazônia não são novidade. Em novembro deste ano, por exemplo, 294 militares do país desembarcaram no Brasil para um treinamento na selva amazônica. A diferença, agora, é que os norte-americanos chegarão à Guiana em meio a uma crise geopolítica entre o país e a Venezuela.
Os dois países disputam há mais de um século Essequibo, uma área de mais de 160 mil km² (pouco maior que o Estado do Ceará) rica em minérios como ouro e diamante, além de petróleo. Nos últimos meses, as tensões aumentaram depois que a Venezuela realizou um referendo sobre a criação de um novo Estado na área em disputa. Essequibo corresponde a 70% do território da Guiana.
A Corte Internacional de Justiça (CIJ), provocada pelo governo guianense, emitiu uma sentença determinando que a Venezuela não poderia tomar medidas para incorporar Essequibo ao seu território. O regime de Nicolás Maduro, no entanto, anunciou não reconhecer a legitimidade da Corte para resolver a disputa.
Após o referendo, o presidente Nicolás Maduro indicou um governador para o Estado que pretende criar e anunciou a emissão de licenças para exploração de petróleo na costa de Essequibo.
Como resposta, o presidente da Guiana, Mohamed Irfaan Ali, pediu auxílio da Organização das Nações Unidas (ONU) e fez contato com o secretário de Estado dos Estados Unidos, Antony Blinken, na quarta-feira (06/12).
Em comunicado, o Departamento de Estado anunciou que daria suporte "inabalável" à soberania da Guiana. No dia seguinte, o Comando Sul dos Estados Unidos divulgou que realizaria exercícios em parceria com militares da Guiana. Segundo o comando, os exercícios consistem em "operações de voo" dentro território guianense.
Em nota sobre o assunto, a Embaixada dos Estados Unidos na Guiana disse que o Comando Sul "continuará a sua colaboração com o FDG (Forças de Defesa da Guiana) nas áreas de preparação para desastres, segurança aérea e marítima e combate às organizações criminosas transnacionais" e que "os EUA continuarão o seu compromisso como parceiro de segurança confiável da Guiana".
O anúncio gerou reações na Venezuela. O ministro da Defesa do país, Vladimir Padrino, chamou os exercícios de "provocação".
"Esta infeliz provocação dos Estados Unidos em favor dos pretorianos da ExxonMobil na Guiana é outro passo na direção incorreta. Advertimos que não nos desviarão de nossas futuras ações pela recuperação de Essequibo. Não se equivoquem. Viva à Venezuela", disse Padrino em uma postagem em suas redes sociais.
Preocupação histórica
A preocupação de que a Amazônia seja alvo da atuação de tropas estrangeiras é antiga. Desde o processo de colonização, fortificações portuguesas foram erguidas em diversos pontos da região para evitar o avanço de invasores.
Mais recentemente, essa preocupação se transformou em um dos elementos que une militantes tanto da esquerda quanto da direita brasileira. O principal temor se dá pelo tamanho do poderio bélico norte-americano.
De acordo com o Instituto Internacional de Pesquisa para a Paz de Estocolmo (Sipri, na sigla em inglês), em 2022, os Estados Unidos foram responsáveis pelo maior gasto militar do mundo, com U$$ 877 bilhões, o equivalente a 39% de todas as despesas militares no planeta.
Durante a ditadura militar (1964-1985), por exemplo, o temor de que a região pudesse ser alvo de algum tipo de intervenção estrangeira foi usado como principal motivo para a criação de projetos de ocupação dali entre os anos 1960 e 1980.
Também foi nesta época que as Forças Armadas brasileiras reforçaram e criaram instalações militares em pontos da fronteira norte do país.
O slogan usado pelo regime, na época, era "integrar para não entregar".
O medo era de que a suposta cobiça internacional pela região pudesse levar a ações de ocupação estrangeira. A Amazônia é responsável por 45% de toda água doce do planeta, além de abrigar a maior floresta tropical do planeta. É uma área rica em biodiversidade e minerais e metais preciosos.
Na época, a preocupação dos militares era tanto com uma possível ocupação da região por alguma superpotência quanto com a ação de grupos contrários ao regime, como a Guerrilha do Araguaia.
Entre 1972 e 1974, um grupo de militantes de esquerda se instalou no interior do Pará com o objetivo de organizar uma guerrilha rural para derrubar a ditadura. O grupo foi derrotado por tropas do Exército.
No final da primeira década dos anos 2000, setores da esquerda brasileira demonstraram preocupação com um acordo firmado entre os governos dos Estados Unidos e da Colômbia, o qual previa a instalação de sete bases militares norte-americanas no país sul-americano.
Em 2010, o acordo foi considerado inconstitucional pela Justiça colombiana.
Para a doutora em Relações Internacionais e professora da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) Carol Pedroso, a crise entre Venezuela e Guiana "ressuscitou" o temor da presença norte-americana na Amazônia.
"Essa crise ressuscita totalmente esse temor que é uma preocupação do Brasil e de outros países como a Colômbia, que mal concluiu seus processos de paz e que hoje é governada por uma liderança que tem relativa proximidade com Maduro", disse a professora à BBC News Brasil em menção aos acordos de paz entre o governo colombiano, liderado pelo presidente Gustavo Petro, e as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc).
Para o diretor para as Américas da consultoria Eurasia Group, Christopher Garmam, o governo brasileiro vê com desconfiança as ações militares norte-americanas na América do Sul.
"Esse tipo de movimento preocupa o governo brasileiro, que tem deixado muito claro que não vê esse tipo de ação como algo construtivo e vê como uma ingerência indevida na região", disse Garmam.
O analista, no entanto, diz acreditar que os exercícios anunciados na quinta-feira pelo governo norte-americano não indicariam uma tendência.
"Essa ação do governo tende a ficar mais restrita e não deverá se converter em uma intervenção na América do Sul ou na Amazônia", afirmou.
Para o professor aposentado de Relações Internacionais e ex-representante da Organização dos Estados Americanos (OEA) no Haiti Ricardo Seitenfus, a chegada dos norte-americanos à região teria sido provocada pela postura do Brasil em relação às ações de Maduro. Segundo ele, o Brasil deveria ter sido mais contundente em condenar os movimentos do regime venezuelano.
"O silêncio ensurdecedor do governo brasileiro obriga os aliados da Guiana a agir. Agora, Washington e logo adiante Londres virão proteger a soberania e a integridade territorial da Guiana. Isso se deve a negligência culposa do Brasil", disse Seitenfus à BBC News Brasil.
Liderança em xeque?
Os analistas consultados pela BBC News Brasil afirmaram que, até o momento, a liderança brasileira na região não estaria afetada pela crise em Essequibo e pelo envolvimento dos norte-americanos.
"Parece que Celso Amorim e outros diplomatas tentam usar a sua influência para pedir calma. Se Maduro vai ouvir é outra história, mas penso que a oposição do governo brasileiro [às ações de Maduro] torna ainda menos provável uma invasão venezuelana. Aparentemente, qualquer invasão teria que passar pelo território brasileiro e não vejo nenhuma circunstância em que isso aconteceria", disse à BBC News Brasil o brasilianista e editor-chefe da revista Americas Quarterly, Brian Winter.
"Evidentemente, quando há exercícios militares americanos na região, isso é desconfortável para o Brasil. Ao mesmo tempo, a posição americana não diverge da posição brasileira na região. O Brasil acelerou planos militares no Norte do país em meio a essa crise. Isso é um sinal forte à Venezuela de que não vão aceitar tropas atravessando o país para invadir a Guiana", disse Christopher Garmam.
"Esse episódio não coloca em xeque a liderança do Brasil, mas é, sim, um grande desafio. Eu diria que é um grande teste. [...] Historicamente, o país consegue ser um ator relevante em contendas na América do Sul, e em se tratando de um conflito que pode envolver o nosso território, creio que vamos utilizar todas as ferramentas diplomáticas disponíveis para evitar a escalada das tensões", disse Carol Pedroso.
A tentativa de diminuir as tensões entre os dois países fez com que o presidente Lula oferecesse o Brasil para sediar futuras conversas entre a Guiana e a Venezuela. A oferta foi feita durante o fechamento da 63ª Cúpula do Mercosul, no Rio de Janeiro, na quinta-feira.
Nas últimas semanas, Lula vinha fazendo movimentos nos bastidores para reduzir a temperatura da crise. Um deles foi enviar Celso Amorim a Caracas para conversar com Nicolás Maduro.
Na quinta-feira, Lula mencionou a crise dizendo que a região não precisaria de uma guerra.
"Eu gostaria de dizer que nós vamos tratar [o assunto] com muito carinho, porque se tem uma coisa que nós não queremos aqui na América do Sul é guerra. Não precisamos de guerra, não precisamos de conflito. O que precisamos é construir a paz, porque somente com muita paz a gente pode desenvolver nosso país", disse Lula.
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