América do Sul

Guiana-Venezuela: Maduro promete "recuperar" província do país vizinho

Presidente venezuelano celebra resultado do referendo sobre anexação do território do Essequibo, em que 95% dos eleitores apoiam medida. Especialistas minimizam impacto da votação e veem jogada política

Nicolás Maduro (E) mostra a ata com o resultado da consulta popular de domingo, aplaudido pelo presidente do Conselho Nacional Eleitoral, Elvis Amoroso  -  (crédito: Federico Parra/AFP)
Nicolás Maduro (E) mostra a ata com o resultado da consulta popular de domingo, aplaudido pelo presidente do Conselho Nacional Eleitoral, Elvis Amoroso - (crédito: Federico Parra/AFP)
postado em 05/12/2023 06:00

Ao assinar e exibir a ata de notificação da "vontade absoluta e democrática expressada pelo povo venezuelano no referendo consultivo em defesa da Guiana Essequiba", o presidente da Venezuela, Nicolás Maduro, comemorou o resultado e declarou: "Essa consulta é vinculante e, na condição de chefe de Estado, acato o mandato". De acordo com o Conselho Nacional Eleitoral (CNE), 95% dos eleitores apoiaram a criação de uma província venezuelana no Essequibo, território disputado com a Guiana e rico em petróleo. "A decisão que vocês tomaram dá um impulso vital poderosíssimo (...) Agora, sim, vamos recuperar os direitos da Venezuela históricos na Guiana Essequiba; agora, sim, vamos fazer justiça", afirmou Maduro. 

Elvis Amoroso, presidente do organismo, anunciou que 10.431.907 venezuelanos — 35% da população e mais da metade do eleitorado (20,7 milhões) — participaram da votação. "Se o referendo consultivo não é vinculante, o que é? Se a voz do povo não é vinculante, o que é?", indagou Maduro.

Além da nova província, os eleitores aprovaram a concessão de nacionalidade venezuelana a seus 125 mil habitantes, que representam 15% dos cidadãos guianenses. As primeiras reações em Georgetown, capital da Guiana, foram de cautela. "Temos que permanecer sempre vigilantes. Embora não acreditemos que ele vá ordenar uma invasão, temos que ser realistas sobre o ambiente na Venezuela e o fato de que o presidente Maduro pode fazer algo muito imprevisível", declarou Hugh Todd, chanceler guianense.

Especialistas veem uma manobra de Maduro para tentar fortalecer o próprio capital político, dias depois de a oposição escolher a deputada María Corina Machado como candidata ao Palácio de Miraflores em 2024. 

Em entrevista ao Correio, o embaixador Victor Rodríguez Cedeño, ex-membro da Comissão de Direito Internacional na ONU e professor de direito internacional, qualificou de "inaceitável" a anexação do território de Essequibo. "O caso estava em um processo judicial ante a Corte Internacional de Justiça (CIJ), onde cabe à Venezuela reclamar a sua titularidade jurídica. Um referendo seria algo contrário ao direito internacional. Os venezuelanos e a comunidade internacional não podem aceitar que se anexe um território dessa maneira. Existem formas de chegar a um arranjo e apelar à Corte Internacional de Justiça", explicou.

Cedeño disse que Essequibo não importa muito à Venezuela. "O interesse de Maduro é mais por razões políticas internas, pois ele é visto como um líder que levanta a bandeira do patriotismo, do nacionalismo, da recuperação do território de Essequibo. O que ele quer, simplesmente, é um benefício político interno. Ele está aterrorizado ante a ascensão da candidatura de María Corina Machado para as eleições de 2024. Machado significa, para 80% dos venezuelanos, a esperança em regressarem à democracia."

Professor de direito internacional da Universidad Central de Venezuela, o advogado venezuelano Héctor Faúndez Ledesma minimiza os impactos do referendo de domingo (3/12). "Qual o efeito da votação ante o processo na Corte Internacional de Justiça? No meu entender, zero. O resultado do referendo não afetará, em absoluto, os procedimentos que estão em curso na Corte Internacional de Justiça. Não terá nenhum efeito prático", disse ao Correio. Ele também descarta uma aventura militar de Maduro no país vizinho. "Honestamente, não acredito nisso. A capacidade militar da Venezuela é dez vezes superior à da Guiana. Seria uma aventura sem respaldo da comunidade internacional e isso causaria mais danos a Maduro e à Venezuela. 

Para Ledesma, Maduro usa o referendo como desculpa para abandonar o processo na CIJ. "Parece que os advogados da Venezuela não têm pronto o documento de contramemória que deve ser apresentado à Corte em 2024. Sob esse ponto de vista, Maduro acreditava que a melhor opção seria sair do processo. No âmbito interno, parece que o que havia por trás do referendo era o desejo de levantar a imagem do presidente da República envolto na bandeira nacional. Ele apostava que o referendo contaria com grande participação nacional, maior do que a registrada durante as primárias da oposição. Isso não ocorreu."

"Bom senso"

No domingo, ao comentar o referendo, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva disse esperar que o "bom senso" prevaleça entre Caracas e Georgetown. "O que a América do Sul não está precisando é de confusão", acrescentou Lula. Os Estados Unidos advertiram Maduro que a disputa com a Guiana não pode ser resolvida por meio de uma consulta popular. O porta-voz do Departamento de Estado norte-americano, Matthew Miller, esclareceu que Washington defende o respeito à fronteira estabelecida em 1899, "enquanto não houver um acordo entre as partes ou um organismo competente decidir". 

EU ACHO...

Víctor Rodríguez Cedeño, ex-membro da Comissão de Direito Internacional na ONU e da Corte Internacional de Justiça
Víctor Rodríguez Cedeño, ex-membro da Comissão de Direito Internacional na ONU e da Corte Internacional de Justiça (foto: Arquivo pessoal )

"Para Maduro, o Essequibo não é importante. Lamentavelmente, eles (venezuelanos) não lutaram pelo reconhecimento da soberania sobre o território de Essequibo. Agora, reclamam isso por motivações políticas internas, para obter votos aos projetos políticos rejeitados pela maioria dos venezuelanos. Maduro não teve o respaldo esperado no referendo, e os números foram falsificados."

Víctor Rodríguez Cedeño, embaixador, ex-membro da Comissão de Direito Internacional na ONU e da Corte Internacional de Justiça

Héctor Faúndez Ledesma, professor de direito internacional da Universidad Central de Venezuela
Héctor Faúndez Ledesma, professor de direito internacional da Universidad Central de Venezuela (foto: Arquivo pessoal )
 

"Do ponto de vista diplomático, a tentativa da Venezuela de reter o território do Essequibo não terá nenhum respaldo. Provavelmente, poderia haver alguma expressão mais ou menos solidária da Argentina, por conta das Malvinas. Não vejo muita possibilidade de uma invasão militar venezuelana. O governo de Maduro sai do referendo com uma votação 10% menor do que o padrão eleitoral. Isso não dá a Maduro mandato para fazer qualquer coisa."

Héctor Faúndez Ledesma, professor de direito internacional da Universidad Central de Venezuela

 

Discórdia com fundo histórico

Caracas argumenta que o Rio Essequibo é a fronteira natural com a Guiana, e por isso o território em disputa faria parte da Venezuela, como em 1777, quando o país era colônia da Espanha. Além disso, apela ao acordo de Genebra, assinado em 1966, antes de a Guiana se tornar independente do Reino Unido, que estabelecia as bases para uma solução negociada e anulava um laudo de 1899, que definiu os limites atuais. A Guiana defende o laudo e pede que seja ratificado pela Corte Internacional de Justiça (CIJ), mais alta instância judicial das Nações Unidas, cuja jurisdição Caracas não reconhece.

 

  • Víctor Rodríguez Cedeño, ex-membro da Comissão de Direito Internacional na ONU e da Corte Internacional de Justiça
    Víctor Rodríguez Cedeño, ex-membro da Comissão de Direito Internacional na ONU e da Corte Internacional de Justiça Foto: Arquivo pessoal
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