Para algumas mulheres muçulmanas, pode ser difícil tomar a decisão de deixar de usar o hijab, o véu islâmico.
Afinal, elas podem precisar enfrentar a reação negativa das suas famílias ou ser segregadas pela sua comunidade. E alguns países criaram leis para pressioná-las ainda mais.
O parlamento iraniano aprovou recentemente um controverso projeto de lei para aumentar significativamente as penas de prisão e multas impostas às mulheres e meninas que desrespeitarem o rigoroso código de vestimenta do país.
Para se tornar lei, o projeto ainda precisa ser aprovado pelo Conselho Guardião, que fiscaliza o cumprimento da Constituição iraniana.
O projeto de lei foi criado depois de amplos protestos das mulheres iranianas, que foram às ruas e retiraram seus hijabs.
O motivo dos protestos foi a morte de Mahsa Amini, mantida em custódia pela "polícia da moralidade" do Irã, em setembro do ano passado. Ela havia sido presa por supostamente usar o seu hijab incorretamente.
Existem cerca de um bilhão de mulheres muçulmanas em todo o mundo. Para muitas delas, usar ou não o hijab é uma decisão individual.
Mas as mulheres que desejarem retirar seus véus podem levar anos para superar a pressão e tomar a decisão.
'Podia fazer com que meus irmãos pecassem'
"Meu sonho era ter um dia por semana em que apenas nós, mulheres, pudéssemos ir para as ruas, vestindo o que bem entendêssemos", afirma Ribell (nome fictício).
Quando Ribell tinha nove anos de idade, sua família morava em uma cidade fora da capital iraniana, Teerã. Eles fizeram com que ela começasse a usar o chador – um dos tipos de hijab mais conservadores.
O chador é um manto de corpo inteiro, frequentemente acompanhado por um lenço menor por baixo.
Os pais de Ribell começaram a prepará-la para usar as vestimentas cobrindo seu corpo quando ela tinha seis anos de idade.
"Eles viviam me dizendo que eu teria que usar o hijab, que é minha obrigação para Deus e, se eu me recusasse, seria eternamente punida depois da minha morte", contou ela à BBC. "Sem falar que eu colocaria meus pais em descrédito e os desagradaria."
Ela conta que, quando era criança, sonhava em usar shorts e camiseta.
Ribell agora tem 23 anos de idade. Ela saiu de Teerã para pedir asilo na Turquia, onde trabalha como tatuadora. Ribell se lembra de como ficou apavorada com o que seus pais haviam lhe dito.
"Vivi com essa constante sensação de culpa", ela conta. "Eu não sabia de onde vinha, mas ela estava ali."
Ela costumava invejar outras meninas que encontrava na comunidade usando hijabs menos conservadores.
No Irã, o uso do hijab em espaços públicos é obrigatório para as mulheres e as meninas com pelo menos nove anos de idade. Mas muitas mulheres preferem não cobrir a cabeça em casa e nas reuniões privadas.
A família de Ribell era muito religiosa e conservadora.
"Minha mãe me dizia para não mostrar meus braços e pernas descobertas, mesmo na frente dos meus irmãos adolescentes, porque poderia fazer com que eles pecassem", ela conta.
Quando Ribell tinha 17 anos, seus pais a matricularam em um seminário islâmico para mulheres. "Era aquilo ou me casar", segundo ela.
Ela conta que odiava o seminário e percebeu que o currículo era preconceituoso contra as mulheres. A instituição destruiu sua crença no hijab.
No dia em que decidiu sair do seminário, Ribell vestiu um casaco que terminava pouco acima do joelho e um lenço solto na cabeça, deixando à mostra mechas do seu brilhante cabelo ruivo recém-tingido.
A diretora do seminário ligou para seus pais e disse a eles que não a deixassem andar nas ruas parecendo "uma prostituta", segundo Ribell.
Ela conta que sua avó ligou para sua casa, desejando que "meus pais quebrassem minhas pernas para que eu não pudesse sair de casa".
Ribell relembra também que sua mãe desejava que "Deus levasse a minha vida para que nossa família não precisasse sofrer tanto".
Os abusos continuaram e Ribell tentou tirar a própria vida. Ela acordou no hospital depois da tentativa frustrada, com seu pai em pé sobre a cama, gritando para ela.
Ela acabou decidindo que sua única opção seria sair do Irã e ir para a Turquia, onde o hijab não é obrigatório. Agora, ela pode viver abertamente sem o véu. E Ribell não tem mais contato com sua família.
A história de Ribell pode ter atingido um ponto extremo, mas não é um caso isolado.
'Mulher, vida, liberdade'
A escritora e ativista egípcio-americana Mona Eltahawy teve dificuldades para deixar de usar o hijab, mesmo vindo de uma família menos rigorosa que a de Ribell.
Ela conta que usou o hijab por nove anos depois de se mudar para a Arábia Saudita, com 15 anos de idade – e passou "oito destes anos tentando tirar o véu".
Um dos motivos da dificuldade era porque sua família se opunha a que ela deixasse de usar o hijab.
"Quando finalmente tive coragem, saí de casa [no Egito] com o hijab cobrindo metade da cabeça. Eu simplesmente não conseguia tirá-lo por completo", conta Eltahawy, rindo.
Por muito tempo, ela se sentiu desconfortável para sair sem o véu. "Levei vários anos para conseguir dizer às pessoas que eu costumava usar o hijab porque tinha muita vergonha de tê-lo tirado", ela conta.
Eltahawy escreveu um livro sobre os direitos das mulheres sobre seus corpos, chamado Headscarves and Hymens ("Lenços de cabeça e hímens", em tradução livre).
Ela vem acompanhando atentamente os protestos no Irã, onde mulheres foram vistas tirando seus hijabs para queimá-los ou agitá-los no ar, gritando "mulher, vida, liberdade".
Para Eltahawy, o que está acontecendo no Irã é mais do que apenas um apelo por mudanças políticas.
"É verdade que o Estado oprime tanto homens quanto mulheres", afirma ela. "Mas a rua, o Estado e a casa, todos juntos, oprimem as mulheres e as pessoas queer – e a luta das mulheres iranianas contra o uso obrigatório do hijab é uma luta contra todos os três."
A liberdade de fazer o que quiser
A BBC conversou com diversas mulheres no Irã, de famílias religiosas e conservadoras. Elas contam que, depois dos recentes protestos, suas famílias começaram a apoiar sua decisão de abandonar o uso do hijab.
Uma mulher muçulmana que encontrou inspiração nos protestos iranianos é a jornalista Bella Hassan, do Serviço Mundial da BBC. Ela nasceu e foi criada na capital da Somália, Mogadíscio, e usou o hijab pela maior parte da vida.
Em 2022, morando há um ano em Londres, ela decidiu retirar o véu durante o pico dos protestos no Irã.
"Tenho muitas amigas iranianas e elas me mantinham atualizada sobre as mulheres que defenderam seu direito de viver como quisessem", conta Hassan. "Aquilo realmente me inspirou."
"Eu pensei: não estou mais em Mogadíscio, estou em Londres. Tenho a liberdade de fazer o que quiser", prossegue ela.
A família de Hassan na Somália não ficou feliz, mas respeitou sua decisão de abandonar o hijab.
Por ser jornalista da BBC, Bella Hassan é conhecida na Somália. Sua decisão de deixar de usar o hijab causou reação negativa no país e ela se pergunta se deveria ter esperado mais tempo.
"Não me sinto mais aceita na minha própria comunidade e acredito que não tenho mais segurança", ela conta. "Depois que tirei meu hijab, comecei a receber ameaças de morte e estupro dos homens. Eles me criticaram, xingaram... homens que eu não conhecia."
Hassan prossegue: "não existe punição específica para as mulheres que não usarem o hijab. O Alcorão diz que Deus irá cuidar delas, mas os homens muçulmanos do meu país decidiram cuidar de mim, no lugar de Deus."
Bella Hassan afirma que o hijab tem raízes muito profundas na Somália e que muitas mulheres que não querem usar o véu simplesmente nunca conseguirão retirá-lo.
"Espero que, um dia, as mulheres do meu país tenham a coragem e a disposição de fazer o que quiserem, sem ouvir apenas o que os outros querem, especialmente os homens", conclui a jornalista.