América do Sul

Argentina: Presidente eleito Javier Milei promete reformar o Estado

No primeiro dia como presidente eleito, ultralibertário adota transição a conta-gotas, anuncia poucos ministros, planeja privatizações e defende fim do Banco Central. Reunião com Alberto Fernández é adiada

Durante toda a campanha, Javier Milei costumava posar com uma motosserra em mãos — símbolo da promessa de acabar com a casta política. Eleito presidente da Argentina com 55,69% dos votos contra 44,30% para o ministro da Economia peronista, Sergio Massa, o ultralibertário passou o primeiro dia de transição em reuniões com o ex-presidente Mauricio Macri (2015-2019), em ligações telefônicas com chefes de Estado e de governo e em entrevistas a rádios do país. Aos jornalistas, deixou antever as prioridades depois da posse, em 10 de dezembro: destruir a inflação de 140% ao ano em um prazo de 24 meses e reformar o Estado, por meio de privatizações da estatal petrolífera YPF e de meios de comunicação públicos.

"Tudo o que puder estar nas mãos do setor privado estará nas mãos do setor privado", garantiu à rádio Mitre. "Vamos começar primeiro pela reforma do Estado, colocar em caixa as contas públicas muito rapidamente", acrescentou. A dolarização da economia, uma das principais promessas na corrida à Casa Rosada, não será mais uma imposição, ao contrário da eliminação do Banco Central. "O eixo central é fechar o Banco Central. Então, a moeda será aquela que os argentinos escolherem livremente", admitiu.

Ainda segundo Milei, "não há espaço para o gradualismo, para a tibieza ou para meias-medidas", ao assinalar que as reformas começarão de imediato. Depois de o líder eleito anunciar os primeiros nomes para o gabinete — o advogado Mariano Cúneo Libarona para o Ministério da Justiça e a economista Diana Mondino para as Relações Exteriores —, o seu partido La Libertad Avanza recuou e avisou que as nomeações somente ocorrerão após a posse.

Pacífico - casa rosada

O jornal La Nación divulgou que Nicolás Posse será o chefe de gabinete, mas poderá ocupar a pasta da Agência Federal de Inteligência (AFI). Durante a campanha, Milei tinha anunciado Sandra Pettovello, graduada em ciências da família, para o cargo de ministra do Capital Humano. Também há fortes indícios de que o Ministério do Interior ficará sob a batuta de Guillermo Francos, articulador da campanha de Milei.

Havia a expectativa de que Milei e o presidente peronista, Alberto Fernández, se reunissem ontem, para dar início à transição formal. No entanto, o encontro foi adiado, ainda sem nova data. O primeiro comunicado oficial do "Escritório do Presidente Eleito" descartou a oficialização de nomes antes de 10 de dezembro e negou que esteja prevista uma reunião entre Milei e o atual mandatário. "O Presidente Eleito ratificou o desejo de trabalhar na defesa da democracia e do livre-comércio com todos os países do mundo", afirma o texto. "Até 10 de dezembro, o presidente Alberto Fernández e o ministro da Economia, Sergio Massa, são os responsáveis constitucionais pela situação dos argentinos", reitera o documento.

No discurso de vitória, na noite de domingo, Milei deixou de lado o candidato que prometeu desafiar o sistema e trocou a retórica feroz, que lhe valeu o apelido de "leão", pela moderação. Adotou a postura de presidente e até citou uma frase do general Juan Domingo Perón, que governou o país por três mandatos, entre as décadas de 1940 e 1970.

"Foi uma tentativa clara de se mostrar como líder de governo", disse ao Correio Damian Deglauve, analista da DED Consultoria Política (em Buenos Aires), que vê a inflação e a dolarização como temas centrais. "A Argentina é o terceiro país com mais dólares fora de circulação, aqui dizemos 'debaixo do colchão'. É preciso muita confiança para que essas cédulas voltem às ruas. É muito difícil obter dólares sem contrair empréstimos e forçar uma recessão", advertiu. Para Deglauve, se Milei conseguir um rápido êxito em suas medidas, a Argentina estará diante de uma nova era política. "Se a crise econômica não for rapidamente revertida e o poder aquisitivo piorar muito, estarmos em uma grave zona de conflito."

Medidas ambiciosas

Especialista em opinião pública em comunicação de governo, Carlos Fara explicou à reportagem que as privatizações da YPF e dos meios de comunicação públicos, e a entrega da Aerolineas aos funcionários, parecem medidas "muito ambiciosas", que dependem da aprovação pelo Congresso. "Acredito que, efetivamente, Milei tentará priorizar temas imprescindíveis para não entrar em choque rapidamente com a oposição e não fracassar nas iniciativas de governo no Legislativo", avaliou. Ao ser questionado, ontem, por um jornalista sobre o que se pode esperar do governo Milei, Macri respondeu: "Tranquilidade". Fara vê uma nítida preocupação da equipe do ultralibertário em transmitir uma preocupação pela moderação.

Apesar de ter vencido em 21 das 24 províncias argentinas, Milei chega à Casa Rosada com a base política mais débil: 38 de 257 deputados e 7 de 72 senadores. Por isso, Sonia Ramella, cientista política da Universidad del Salvador e especialista em participação cidadã, reconhece que Milei não tem muita opção que não seja a moderação, a fim de poder governar.

"Ele não terá margem para posturas mais loucas ou para questões que suscitam medo e dúvida. Se Milei desejar governar, terá que moderar. No entanto, acho que poucas de suas propostas são realizáveis", pontuou ao Correio. De acordo com Ramella, a suavização no discurso do ultralibertário está ligada à aliança política que lhe permitiu vencer Massa. "Além disso, o eleitorado da coalizão Juntos por el Cambio (centro-direita) é mais moderado. Milei precisa de apoio político, pois não contará com representação significativa no Congresso nem elegeu governadores."

Na condição de presidente eleito, Milei tem consciência absoluta da necessidade de obter apoios no Legislativo, avalia Gastón Mutti, cientista político da Universidad Nacional de Rosario e da Universidade Nacional de Entre Ríos. Ele aposta que as políticas implementadas nos primeiros dias de governo serão aquelas que tratarão de ter apoio do Congresso. "A legitimidade democrática está garantida para Milei, apesar de não haver garantias de que ela seja de cunho social. Lenta e gradualmente, ele obtém o aval de certos setores, como do partido Propuesta Republicana e de classes empresariais. Por sua vez, a legitimidade de exercício é o grande tema, que precisará ser acompanhado no decorrer do mandato", comentou Mutti.

EU ACHO...

Arquivo pessoal - Gastón Mutti, cientista político da Universidad Nacional de Rosario e da Universidade Nacional de Entre Ríos
 

"Muitas das promessas de Milei continuarão mantidas como palavras de ordem, mas serão adiadas até a obtenção de maioria legislativa que permita sua implementação. O presidente da Corte Suprema de Justiça expressou que a dolarização na Argentina não era uma opção constitucional. Isso limita a possibilidade de essa política pública de Milei ser implementada."

Gastón Mutti, cientista político da Universidad Nacional de Rosario e da Universidade Nacional de Entre Ríos

 

Arquivo pessoal - Sonia Ramella, especialista em participação cidadã, porta-voz da Asociacion Civil Cultura Democrática e cientista política da Universidad de Salamanca
 

"Milei dependerá muito da figura do decreto para governar e das alianças que formar com parte do partido Propuesta Republicana (PRO) e da coalizão Juntos por el Cambio. Ele será um presidente sem muitos recursos dentro do Congresso para aprovar leis importantes. O novo presidente dependerá, também, da habilidade de aprender a negociar e a fazer concessões."

Sonia Ramella, especialista em participação cidadã, professoa de ciência política da Universidade del Salvador

 

Fotos: Arquivo pessoal - Damian Deglauve, analista político da DED Consultoria Politica (em Buenos Aires)

"Apesar dos 55% dos votos, Milei não fez governadores, nem prefeitos, e conseguiu poucos deputados e senadores. A legitimidade institucional será emprestada pela coalizão Juntos por el Cambio. Haverá um conflito permanente, com medidas de choque ou polêmicas. Se elas não produzirem um bem-estar prometido e sonhado, as tensões serão muito fortes e difíceis."

Damian Deglauve, analista da DED Consultoria Politica (em Buenos Aires)

 

Arquivo Pessoal - 2019. Crédito: Arquivo Pessoal. Mundo. Carlos Fara, cientista político argentino.
 

"Minha impressão é de que o governo de Milei será mais moderado e mais pragmático do que aquele apregoado durante a campanha. Há uma realidade muito concreta, de experiências de gestão e de obstáculos políticos. Não vejo, a princípio, um Milei tolamente radicalizado. Mesmo na campanha, ele baixou o tom sobre alguns pontos."

Carlos Fara, especialista em opinião pública e comunicação de governo

 

Arquivo pessoal - Miguel De Luca, professor de ciência política da Universidad de Buenos Aires (UBA)

"Milei não contará com uma 'lua-de-mel'. Se não conseguir frear a inflação rapidamente, terá a oposição de grupos e de parte da opinião pública. Isso aumentará o risco de ingovernabilidade. Várias das medidas anunciadas por ele necessitam da aprovação do Congresso, onde ele não possui maioria, mesmo com os deputados e senadores do grupo de Macri e de Bullrich."

Miguel De Luca, professor de ciência política da Universidad de Buenos Aires (UBA)

 

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Arquivo Pessoal - 2019. Crédito: Arquivo Pessoal. Mundo. Carlos Fara, cientista político argentino.
Arquivo pessoal - Miguel De Luca, professor de ciência política da Universidad de Buenos Aires (UBA)

Eu acho...

"Muitas das promessas de Milei continuarão mantidas como palavras de ordem, mas serão adiadas até a obtenção de maioria legislativa que permita sua implementação. O presidente da Corte Suprema de Justiça expressou que a dolarização na Argentina não era uma opção constitucional. Isso limita a possibilidade de essa política pública de Milei ser implementada."

Gastón Mutti, cientista político da Universidad Nacional de Rosario e da Universidade Nacional de Entre Ríos

 

"Milei dependerá muito da figura do decreto para governar e das alianças que formar com parte do partido Propuesta Republicana (PRO) e da coalizão Juntos por el Cambio. Ele será um presidente sem muitos recursos dentro do Congresso para aprovar leis omportantes. O novo presidente dependerá, também, da habilidade de aprender a negociar e a fazer concessões."

Sonia Ramella, especialista em participação cidadã, professoa de ciência política da Universidade del Salvador

 

"Apesar dos 55% dos votos, Milei não fez governadores, nem prefeitos, e conseguiu poucos deputados e senadores. A legitimidade institucional será emprestada pela coalizão Juntos por el Cambio. Haverá um conflito permanente, com medidas de choque ou polêmicas. Se elas não produzirem um bem-estar prometido e sonhado, as tensões serão muito fortes e difíceis."

Damian Deglauve, analista da DED Consultoria Politica (em Buenos Aires)

 

"Minha impressão é de que o governo de Milei será mais moderado e mais pragmático do que aquele apregoado durante a campanha. Há uma realidade muito concreta, de experiências de gestão e de obstáculos políticos. Não vejo, a princípio, um Milei tolamente radicalizado. Mesmo na campanha, ele baixou o tom sobre alguns pontos."

Carlos Fara, especialista em opinião pública e comunicação de governo

 

"Milei não contará com uma 'lua-de-mel'. Se não conseguir freiar a inflação rapidamente, terá a oposição de grupos e de parte da opinião pública. Isso aumentará o risco de ingovernabilidade. Várias das medidas anunciadas por ele necessitam da aprovação do Congresso, onde ele não possui maioria, mesmo com os deputados e senadores do grupo de Macri e de Bullrich."

Miguel De Luca, professor de ciência política da Universidad de Buenos Aires (UBA)