RECORDES

O novo normal? Por que ondas de calor estão cada vez mais comuns no Brasil

A temperatura bate recordes em todo o país e prenuncia períodos extremos ainda piores no futuro. Entenda os fatores por trás desse cenário.

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Várias cidades brasileiras registraram temperaturas acima de 40 graus nos últimos dias

Em decorrência das altas temperaturas, 15 Estados brasileiros e o Distrito Federal estão sob alerta de "grande perigo", segundo diferentes agências de metereologia.

A onda de calor, que pode persistir em algumas localidades durante toda a semana, deve levar a recordes históricos de temperatura em diversas cidades — há locais em que os termômetros podem marcar até 13 ºC a mais do que esperado para esta época do ano.

A sensação térmica também pode ultrapassar os 50 ºC em algumas cidades.

Mas o que explica o fenômeno? Uma conjunção de fatores — como o El Niño, a formação de um "domo de calor" e as mudanças climáticas — ajudam a entender o que está acontecendo agora no Brasil.

Estudos publicados recentemente também revelam que as ondas de calor do tipo estão se tornando cada vez mais comuns no país.

A má notícia é que eventos como esse podem se tornar ainda mais frequentes e intensos daqui em diante — e, de acordo com os especialistas, é urgente discutir planos de mitigação e adaptação a eventos climáticos extremos, como verões muito intensos e chuvas torrenciais.

Entenda todo estes pontos ao longo desta reportagem.

Recordes consecutivos

Em primeiro lugar, é preciso ter em mente que a atual onda de calor não configura um fenômeno isolado no Brasil: segundo um relatório do Instituto Nacional de Metereologia (Inmet), vinculado ao Ministério da Agricultura e Pecuária, a temperatura média bateu recordes no país nos últimos quatro meses.

O levantamento, publicado em 8 de novembro, usa dados das estações meteorológicas espalhadas por todo o território nacional.

Os resultados mostram que, entre julho e outubro de 2023, as temperaturas ficaram acima da média registrada para esses períodos em anos anteriores.

Em julho, por exemplo, a temperatura média era de 21,9 ºC. Mas, em 2023, esse número ficou em 23 ºC — um desvio de 1 ºC em relação ao que era esperado.

Esse desvio se repetiu em agosto (1,4 ºC), setembro (1,6 ºC) e outubro (1,2 ºC) — e, diante da onda de calor mais recente, deve manter-se acima da média histórica também em novembro.

"O cenário indica que o ano de 2023 será o mais quente desde da década de 1960", aponta o relatório do Inmet.

"Estes resultados corroboram as perspectivas encontradas por outros órgãos de meteorologia internacional, pois, segundo pesquisadores do Serviço de Mudanças Climáticas Copernicus da União Europeia, é improvável que os dois últimos meses deste ano revertam este recorde, tendo em vista que a tendência é de altas temperaturas em todo o mundo até novembro", conclui o instituto.

E aqui vale lembrar que as ondas de calor não foram um problema exclusivo do Brasil nos últimos meses.

Um estudo divulgado pela organização Climate Central em 9/11 faz um balanço dos "12 meses mais quentes já registrado na História".

Segundo os autores, que avaliaram dados de 175 países (incluindo o Brasil), houve uma elevação média de 1,3 ºC nos quatro cantos do planeta.

"Durante todo esse período, 90% das pessoas (7,3 bilhões) experimentaram pelo menos 10 dias de temperaturas fortemente afetadas pelas alterações climáticas, e 73% (5,8 bilhões) passaram mais de um mês nessas condições", estima a pesquisa.

O texto ainda aponta que, entre as nações do G20 (o grupo que reúne as maiores economias do planeta), nove tiveram problemas com ondas de calor entre maio e outubro de 2023 — na lista, o Brasil aparece como o sétimo mais afetado, atrás de Arábia Saudita, México, Indonésia, Índia, Itália e Japão, e na frente de França e Turquia.

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Bombeiros tentam controlar um foco de incêndio no Pantanal no dia 13 de novembro

Mudanças históricas

Mas como essa situação de momento se compara com o passado? Temos de fato mais ondas de calor agora do que nas últimas décadas?

Segundo um levantamento do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), a resposta é sim: o número de eventos climáticos extremos — como temperaturas muito altas, secas ou chuvas intensas — aumentou consideravelmente no Brasil de 1960 para cá.

Para fazer essa afirmação, os pesquisadores levantaram estatísticas metereológicas de 1961 a 2020, que foram divididas em quatro grandes períodos: de 1961 a 1990, de 1991 a 2000, de 2001 a 2010 e de 2011 a 2020.

O primeiro dado que chama a atenção tem a ver com as "anomalias positivas de temperatura máxima". Entre 1991 e 2000, essas ondas de calor não ultrapassavam um limite de cerca de 1,5 °C em comparação com a média histórica.

Elas, porém, praticamente dobraram e atingiram 3 °C a mais em alguns locais — especialmente no Nordeste — entre 2011 e 2020.

"No período de referência, a média de temperatura máxima no Nordeste era de 30,7 °C e subiu, gradualmente, para 31,2 °C em 1991-2000, 31,6°C em 2001-2010 e 32,2 °C em 2011-2020", detalha o Inpe, órgão vinculado ao Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação.

Os autores também observaram mudanças significativas no regime de chuvas. O cenário é contrastante: houve uma queda na taxa média de precipitação (entre 10 e 40%) no Nordeste, em partes do Sudeste e no Brasil central.

Já no Sul e em partes dos Estados de São Paulo e Mato Grosso do Sul, aconteceu o contrário: um aumento de 10 a 30% nas chuvas.

Outros dois dados permitem entender esse contexto. Entre 1961 e 1990, parte do Nordeste e do Brasil central tinham entre 80 a 85 dias consecutivos sem chuva por ano. Esse número subiu para 100 dias mais recentemente, entre 2011 e 2020.

Enquanto isso, no Sul, a precipitação máxima ocorrida em cinco dias ficava na casa dos 140 milimetros de água entre 1961 e 1990 — mais recentemente, a taxa subiu para 160 mm.

O número de dias com "anomalias de ondas de calor" também sofreu um salto dramático.

No período de referência (1961-1990), o número de dias com ondas de calor não passava de sete ao ano. "Para o período de 1991 a 2000, subiu para 20 dias; entre 2001 e 2010 atingiu 40 dias; e de 2011 a 2020, o número de dias com ondas de calor chegou a 52", revela o artigo.

Ou seja: em três décadas, houve um salto de sete vezes na quantidade de dias no ano em que os brasileiros vivem sob uma temperatura bem alta.

Vale destacar que a análise do Inpe vai até o 2020 — e, com isso, ainda não leva em conta os fenômenos de calor de 2023.

"O mais recente relatório do IPCC [o painel sobre mudanças climáticas das Nações Unidas] destacou que as mudanças climáticas estão impactando diversas regiões do mundo de maneiras distintas", destacou Lincoln Alves, pesquisador do Inpe e coordenador do estudo.

"Nossas análises revelam claramente que o Brasil já experimenta essas transformações, evidenciadas pelo aumento na frequência e na intensidade de eventos climáticos extremos em várias regiões desde 1961, que irão se agravar nas próximas décadas proporcionalmente ao aquecimento global”, complementou ele, em nota publicada no site da instituição.

Reuters
Pessoas lotaram a praia de Ipanema no domingo (12/11), um dos primeiros dias da onda de calor mais recente

O que explica esse cenário

Segundo especialistas e relatórios publicados, a onda de calor atual não pode ser explicada por um único fator. Ela é resultado de uma série de fenômenos e mudanças que, juntas, fazem a temperatura subir.

Em seu artigo, o Inmet chama a atenção para o El Niño, em que ocorre um aquecimento acima da média das águas do Oceano Pacífico nas proximidades da Linha do Equador (veja mais no infográfico abaixo).

Quando essa porção do mar fica mais quente, há uma elevação da temperatura em varias regiões do planeta, inclusive em partes do Brasil.

Mas, de acordo com o estudo da Climate Central, o El Niño "está apenas começando a aumentar as temperaturas e, com base nos padrões históricos, a maior parte do efeito do fenômeno será sentido no ano que vem".

"Com base nos registros, é altamente possível que os próximos 12 meses sejam ainda mais quentes", antevê a instituição.

BBC

A geógrafa Karina Lima, doutoranda e pesquisadora de clima na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), acrescenta que boa parte do território brasileiro se encontra agora sob uma espécie de "domo de calor".

"Nesse fenômeno, forma-se uma área de alta pressão atmosférica que permanece numa mesma região e aprisiona o ar quente", explica ela.

"Também há uma instabilidade de chuvas na periferia dessa massa de ar", complementa.

Mas será que esse cenário atual é um prenúncio do que virá pela frente?

Lima pondera que o El Niño turbina as temperaturas globais e favorece o aparecimento de ondas de calor.

"Tudo isso está conectado. Observamos aumento na frequência e na intensidade dos eventos extremos. Há muita energia e calor acumulado no nosso sistema", avalia a pesquisadora.

Por outro lado, a tendência é que o El Niño tenha um pico em 2024 — o que indica um verão bem quente pela frente. Depois, porém, o fenômeno que ocorre no Oceano Pacífico deve entrar numa fase neutra.

"É provável que nem todos os anos sejam tão intensos como 2023. Mas a tendência é que, independentemente do El Niño, continuemos a experimentar eventos extremos relacionados à temperatura ou às chuvas", projeta Lima.

Entre fenômenos globais e locais, não dá para ignorar aqui os efeitos das mudanças climáticas na frequência e na intensidade das ondas de calor.

O relatório da Climate Central avalia que os recordes de temperatura registrados nos últimos meses em várias partes do mundo "não surpreendem" e fazem parte da "tendência de aquecimento alimentada pela poluição de carbono".

"Enquanto a humanidade continuar a queimar carvão, petróleo e gás natural, as temperaturas continuarão a subir, e os impactos disso vão acelerar e se espalhar", alerta a entidade.

Para lidar com o problema — ou ao menos mitigar seus efeitos na economia e na saúde de bilhões de pessoas — especialistas apostam justamente na transição energética rumo a fontes menos poluentes e na preservação das florestas.

Os acordos políticos e diplomáticos que tentam viabilizar esse processo — discutidos anualmente nas cúpulas do clima organizadas pelas Nações Unidas — tentam assegurar que a subida dos termômetros pelos próximos anos não ultrapasse certos limites (como um aumento de até 1,5 °C em relação aos níveis pré-Revolução Industrial), para minimizar as consequências deletérias.

A ideia, por exemplo, envolve substituir os combustíveis fosseis — que geram os gases por trás do efeito estufa e do consequente aquecimento do planeta — por fontes de energia sustentáveis e renováveis.

Outro aspecto fundamental dessa equação está em reduzir drasticamente o desmatamento, especialmente de florestas tropicais como a Amazônia. Isso porque essas reservas contêm grandes quantidades de carbono e ajudam a frear a subida da temperatura global.

"Essa mitigação não é simples, mas precisa ser feita para conseguirmos ficar no melhor cenário possível. Isso exige cortes drásticos, mudanças na matriz energética e alterações estruturais na nossa sociedade", pontua a geógrafa.

"Cada décimo de grau a mais que evitarmos importa e faz toda a diferença, inclusive na ocorrência de eventos extremos."

Lima ainda explica que, além da mitigação, é necessário discutir também a adaptação de cidades e bairros para esses cenários de calor extremo.

"Nós não estamos preparados para a realidade de agora e para lidar com eventos de chuvas fortes ou calor intenso", observa ela.

"Precisaremos repensar as cidades, aumentar a vegetação em locais estratégicos, como os pontos de ônibus e os locais em que as pessoas ficam expostas por um tempo prolongado, investir no isolamento térmico das casas, pintar telhados com cores mais claras, garantir o acesso a água potável e ao protetor solar, fazer campanhas de conscientização, evitar exposições ao calor que não sejam absolutamente necessárias...", lista ela.

"Não damos o devido valor à urgência deste problema. As mudanças climáticas são uma questão transversal, que afeta todas as áreas da nossa vida, da segurança alimentar à saúde e a economia."

"E esse é o maior desafio da Humanidade", conclui ela.

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