Maha Mamo nasceu em Beirute, capital do Líbano, em 29 de fevereiro de 1988. No entanto, foi impedida de ser registrada como libanesa, pois o país concede a nacionalidade com base no sangue, e não no território onde se nasce. Durante 30 anos, a ativista dos direitos humanos foi considerada apátrida — pessoa sem pátria e destituída de direitos básicos. Segundo a lei libanesa, Maha teria que assumir a nacionalidade dos pais, ambos sírios, o cristão Jean Mamo e a muçulmana Kifah Nachar. As leis sírias não permitem casamento inter-religioso. Graças ao Brasil, que lhe concedeu a naturalização, em 2018, deixou de ser apátrida. De passagem por Brasília, onde lançará nesta quarta-feira, às 16h, na Escola Nacional de Administração Pública (ENAP), o livro Maha Mamo: A Luta de uma apátrida pelo direito de existir (Editora Globo), Maha falou com exclusividade ao Correio Braziliense. Confira a entrevista:
- A luta de uma apátrida para conseguir o direito de existir como cidadã
- Irmãs apátridas recebem nacionalidade brasileira
Quais as principais angústias e conflitos de um apátrida?
Nascer como apátrida é nascer como uma pessoa sem um lugar a pertencer. Não ter um país para ser chamado de seu. As angústias são enormes, mas você não as percebe enquanto criança nem em sua família. Como criança, meu primeiro desafio foi na escola. Como é que você vai à escola sem ter documentos? Não peguei a angústia porque era da minha mãe. Eu era muito criança. Para mim, começou depois, quando eu ia para a universidade, quando não conseguia ser atendida no hospital, quando não podia ter um trabalho registrado, nem abrir uma conta bancária ou comprar um chip para o telefone. Eu não existia. A angústia era muito grande, assim como o medo.
Em que circunstâncias o medo se destacava?
Quando você está andando pela rua e é parado pela polícia, você vai preso. Porque quem é você? Onde estão seus documentos? Os conflitos de um apátrida são emocionais. Precisa de muita calma e sabedoria para lidar com eles. As tentações que existem são muito grandes. Imagine você não existir enquanto pessoa. Muitas pessoas tentam lhe fazer mal, aproveitar dessa situação de apátrida.
Como é nascer em um país e não ser abraçada por ele?
Na verdade, não ser abraçada... Posso falar que fui, pois consegui estudar. Eu estudei quatro idiomas no Líbano. Mesmo com todos os desafios, consegui, com minha família, viver uma vida em Beirute, ao lado da minha família. Mesmo sem ter um emprego registrado, consegui, com a boa vontade das pessoas, ser atendida nos hospitais. Minha melhor amiga é libanesa. Eu cresci e vivi 26 anos no Líbano. Infelizmente, foi o sistema libanês que não me acolheu.
De que modo vê as dificuldades enfrentadas por mulheres refugiadas?
As dificuldades enfrentadas por mulheres refugiadas são imensas, pela condição de serem mulheres e, além disso, refugiadas. Mas, acho que o maior desafio, desde 2014, é a integração no mercado de trabalho. Se você consegue dar um trabalho digno para os refugiados, sejam mulheres ou não, eles conseguem pagar suas contas, a terem uma vida, a se integrarem. As mulheres, mesmo sem serem refugiadas, têm o desafio da equidade de gênero e paridade salarial no mercado de trabalho. Na condição de refugiadas, isso é bem pior.
Como a comunidade internacional deve tratar a temática dos refugiados?
A comunidade internacional tem que ver os refugiados como pessoas, como seres humanos. Não como números. Os refugiados, os apátridas, os imigrantes são pessoas que existem, pertencem ao lugar onde serão colocadas e contribuem com a nação. Cada pessoa tem muito a contribuir e a dar. Na minha opinião, é assim que a comunidade internacional deve tratar a temática: como pessoas.
Qual é a receita para abrir fronteiras sem colocar em risco a economia dos países?
Imigrantes não colocam em risco a economia de países. Ninguém está aqui para pegar o lugar do outro. Essas conversas que ouvimos não têm sentido. Pelo contrário, as pessoas refugiadas ou imigrantes sempre acrescentam a uma nação. Por meio da diversidade, a gente consegue muito mais inclusão e contribuição à economia.
De que modo a guerra na Faixa de Gaza impacta a senhora, enquanto mulher que foi perseguida e destituída de direitos?
As guerras na Faixa de Gaza, na África e na Ucrânia... As guerras que nunca param... Todas essas guerras me afetam e afetam a todos. Nós sempre queremos a paz. Queremos que o mundo seja melhor, que as pessoas consigam contribuir de uma forma melhor para o planeta. Eu fico impactada vendo as notícias e pessoalmente, pois vivi uma guerra em 2006, em Beirute, quando eu morava lá. Reviver tudo isso não é legal. Tenho amigos que moram lá. Espero que a paz ocorra em todos os lugares. O pior para mim foi não sentir o pertencimento. Você não tem direitos básicos, não existe. Sou ex-apátrida. Hoje, sou brasileira. Há uma diferença muito grande entre apátridas, refugiados e imigrantes. Os apátridas são pessoas que não têm nacionalidade, não têm CPF, RG, nenhum documento que fale de sua existência legal enquanto pessoa. O refugiado tinha um país e, por circunstâncias diferentes, como a guerra, teve que sair dali e buscar uma outra nação. Ele não tinha opção. O apátrida vive como sombra. Você está naquele país, naquele lugar, mas é uma sombra, você não existe. As pessoas não o perseguem se você não aparece.