Se a Guerra Fria, entre 1945 e 1991, foi um dos períodos mais polarizadores da História, Henry Kissinger, que morreu na quarta-feira (29/11) aos 100 anos, está entre os seus mais controversos protagonistas.
Ele orquestrou a política de distensão que reduziu as tensões entre os Estados Unidos, a União Soviética (URSS) e a China.
Para os sul-americanos, o ex-conselheiro de Segurança Nacional e secretário de Estado americano nos anos 1970 ficou mais conhecido por apoiar as ditaduras do Cone Sul – em particular o regime brutal do general Augusto Pinochet, no Chile.
Símbolo do chamado “realismo” nas relações internacionais, Kissinger foi procurado por tribunais europeus e sul-americanos por sua relação com crimes de guerra praticados no Chile, Argentina e Timor Leste.
Por outro lado, recebeu um Prêmio Nobel da Paz por negociar a retirada dos Estados Unidos do Vietnã. Também promoveu a intermediação diplomática que levou a um cessar-fogo no conflito árabe-israelense iniciado em 1973.
Mas o que seus apoiadores chamavam de “realpolitik” - a política feita não a partir de princípios morais ou éticos, mas sim a partir de considerações de ordem prática -, críticos taxavam simplesmente de imoral.
"Nos Estados Unidos, como você sabe, somos solidários com o que você está tentando fazer aqui", disse Kissinger a Pinochet em 1976, segundo documentos desclassificados da agência americana de inteligência, CIA.
"Queremos ajudar, não prejudicar você. Você prestou um grande serviço ao Ocidente derrubando Allende," continuou Kissinger, referindo-se ao golpe militar em 1973 contra o presidente socialista eleito no Chile, Salvador Allende.
Durante uma visita à Argentina durante a Copa Mundial de futebol de 1978, Kissinger não poupou elogios à junta militar, contrariando inclusive a política oficial vigente nos EUA, de pressionar os generais argentinos a conter a “Guerra Suja” no país.
"A sátira política ficou obsoleta quando Henry Kissinger recebeu o Prêmio Nobel da Paz," disse à época o comediante Tom Lehrer em uma de suas mais famosas observações.
Fuga da Alemanha nazista
Heinz Alfred Kissinger nasceu em uma família judia de classe média na Baviera em 27 de maio de 1923.
Para fugir da perseguição nazista, a família deixou a Alemanha em 1938 e emigrou para os EUA, onde se juntou à comunidade judaica alemã em Nova York.
"Henry" era um adolescente naturalmente tímido, que nunca perdeu seu sotaque ou seu amor pelo futebol.
Ele cursava o ensino médio à noite, enquanto trabalhava em uma fábrica de pincéis de barbear durante o dia. Planejava estudar contabilidade, mas foi convocado para o Exército.
Designado para a infantaria, sua inteligência e suas habilidades linguísticas foram utilizadas pela inteligência militar. Kissinger entrou em ação na batalha do Bulge e, mesmo sendo apenas um soldado raso, acabou no comando de uma cidade alemã capturada.
Perto do fim da guerra, ingressou no setor de contrainteligência. Aos 23 anos, conduzia um grupo de oficiais cuja missão era caçar ex-oficiais da Gestapo, o serviço secreto alemão, com poder absoluto para prender e deter suspeitos.
Guerra nuclear ‘limitada’
Após retornar aos Estados Unidos, Kissinger estudou ciências políticas em Harvard, subindo na hierarquia acadêmica.
Em 1957, publicou o livro Armas Nucleares e Política Externa. Nele, Kissinger propõe o conceito de “guerra nuclear limitada”, que poderia ser vencida através do uso “tático” de armas nucleares, em substituição ao conceito vigente de “guerra nuclear total”, segundo o qual uma guerra contra a União Soviética levaria ao fim da civilização.
Embora ainda seja influente, o conceito é altamente polêmico, pois mesmo uma guerra nuclear de menor escala teria efeitos devastadores para as populações envolvidas.
Mas a obra lhe deu projeção. Kissinger logo se tornou assessor de Nelson Rockefeller, governador de Nova York e candidato à presidência americana. Quando Richard Nixon se elegeu à Presidência em 1968, Kissinger ganhou um cargo de destaque: conselheiro de Segurança Nacional.
Era uma relação complexa. O presidente dependia dos conselhos de Kissinger sobre relações internacionais, mas tinha inclinações antissemitas e suspeitava dos judeus americanos.
Distensão
A Guerra Fria estava no auge: EUA e URSS tinham evitado a aniquilação mútua apesar da escalada de tensões durante a chamada crise dos mísseis, envolvendo Cuba, em 1962. As tropas americanas ainda estavam no Vietnã e os soviéticos tinham invadido Praga em 1968.
Nixon e Kissinger então embarcaram numa política de reduzir as tensões com a União Soviética, retomando negociações para reduzir o tamanho de seus respectivos arsenais nucleares. Essa política ficou conhecida como distensão ou détente, seu termo francês.
Ao mesmo tempo, a Casa Branca reaproximou-se da China, dialogando com Pequim através do primeiro-ministro Zhou Enlai. Isso melhorou as relações sino-americanas e intensificou a pressão diplomática sobre a liderança soviética, que temia seu populoso vizinho asiático.
Em 1972, Nixon viajou à China e se encontrou com Mao Tsé Tung, pondo fim a 23 anos de hostilidades e distanciamento diplomático.
Vietnã
Nixon havia sido empossado em 1969 prometendo tirar as tropas americanas do Vietnã, onde o Norte, comunista, havia invadido o Sul, alinhado com o Ocidente capitalista, em 1955.
Embora o envolvimento americano no conflito datasse dessa época, acelerou-se durante o governo de John F. Kennedy e sobretudo a partir de 1964, sob Lyndon Johnson.
Nixon havia oferecido aos americanos a “paz com honra” no Vietnã - uma variação da ideia de buscar uma saída honrosa para os americanos no conflito.
Para Kissinger, era preciso entender a natureza do conflito como uma guerra de guerrilhas, que, no caso do Vietnã, praticamente impossibilitava uma vitória militar através do uso de tropas regulares.
O conselheiro de Segurança Nacional sustentava que qualquer vitória militar dos EUA sobre os vietcongues (a guerrilha do Vietnã comunista) seria “quase totalmente inútil” pois não conseguiria mudar a "realidade política” e sobreviver à retirada americana.
Kissinger deu início a negociações com o Vietnã do Norte, mas, secretamente, concordou com a decisão de Nixon de bombardear o vizinho Camboja, alvejando linhas de suprimento comunistas.
A medida, tomada sem o aval do Congresso americano, resultou na morte de pelo menos 50 mil civis. A desestabilização do país levou à guerra civil cambojana e culminou no regime brutal de Pol Pot.
Durante uma série tortuosa de negociações com os vietcongues em Paris, Kissinger, agora Secretário de Estado, negociou a retirada militar americana do Vietnã do Sul.
Por essa razão, Kissinger recebeu o Prêmio Nobel da Paz junto com Le Duc Tho, diplomata e revolucionário do Vietnã do Norte – uma decisão controversa que enfureceu ativistas pela paz. Le Duc Tho rejeitou o Prêmio Nobel, alegando que a paz não havia sido alcançada.
Kissinger, porém, aceitou a honraria "com humildade" e doou o dinheiro do prêmio para os filhos dos militares americanos mortos no conflito. Dois anos depois, quando as forças comunistas do Norte tomaram Saigon e estabeleceram o comunismo no país, tentou devolver o prêmio.
'Realpolitik'
Kissinger orquestrou a intermediação entre árabes e israelenses que permitiria aos dois lados chegar a um cessar-fogo no conflito iniciado em 1973.
Mas a “realpolitik” americana em relação aos judeus ficaria explícita em uma série de áudios da Casa Branca desclassificados em 2010. Neles, Nixon e Kissinger discutiam o tratamento dos judeus na União Soviética com a primeira-ministra de Israel, Golda Meir.
Meir queria que os Estados Unidos pressionassem os soviéticos a permitir a emigração de judeus perseguidos na URSS para Israel. As fitas revelaram, porém, que os dois homens não tinham qualquer intenção de cumprir o compromisso e pressionar o governo soviético.
"A emigração de judeus da União Soviética não é um objetivo da política externa americana", disse Kissinger. "E se eles colocam judeus em câmaras de gás na União Soviética, isso não é uma preocupação americana. Talvez seja uma preocupação humanitária."
"Eu sei", respondeu Nixon. "Não podemos explodir o mundo por causa disso."
Após a divulgação das fitas, Kissinger pediu desculpas por seu conselho a Nixon, afirmando que “referências às câmaras de gás não têm lugar no discurso político”.
Cone Sul
Kissinger presidiu o comitê que autorizou as operações secretas da CIA no Chile para tentar derrubar o governo de Salvador Allende, eleito em 1970. O governo, socialista, conseguira aprovar no Congresso chileno a nacionalização do cobre no ano seguinte.
"Não vejo por que precisamos ficar parados vendo um país virar comunista devido à irresponsabilidade de seu povo", disse Kissinger, sobre o Chile. "As questões são importantes demais para deixar os eleitores chilenos decidirem por si mesmos."
Em 1973, sob as ordens do general Pinochet, os militares tomaram as ruas de Santiago e cercaram o palácio presidencial de La Moneda, que foi alvo de bombardeios. Allende morreu durante a violenta tomada de poder.
Descobriu-se depois que muitos dos soldados envolvidos no golpe chileno haviam sido pagos pela CIA.
Nos anos seguintes, o próprio Kissinger seria processado por vários tribunais que investigavam abusos de direitos humanos e mortes de estrangeiros durante o regime militar. Juízes na Argentina, no Chile, França e Espanha queriam tomar depoimentos do ex-secretário de Estado americano sobre esses casos.
Em 2022, um tribunal britânico negou um pedido de prisão de Kissinger feito por um ativista para que o ex-secretário respondesse por acusações de crimes de guerra no Vietnã.
Kissinger também esteve na mira do juiz espanhol Baltasar Garzón, que havia conseguido a detenção de Pinochet em Londres em 1998. As autoridades britânicas, no entanto, negaram a extradição de Pinochet para a Espanha alegando saúde frágil do ex-ditador. Garzón desejava tomar o testemunho de Kissinger sobre a Operação Condor, colaboração entre as ditaduras do Cone Sul para coordenar a repressão a dissidentes políticos.
Nixon deixou a presidência em 1974, em meio ao escândalo do Watergate, mas Kissinger continuou como secretário de Estado até 1977, sob Gerald Ford. Depois, passou a dar palestras nas mais prestigiosas universidades e centros de pesquisa do mundo, e a participar como convidado em programas de televisão. Mas não pôde aceitar uma oferta de cátedra na Universidade de Columbia porque a decisão enfureceu a comunidade universitária e gerou protestos estudantis.
Poder: o afrodisíaco definitivo
Kissinger foi um crítico veemente da política externa dos democratas Jimmy Carter e Bill Clinton, argumentando que ambos tentavam dar um “salto” ambicioso demais na questão do Oriente Médio. Para o ex-conselheiro de Nixon, a paz na região precisava avançar centímetro a centímetro.
Após o 11 de setembro de 2001, George W. Bush pediu que Kissinger presidisse a investigação sobre os ataques a Nova York e Washington. Mas Kissinger foi forçado a se retirar em poucas semanas, recusando-se a responder perguntas sobre conflitos de interesse e a revelar a lista de clientes de sua consultoria.
O ex-conselheiro apoiou a invasão do Iraque para remover Saddam Hussein em 2003 e reunia-se com o presidente George W. Bush e seu vice Dick Cheney para aconselhá-los sobre o conflito.
Em aparente contradição com as lições do Vietnã e de outros conflitos nos quais os EUA se envolveram após a Segunda Guerra Mundial, Kissinger dizia que “a vitória sobre a insurgência (iraquiana) é a única estratégia de saída”.
Em 2014, ele declarou que “se soubesse tudo o que sei agora, provavelmente não teria apoiado (a invasão)”.
Kissinger também assessorou Donald Trump sobre política externa em 2017, sugerindo, entre outras coisas, que os EUA aceitassem a ocupação da Crimeia pela Rússia. Porém, voltou a mudar de ideia sobre o assunto.
Em 2023, quando já contava com mais de cem anos de idade, ele defendeu a entrada da Ucrânia na aliança militar Otan após o fim da guerra com a Rússia.
Sua última aparição de destaque foi um julho passado, quando fez uma visita surpresa a Pequim para se encontrar com o presidente chinês Xi Jinping.
Kissinger possuía uma extensa lista de contatos e sabia pensar rápido. Dotado de uma personalidade carismática, ele esteve no centro do poder durante alguns dos mais importantes acontecimentos do século passado. "O poder", gostava de dizer, "é o maior afrodisíaco”.
Para a fúria de muitos, jamais se desculpou pela defesa intransigente dos interesses americanos, assim como do modo de vida e dos valores do seu país adotivo.
"Um país que exige perfeição moral em sua política externa", declarou certa vez, "não alcançará nem perfeição nem segurança".
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