Mais de cinquenta dias após a saída de Augusto Aras do comando da Procuradoria-Geral da República (PGR), o presidente Luiz Inácio Lula da Silva escolheu seu sucessor.
O vice-procurador-geral eleitoral, Paulo Gonet, foi indicado nesta segunda-feira (27/11) e vai assumir o posto caso o Senado aprove seu nome.
Com essa escolha, Lula rompeu com a tradição que ele mesmo havia inaugurado de sempre indicar para o comando da PGR o primeiro colocado em uma lista tríplice eleita pela própria categoria do Ministério Público Federal (MPF).
Seguiu assim, o exemplo do ex-presidente Jair Bolsonaro, que também indicou Aras fora da lista.
O ex-PGR deixou o cargo sob a pecha de ter atuado como aliado bolsonarista.
Apesar de não ter a chancela da categoria, Gonet contou com o apoio de peso de dois ministros do Supremo Tribunal Federal (STF): Gilmar Mendes e Alexandre de Moraes.
Seu nome também ganhou projeção como subprocurador-geral eleitoral, quando esteve à frente das ações que levaram o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) a condenar Bolsonaro a ficar oito anos sem disputar eleições.
Agora, caso se confirme sua nomeação, é ele quem vai decidir sobre o andamento de outras investigações que miram em cheio o ex-presidente e avaliar possíveis denúncias criminais contra Bolsonaro e seus aliados.
Estarão no foco do futuro PGR, por exemplo, o que fazer com a delação premiada do tenente-coronel Mauro Cid, ex-ajudante de ordens de Bolsonaro, e os inquéritos contra militares suspeitos de envolvimento na invasão das sedes dos Três Poderes (entenda melhor ao longo da reportagem).
Mas não é só o futuro de Bolsonaro que poderá ser afetado pelas decisões de Gonet, caso sua nomeação de confirme. O cargo é poderoso, já que o PGR chefia o Ministério Público Federal e é o único que pode investigar e denunciar eventuais crimes cometidos pelo presidente da República, assim como por outras autoridades com foro privilegiado, como ministros, parlamentares e governadores.
A preocupação com esses amplos poderes guiou a decisão de Lula de buscar um nome fora da lista tríplice. O petista tentou afastar o risco de seu indicado repetir algo como a operação Lava Jato, que ganhou fôlego quando a PGR era comandada por Rodrigo Janot, nomeado em 2013 por Dilma Rousseff, após encabeçar a lista tríplice.
A operação atingiu com força o PT e chegou a provocar a condenação e a prisão de Lula — depois, o Supremo Tribunal Federal anulou os processos por ilegalidades em sua condução.
Adversários de Lula no alvo
As bombas na mesa do futuro PGR
O próximo PGR assume o cargo já com uma série de investigações engatilhadas contra Bolsonaro e seus aliados, como a que apura supostas tentativas de um golpe para impedir a posse de Lula, ou inquéritos sobre os ataques de 8 de janeiro e a venda de joias do acervo presidencial.
Para uma fonte da Procuradoria-Geral da República ouvida pela BBC News Brasil, entre as prioridades do substituto de Aras estará avaliar possíveis desdobramentos da delação premiada do tenente-coronel Mauro Cid, ex-ajudante de ordens de Bolsonaro, e até mesmo decidir sobre uma possível denúncia criminal contra o ex-presidente, em um dos diferentes inquéritos no STF.
O acordo de Cid continua em sigilo. Segundo reportagens da imprensa brasileira com acesso a seu conteúdo, o ex-ajudante de ordens teria dito que Bolsonaro tentou convencer a cúpula das Forças Armadas a impedir a posse de Lula na presidência.
Cid também teria detalhado as fraudes no cartão de vacinação do ex-presidente e seu envolvimento na venda de joias do acervo presidencial. Já o ex-presidente nega todas as acusações.
Embora esse acordo de delação tenha sido firmado pela Polícia Federal sem participação da PGR, desdobramentos como eventuais denúncias criminais só podem ocorrer por iniciativa do Ministério Público.
Isso, no entanto, dependerá de as investigações colherem provas adicionais que corroborem o que foi revelado por Cid, ressalta a fonte ouvida pela BBC New Brasil.
Antes de deixar o comando da PGR, Aras contestou a validade da delação de Cid, lembrando os acordos firmados pela PF no âmbito da Lava Jato, sem participação do Ministério Público, com o ex-ministro da Fazenda Antonio Palocci e o ex-governador do Rio de Janeiro Sergio Cabral. Ambas as delações acabaram anuladas.
"A Procuradoria Geral da República não é de Augusto Aras. É da República Federativa do Brasil e é pautada pela Constituição. A PGR, portanto, não aceita delações conduzidas pela Polícia Federal, como aquelas de Antonio Palocci e de Sérgio Cabral, por exemplo", afirmou o então PGR em 9 de setembro, por meio de uma rede social, reagindo ao acordo de Cid.
O próximo PGR, porém, poderá adotar outra postura. Hoje, a instituição está sendo comandada interinamente pela subprocuradora-geral Elizeta Maria de Paiva Ramos. Já a análise do acordo de delação de Cid está nas mãos do subprocurador-geral Carlos Frederico, responsável pelos inquéritos sobre o 8 de janeiro.
Frederico deu recentemente declarações públicas de que a delação seria fraca, por falta de provas que corroborem o relato de Cid. E disse que já havia solicitado novas diligências à Polícia Federal em busca de elementos que corroborem as acusações.
"Eu investigo para comprovar. Não posso partir de ilações. Isso foi o jogo da Lava Jato. Eu não trabalho como o pessoal da Lava Jato. Eu trabalho com provas concretas para que as pessoas sejam denunciadas com provas irrefutáveis", disse em entrevista ao jornal Estado de São Paulo, no início de novembro.
Entre os trechos da delação já divulgados pela imprensa brasileira está as acusações de que Bolsonaro tentava dar um golpe. Segundo reportagens do portal UOL e do jornal O Globo, ele narrou à PF que Bolsonaro teria participado de uma suposta reunião com militares do alto escalão em 24 de novembro do ano passado, com intenção golpista de impedir a posse de Lula, eleito em outubro.
No suposto encontro, teria sido discutida a minuta de um ato presidencial para convocar novas eleições e prender adversários.
Em nota publicada após a divulgação dos relatos de Cid, advogados de Bolsonaro afirmaram que o ex-presidente "jamais tomou qualquer atitude que afrontasse os limites e garantias estabelecidas pela Constituição" e que, ao longo dos quatro anos de seu mandato, "sempre jogou dentro das quatro linhas da Constituição Federal".
Caso se confirme a reunião e seu teor golpistas, especialistas ouvidos pela BBC News Brasil dizem que os participantes teriam cometido crimes como tentativa de golpe de Estado, abolição ao Estado democrático de direito e prevaricação (quando um funcionário público tem conhecimento de uma irregularidade, mas não toma medidas para impedi-la). As penas variam de quatro a doze anos de prisão.
Mas estes mesmos especialistas também enfatizam ser necessário que a Polícia Federal aprofunde as investigações e encontre elementos que corroborem a versão dada por Mauro Cid.
O diretor-geral da Polícia Federal, Andrei Rodrigues, afirmou à CNN Brasil em 9 de novembro que a investigação está em andamento, sem trazer detalhes sobre as diligências em curso.
Segundo o portal G1, uma das providências da PF para tentar comprovar o teor da delação foi pedir ao Gabinete de Segurança Institucional os registros de entrada e saída de militares e outros visitantes ao Palácio do Alvorada durante o período que teria ocorrido encontros para discutir um possível golpe.
Outro caminho da investigação é analisar conversas no celular de Cid e de outras pessoas do entorno de Bolsonaro, como o advogado Frederick Wassef, que teve quatro aparelhos apreendidos.
O fato de Bolsonaro não ser mais presidente, no entanto, gera questionamentos se ele deveria ser investigado e, eventualmente, denunciado pela PGR, que, a princípio, só é responsável por casos envolvendo autoridades com foro especial.
Para o ex-procurador-geral da República Claudio Fonteles, porém, é certo que caberá ao substituto de Aras avaliar o futuro do ex-presidente nesse caso, pois o STF já decidiu manter em sua jurisdição inquéritos que investigam ataques diretos à Corte e ao Estado Democrático de Direito.
Além disso, explicou ele à reportagem, a possível presença de outros investigados com foro especial no mesmo inquérito, como parlamentares suspeitos de envolvimento nesses atos antidemocráticos, também autoriza a manutenção dos casos no Supremo.
Possível responsabilização de Bolsonaro pelo 8 de janeiro?
A delação de Cid não é o único caminho que pode levar a movimentações do próximo PGR contra supostas ações golpistas de Bolsonaro e seus aliados
Como explicou à reportagem Claudio Fonteles, o substituto de Aras é quem vai decidir sobre o andamento das recomendações da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) sobre os ataques de 8 de janeiro, quando bolsonaristas radicais vandalizaram as sedes dos Três Poderes.
O relatório final aprovado na comissão acusa o ex-presidente de ter sido autor moral e intelectual dos ataques aos Três Poderes. E pede o indiciamento (abertura de um inquérito criminal) contra o ex-presidente por quatro possíveis crimes previstos no Código Penal: associação criminosa, violência política, abolição violenta do Estado Democrático de Direito e golpe de Estado.
A CPMI propôs ainda o indiciamento de mais 60 pessoas, incluindo a deputada federal Carla Zambelli (PL-SP) e ex-ministros do governo Bolsonaro, como Anderson Torres (Justiça) e os generais Augusto Heleno (Gabinete de Segurança Institucional), general Walter Braga Netto (Casa Civil) e general Luiz Eduardo Ramos (Secretaria-Geral da Presidência da República). Todos também têm negado responsabilidades pelos ataques.
Em nota sobre o relatório da CPMI, a defesa de Jair Bolsonaro manifestou "indignação" com a proposta de indiciamento "por diversos crimes para os quais jamais concorreu ou minimamente participou".
"O ex-Presidente sequer foi convocado para prestar declarações perante a dita comissão — o que teria feito sem qualquer receio —, subtraindo-se-lhe, de forma insólita, o ato primário do exercício do direito de defesa", dizia ainda a nota.
Denúncia contra militares?
Além das investigações contra Bolsonaro, outro provável foco de atenção do futuro PGR será o envolvimento de militares nos atos de 8 de janeiro.
Até o momento, centenas de civis já foram denunciados criminalmente STF — e alguns foram, inclusive, condenados.
No entanto, as investigações sobre militares suspeitos de atuar nas invasões ainda estão em andamento na PF. Apenas com a conclusão do inquérito, a PGR definirá se há elementos para denunciar integrantes das Forças Armadas e policiais.
Para Fonteles, até o momento estão sendo denunciadas e julgadas apenas os "bagrinhos" envolvidos no 8 de janeiro — ou seja, pessoas que executaram os atos antidemocráticos, mas não os idealizadores e financiadores.
Na sua visão, é essencial que o próximo PGR avance sobre esses dois grupos.
"Não podemos ficar fazendo recair a persecução criminal sobre a ponta da história, a linha mais fraca, os bagrinhos", disse à BBC News Brasil.
"Essa escala que tem que ser preenchida agora. Essas pessoas não agiram sozinha. Essas pessoas só foram fazer aquilo que fizeram porque foram amparadas e direcionadas por mandantes e por pessoas que financiaram o deslocamento dessas pessoas", reforça.
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