Arte

A 'Noiva Hesitante': a história por trás do quadro que está ajudando mulheres a canalizar sua raiva no TikTok

Olhar de mulher retratada em 'A Noiva Hesitante', do francês Auguste Toulmouche (1829-1890), foi definido como representação icônica da raiva feminina.

A 'Noiva Hesitante' -  (crédito: Sotheby’s)
A 'Noiva Hesitante' - (crédito: Sotheby’s)
BBC
Cydney Thompson - The Conversation*
postado em 27/11/2023 07:49 / atualizado em 27/11/2023 11:28

Você deve ter visto esta pintura circulando no TikTok. Talvez você até tenha também feito um vídeo sobre ela. Uma jovem com um vestido de noiva vitoriano olha para o espectador com desdém nos olhos.

Três mulheres a cercam, aparentemente tentando acalmá-la. A intensidade do olhar direto e obstinado da noiva prende o espectador. No TikTok, a pintura surge acompanhada de uma música clássica trovejante, que remete ao clímax de uma batalha — A Missa de Réquiem, de Giuseppe Verdi (1813-1901).

O olhar da mulher foi definido como uma representação icônica da raiva feminina. E começou a surgir no TikTok acompanhado de textos escritos por mulheres, falando sobre o sentimento retratado.

"Você parece tão inacessível", diz um, seguido por: "E, no entanto, aqui está você". "É provavelmente porque os homens se sentem intimidados por você", diz outro, seguido de: "Como deveria ser".

De onde veio essa pintura incomum? A Noiva Hesitante (também conhecida como A Noiva Relutante) foi pintada em 1866 pelo artista francês Auguste Toulmouche (1829-1890).

Embora não seja um nome familiar hoje, Toulmouche conviveu com alguns dos artistas mais famosos.

Ele era casado com a prima de Claude Monet e foi convidado a ser mentor de Monet quando este se mudou para Paris.

Toulmouche apoiou o jovem aspirante recomendando Monet a seu professor de pintura, Charles Gleyre.

Foi o que conectou Monet a uma comunidade mais ampla de pintores emergentes, como Renoir, Sisley e Bazille, que ficaram conhecidos como os impressionistas — dando início a um dos movimentos artísticos mais influentes da história.

Toulmouche foi um pintor da escola romântica e especializou-se em pintura de moda.

Bastante popular nos opulentos salões da Paris do século 19, a pintura de moda dedica-se a representar roupas, móveis e quartos luxuosos de casas de classe alta.

Algumas das pinturas mais famosas de Toulmouche, A Carta de Amor, A Vaidade e A Lição de Leitura, são típicas desse estilo, retratando ricas donas de casa parisienses.

'Pintura de moda'

A Noiva Hesitante é um exemplo clássico de pintura de moda. Apoia-se nas roupas das mulheres para contar uma história, mostrando estilos, acessórios e tecidos requintados. Mas as semelhanças com outras obras de Toulmouche acabam por aqui.

Há um alto nível de teatralidade na obra. Ao colocar as mulheres na parte inferior do campo de visão, Toulmouche consegue usar móveis finos para enfatizar a altura da sala, imitando um palco.

A justaposição das belas roupas, o quarto ornamentado e as outras mulheres olhando para a noiva (longe do espectador) chamam a atenção para o assunto principal, enfatizando o olhar da noiva.

A Noiva Hesitante marcou uma notável mudança de tom para Toulmouche, com o olhar direto e obstinado da noiva dirigindo-se diretamente ao espectador.

Ela subverteu as expectativas socioculturais da época ao expressar sua resistência ao casamento.

A quebra da convenção da quarta parede (a noiva fazendo contato visual com o espectador) não era muito utilizada nessa escola, nem por Toulmouche.

Da mesma forma, as emoções negativas da noiva são um grande afastamento de outras pinturas de moda da época.

Essa escolha faz com que a pintura se destaque de suas contemporâneas, que apresentavam mulheres muito mais recatadas.

Antes dessa obra, Toulmouche era conhecido por pintar exclusivamente "mulheres bonitas, mas ociosas".

Um crítico contemporâneo, Émile Zola, intitulou as modelos de Toulmouche de "bonecas deliciosas", com outro crítico da época dizendo que as mulheres em suas pinturas "não têm cérebro".

Toulmouche e o olhar Fleabag

Mas por que esta pintura ficou tão popular e agora? O olhar inabalável da noiva relutante foi elogiado por sua representação precisa da raiva feminina, um conceito historicamente difícil de ser capturado por artistas homens.

No passado, a raiva feminina foi frequentemente retratada como um de dois extremos — silenciosa, calma e interna, ou externa, com gritos e histeria. Essa dicotomia limitante é misógina.

Um contemporâneo moderno da Noiva Hesitante pode ser visto em 'Fleabag', de Phoebe Waller-Bridge, série de TV aclamada pela crítica que retrata uma protagonista feminina corajosa e honesta, que muitas vezes quebra a convenção dramática da quarta parede ao olhar diretamente para o espectador.

Seu olhar direto (conhecido online como "olhar Fleabag") confronta o espectador com incredulidade diante do que é considerado a experiência feminina "aceitável" e o convida a reconhecer sua luta.

O olhar da noiva alcança o espectador no estilo Fleabag, pedindo que você considere a posição em que ela se encontra.

A raiva se destaca em relação à suavidade do mundo da mulher que existe ao seu redor, desafiando o espectador a se colocar no lugar dela.

Ao participar desta trend, os usuários do TikTok permitem que suas emoções sejam refletidas através da expressão desafiadora da noiva. Ao fazê-lo, recontextualizam a arte numa conversa mais moderna, permitindo que o trabalho viva e permaneça relevante.

Tal qual as jovens da época sentiram-se vistas pela Noiva Hesitante quando a obra foi apresentada pela primeira vez em Paris em 1866, as jovens de hoje veem a sua própria frustração e raiva refletidas na pintura de Toulmouche.

A arte pode nos ajudar a entender o que conecta emoção e experiência.

E se a popularidade atual do olhar desta noiva pode nos dizer alguma coisa, é que a raiva feminina arde hoje tão ferozmente como sempre.

*Cydney Thompson é doutoranda na Escola de História da Universidade Trinity College em Dublin, na Irlanda.

**Este artigo foi publicado no The Conversation e reproduzido aqui sob a licença Creative Commons. Clique aqui para ler a versão original em inglês.

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