Araçuaí, cidade mineira de pouco mais de 34 mil habitantes no Vale do Jequitinhonha, bateu o recorde de dia mais quente da história do Brasil.
A temperatura registrada no domingo (19/11) foi de 44,8ºC, segundo o Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet).
Até então, o recorde nacional era de Bom Jesus, no Piauí, onde os termômetros marcaram 44,7ºC em 21 de novembro de 2005.
O empresário Geraldo Magela Soares, de 61 anos, mora na cidade desde que nasceu, trabalha transportando estruturas metálicas e de som e sentiu no bolso o efeito do calor.
“Eu estava na rodovia, faltavam 5 km para entrar na cidade quando ouvi o barulho do estouro do pneu. Logo em seguida, deu mais um estouro”, conta à BBC News Brasil.
"Dois pneus ficaram destruídos, não aguentaram o calor do asfalto."
Depois da explosão dos pneus, ele passou a sentir fortes dores no ouvido e procurou um médico, que constatou que um dos seus tímpanos sofreram lesões devido ao barulho.
"Fui encaminhado para passar por uma consulta em Belo Horizonte para ver se será necessária cirurgia", diz.
Para tentar amenizar os efeitos do calor, o empresário afirma que a família e os funcionários, que trabalham na montagem de estruturas metálicas, tomam alguns cuidados extras como se hidratar e começar a trabalhar mais cedo.
"Adiantamos o horário da equipe para entrar às 5h em vez de às 7h, assim eles encerram o serviço por volta das 14h", diz.
"Além disso, todos estamos usando chapéus para proteger do sol e tomando muita água."
Além de Araçuaí, o levantamento do Inmet mostra que Aragarças, em Goiás, está entre os municípios brasileiros que mais registraram altas temperaturas neste ano.
O calor chegou a 44,3°C em 19 de outubro — quando se tornou a cidade mais quente em 2023 do país, marca que só foi superada pelo novo recorde histórico de Araçuaí.
Mas, diferentemente da cidade de Minas Gerais, que teve um pico de calor em um dia específico, Aragarças já havia ficado em primeiro lugar no ranking do Inmet em outras duas ocasiões.
As três marcas foram registradas entre outubro e novembro, em um espaço menos de 30 dias.
Guilherme Bispo, de 29 anos, diz que quem mora na cidade como ele está acostumado às temperaturas altas, mas que ainda assim é preciso adaptar a rotina nos dias mais quentes.
Ele trabalha de casa como criador de conteúdo e passou a levar o computador para a varanda porque a temperatura é mais quente no quarto ou na sala. E tem sempre garrafas de água no congelador.
Ele conta ainda que evita sair na rua à tarde. "Ir ao mercado, buscar medicamentos e consultas médicas marcamos apenas pela manhã."
Gulherme tem distrofia muscular, uma condição genética hereditária que faz com que seus músculos se enfraqueçam gradualmente.
Por isso, os dias quentes são mais complicados para ele, que se locomove de cadeira de rodas.
O estofado do equipamento e a necessidade de estar sempre sentado fazem com que ele transpire ainda mais.
"Uso lenço umedecido, passo água pelo corpo e fico na frente do ventilador, para manter o corpo fresco por uns dez minutos", conta Guilherme.
"Com o aumento da temperatura, eu me sinto mais ofegante e sinto falta de ar. Isso me causa ainda mais desconforto."
Manter as janelas sempre abertas e tomar banhos de mangueira no quintal são medidas que ajudam a amenizar o calor.
"Mas, por ser uma cadeira motorizada, não posso molhá-la, então, quando quero me refrescar na mangueira, minha esposa precisa me ajudar a sentar em uma cadeira comum", diz Guilherme.
Sua casa é simples, não tem forro nem ar-condicionado, o que torna os dias quentes especialmente sofridos.
"Deixamos tudo aberto, colocamos balde de água no quarto e toalhas molhadas na cabeceira da cama, além de sempre deixar ventiladores ligados 24 horas em todos os cômodos em que estamos", acrescenta.
"Às 21h, ainda está 35°C. Nem me lembro quando foi a última vez que fechei a janela do quarto para dormir ou que usei cobertor."
Cuiabá: capital mais quente do país
O calor sufocante atinge também Cuiabá, considerada a capital mais quente do Brasil.
A cidade do Mato Grosso registrou 44,2°C em 19 de outubro e ficou em primeiro lugar no ranking das temperaturas mais altas registradas no país naquela data.
Cuiabá é conhecida pelo calor - uma fama atestada pelo Inmet: a capital superou a marca dos 40°C em 35 dias só no segundo semestre deste ano.
O calor fez a Defesa Civil de Mato Grosso emitir um alerta de ameaça à saúde pública no Estado no fim da segunda semana de novembro.
A Universidade Federal de Mato Groso suspendeu por dois dias as atividades presenciais em Cuiabá e outras três cidades.
A Prefeitura de Cuiabá também recomendou no fim de outubro que as escolas da rede pública usassem umidificadores nas salas e pedissem que os alunos levassem garrafas de água para a aula.
Rafael de Ávila Rodrigues, professor e climatologista do Instituto de Geografia da Universidade Federal de Catalão (UFCAT), explica não ser por acaso que Aragarças (GO), Araçuaí (MG) e Cuiabá (MT) estejam entre as cidades mais quentes no Brasil.
Essas cidades estão próximas ao nível do mar e, quanto menor a altitude onde uma cidade está, mais ela terá temperaturas extremas, diz o especialista.
Normalmente, espera-se que a energia do sol "bata" no chão, volte a subir em direção à camada superior da atmosfera e seja absorvida pelas nuvens. Mas, com a onda de calor, essa volta não aconteceu.
"Como estávamos com atuação dessa forte onda de calor, todo esse ar quente que não consegue dissipar e fica aprisionado em áreas de baixas altitudes, elevando as temperaturas", explica Rodrigues.
Esse "aprisionamento" de uma grande massa de ar quente em uma determinada região impede a chegada de frentes frias ou chuvas e faz os termômetros subirem drasticamente — o que recebe o nome de "domo de calor" ou bloqueio atmosférico.
Ele age como se fosse uma grande bolha de ar quente, que não consegue se dissipar, porque existe uma alta pressão atmosférica que "empurra" essa massa calorosa em direção à superfície terrestre.
Fenômeno climático El Niño
Especialistas ouvidos pela BBC News Brasil explicam que, em 2023, o país está sendo afetado pelo fenômeno climático El Niño (aquecimento acima da média das águas do Oceano Pacífico Equatorial).
Isso contribui para uma primavera e um verão com temperaturas acima da média por longos períodos.
"O El Niño é um aquecimento das águas do Oceano Pacífico. Consequentemente, ao aquecer o oceano, provoca toda uma alteração nas condições da circulação atmosférica mundial", explica Rodrigues.
"O El Niño potencializa ainda mais o calor, onde as temperaturas ficam pelo menos quatro a cinco graus acima da média. Já no sul do Brasil, é o contrário, terá muitas chuvas."
Ainda segundo os especialistas ouvidos pela reportagem, outras ondas de calor, cada vez mais fortes e com recordes de temperatura, devem ser registradas este ano.
O Inmet afirma que o ano de 2023 será o mais quente desde da década 1960.
"A tendência é que a atuação do El Niño permaneça até meados do primeiro semestre 2024", acrescenta o climatologista.
"Não está descartada a possibilidade de, novamente, termos picos de calor semelhantes ao que tivemos na semana passada.”
Os impactos negativos das altas temperaturas são diversos.
Rosângela Braz, doutora em Ecologia Aplicada e professora do Centro Universitário Adventista de São Paulo (Unasp), aponta consequências como "o aumento da demanda por energia elétrica, a redução da qualidade do ar, a propagação de doenças, a perda de produtividade agrícola, o estresse térmico e a mortalidade de pessoas e animais”.
A geógrafa Susi Uhren, especialista em Gestão Ambiental Urbana, alerta ainda para a emergência ambiental promovida pela atividade humana, como os desmatamentos.
Ela afirma que esse tipo de ação contribui para o aumento do efeito estufa e elevação das temperaturas.
"Se a emissão de gases do efeito estufa continuar a aumentar, é provável que as mudanças climáticas se intensifiquem", diz Uhren.
Isso pode tornar eventos climáticos extremos mais frequentes e acelerar elevação do nível do mar e aumento da temperatura média global, com impactos significativos nos ecossistemas.
"É de extrema importância que a população seja conscientizada de que as consequências climáticas que vivemos hoje advêm também de atividades desempenhadas pelo próprio homem”, diz Uhren.
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