Em julho, a atendente Evelyn Orozimbo, de 26 anos, publicou um vídeo com um desabafo sobre uma situação que a revoltava desde o ano passado: os compartilhamentos da imagem da filha dela nas redes.
“Xingaram a aparência dela, desejaram coisas horríveis e li comentários do tipo: se fosse meu (filho), eu matava”, diz Evelyn em trecho do vídeo.
Ela gravou o desabafo em um momento de desespero, após notar que a imagem da filha recém-nascida estava sendo propagada de maneira jocosa na internet.
“Isso me abalou muito, fiquei muito mal. Eu me senti impotente e culpada, porque não conseguia ter o controle dessas publicações com a imagem dela”, conta a atendente à BBC News Brasil.
Toda essa situação começou em setembro de 2022, quando Evelyn publicou uma montagem de vídeos com a evolução dos primeiros meses de vida da filha.
Evelyn publicou o registro em um perfil no Instagram que mantinha para compartilhar a rotina como mãe. Ela diz que o vídeo começou a viralizar semanas depois de ser publicado, bateu 7 milhões de visualizações e se tornou um problema para ela.
“Quando fui ver o motivo de o vídeo viralizar, era porque estavam falando da aparência da minha filha quando ela era recém-nascida. Não teve elogios em nenhum momento, só comentários negativos sobre ela”, conta.
“Não sei de onde veio isso ou quem começou a compartilhar e fez com que ele viralizasse de forma tão negativa”, acrescenta.
A filha dela virou meme e alvo de comentários ofensivos. A mãe passou a receber críticas por ter exposto a criança na internet.
Em pouco tempo, a imagem da menina recém-nascida foi parar em publicações de páginas de humor e vídeos de influenciadores digitais.
A garota se tornou um exemplo de “bebê feio”.
"Fiquei pensando que se não tivesse postado aquele vídeo, nada disso teria acontecido”, diz Evelyn.
Ela denunciou o caso à polícia, mas diz que nada foi feito. Agora, levará o caso à Justiça.
A propagação do meme
Desde que o vídeo viralizou, os compartilhamentos com prints da imagem da recém-nascida aumentaram cada vez mais.
Evelyn viu esses prints em posts no X (antigo Twitter). Em algumas publicações, a imagem da criança estava alterada, com nariz, olhos e boca aumentados.
A forma como a imagem da filha passou a ser usada causou indignação em Evelyn. “Acho que essas pessoas são covardes, principalmente porque estão na internet.”
“Foi horrível. Senti muita raiva e ódio. Queria xingar as pessoas que estavam fazendo isso com a imagem da minha filha”, desabafa Evelyn.
Na época, a menina estava perto de completar um ano, e Evelyn diz que o meme a fez pensar em não comemorar a data.
“Fiquei muito mal emocionalmente e quase desisti da festa que estava organizando”, diz ela, que no fim decidiu manter a celebração.
Ela acreditou que os compartilhamentos da imagem da filha e os comentários ofensivos iriam parar ao longo dos meses. “Mas as coisas só pioraram.”
Evelyn conta que chegou a pedir a algumas pessoas para removerem os posts com o rosto da filha, mas diz que foi ignorada.
Há um ano, ela registrou um boletim de ocorrência sobre o caso na Polícia Civil do Rio de Janeiro, Estado em que a família mora.
No documento, ela denuncia que a foto da filha estava sendo usada de forma pejorativa e sem o consentimento dos responsáveis pela criança.
Mas Evelyn diz que nada foi feito após essa denúncia. “Quando eu fui procurar saber o que tinha acontecido, vi que arquivaram o procedimento sem me dar nenhum retorno."
A Polícia Civil disse à BBC News Brasil em nota que o caso “foi registrado na 35ª DP (Campo Grande) e encaminhado ao Juizado Especial Criminal (Jecrim)”, sem dar mais detalhes sobre a investigação.
O Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro informou não ter localizado nenhum processo com o nome de Evelyn. Segundo o órgão, o caso pode estar em segredo de justiça, “situação em que não aparece na busca.”
‘Me criticaram por ter compartilhado a foto da minha filha’
Mesmo após a denúncia na polícia, o meme continuou se espalhando.
A situação piorou, diz Evelyn, quando começaram a usar a imagem da criança em vídeos de “pegadinhas” no TikTok e no Instagram em que uma pessoa mostra a foto a um familiar para mostrar um “bebê feio” para registrar sua reação.
“Quando me alertaram que estavam usando a foto da minha filha assim, eu não quis ver, mas a proporção foi tão grande que acabei vendo”, conta.
Foi nesse período, no fim de julho deste ano, que Evelyn desabafou em um vídeo em que contou sobre o que estava passando e pediu que parassem de usar a imagem da filha.
“Então, errada é a mãe (por ter publicado um vídeo da filha) e certos são os que estão xingando ou atacando”, comenta em parte do desabafo.
“Já não basta a culpa, ainda tenho que lidar com pessoas falando: 'ah, é meme, é engraçado'. Claro, meu amor, não é o seu filho, não é seu parente, não é nada seu”, afirma no vídeo.
O desabafo teve 9,7 milhões de visualizações e mais de 640 mil curtidas somente no TikTok.
Foi a partir disso, diz Evelyn, que as pessoas começaram a dar atenção ao que ela estava passando.
“Deu muita repercussão. Teve gente que me criticou por ter compartilhado a foto da minha filha, mas recebi muita força também.”
Por causa desse vídeo, a história dela chegou aos representantes da Associação Nacional das Vítimas de Internet (Anvint), que presta apoio a vítimas de crimes de internet.
A associação passou a dar assistência jurídica a Evelyn, que diz que vai entrar com processos na Justiça.
“Queremos responsabilizar as pessoas que postaram (o meme) de forma ofensiva”, diz a advogada Iolanda Garay, presidente da Anvint.
Garay frisa que o caso envolve a exposição indevida de uma criança.
"A Constituição diz que a imagem das pessoas é inviolável. Além disso, os direitos de imagem são também alvo da proteção do Código Civil, que veda a exposição ou utilização da imagem de alguém sem permissão, caso o uso indevido atinja a sua honra."
No caso de uma criança, ressalta a advogada, a situação é ainda pior porque se trata de um indivíduo em desenvolvimento.
"O direito ao respeito, previsto no Estatuto da Criança e do Adolescente, traz uma cúpula adicional de proteção ao menor em diversas esferas, garantindo como invioláveis a integridade física, psíquica e moral da criança e do adolescente, o que abrange a preservação da imagem.”
Ela considera que o compartilhamento da imagem da criança em tom jocoso é também um tipo de racismo.
"Se fosse uma bebê loirinha de olhos azuis, você acha que isso de 'bebê feio' estaria acontecendo? A maioria das crianças expostas nesse tipo de publicação têm traços de origem preta", diz Garay.
Segundo a advogada, o caso da exposição da imagem da garota pode ser considerado “crime contra a honra e crime de perseguição, além de intimidação sistemática (ato de violência física ou psicológica)”.
Garay acrescenta que cabem pedidos de indenização por danos morais em casos assim.
As plataformas nas quais o meme foi compartilhado também devem ser alvos de processos, diz Garay, porque muitas publicações não foram removidas, mesmo após Evelyn denunciar.
O perito em crimes digitais Wanderson Castilho, também membro da Anvint, afirma que as redes sociais ajudam, de certa forma, a propagar conteúdos que deveriam ser tirados do ar.
“Essa demora (para remover ou avaliar conteúdos denunciados) é uma das grandes revoltas das vítimas”, diz Castilho.
"Além disso, o algoritmo ajuda a propagar o sofrimento dessa vítima, porque quanto mais interação e gente compartilhando, maior será a quantidade de gente que o algoritmo vai alcançar."
Em alguns casos, afirma o perito, a plataforma concorda que uma determinada publicação infringiu as regras e a apaga.
Mas na maioria das vezes, diz Castilho, a publicação permanece mesmo após denúncias. Isso porque, segundo o perito, em muitos casos não há um padrão que aponte exatamente quais publicações serão excluídas somente por meio de uma denúncia na plataforma, sem precisar recorrer à Justiça.
“E assim (sem apagar por meio de denúncia na plataforma), casos como o da filha da Evelyn tomam proporções inimagináveis”, declara Castilho.
O perito frisa que os pais têm o direito de compartilhar fotos dos filhos nas redes. No entanto, recomenda que tenham mais controle sobre o alcance dessas imagens.
“Existem vários modos de essas fotos serem usadas de formas maléficas, como em forma de meme, falsificações ou até em sites de pedofilia”, diz.
"Então, para os pais que gostam de compartilhar, a dica é deixar os perfis privados, somente para as pessoas mais próximas e conhecidas."
O especialista ressalta que não recomenda nenhum tipo de exposição em perfis abertos.
"Mas pode ser considerado crime atacar uma pessoa que compartilhou foto da filha ou achar que pode propagar ofensa em cima dessa mãe ou dessa criança”, acrescenta.
A BBC News Brasil procurou o Twitter para comentar sobre o caso, mas não houve resposta até a publicação desta reportagem.
A Meta, responsável pelo Facebook e o Instagram, informa, em nota, que sempre revisa conteúdos por meio de uma combinação de tecnologia de inteligência artificial e equipes humanas.
Isso, segundo a empresa, ajuda a “detectar, analisar e remover conteúdos" que violam suas políticas.
“Também incentivamos as pessoas a denunciarem conteúdos e contas através das ferramentas disponíveis dentro dos próprios aplicativos”, acrescenta a Meta.
Em relação ao WhatsApp, que também é da Meta, a companhia diz que não tem acesso aos conteúdos das mensagens trocadas entre usuários e não faz essa moderação.
Apesar disso, a Meta informa que o aplicativo de mensagens “não permite o uso do seu serviço para fins ilícitos ou difamatórios, ou de direitos de privacidade.”
"Nos casos de violação destes termos, o WhatsApp toma medidas em relação às contas como desativá-las ou suspendê-las”, informa a companhia.
Já o TikTok diz em nota que trabalha constantemente para garantir que a plataforma seja um ambiente em que todos se sintam acolhidos.
“Nossas diretrizes deixam claro o que pode e o que não pode ser publicado, incluindo o tema de assédio e bullying”, diz a empresa.
“Quando um conteúdo é identificado como uma potencial violação, ele pode ser removido por meio da tecnologia ou marcado para análise adicional por nossa equipe de moderação.”
‘Me sinto um pouco mais forte’
Após o vídeo de desabafo, os compartilhamentos de imagens da filha de Evelyn diminuíram, e muitos conteúdos com o rosto da criança foram apagados pelos usuários que fizeram essas publicações.
Mas ela diz que só ficará em paz quando tiver a certeza de que não há mais nenhuma imagem da filha compartilhada de forma jocosa nas redes.
“Com o apoio que recebi, me sinto um pouco mais forte sobre isso e tenho um pouco mais de esperança", diz Evelyn.
"Acho que agora as coisas podem melhorar e as pessoas podem parar de compartilhar a foto da minha filha.”
Ela conta que ainda sofre com os danos psicológicos causados pela forma como a filha se tornou meme nas redes.
“Não tenho mais nem forças para me justificar que não estou errada por ter postado a minha filha”, diz.
"Era um vídeo comum. Os errados são os monstros que começaram a atacar a aparência da minha filha, sem pensar que existe uma família, uma mãe e uma criança por trás disso."
Hoje, ela diz que evita ao máximo compartilhar publicações com a filha para não enfrentar mais nenhum tipo de problema.
“Mas agora entendo também que não fui a errada disso. As pessoas não podem usar a imagem de uma criança assim e achar que a internet é terra sem lei”, declara.
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