Argentina

Argentina: Encontro tenso entre Milei e Fernández inicia a transição

Presidente Alberto Fernández e o sucessor Javier Milei mantêm a primeira reunião para debaterem temas nacionais e de política externa. Líder eleito promete pragmatismo durante a mudança de governo. Especialistas avaliam desafios

O peronista Fernández (E) e o ultralibertário Milei, depois do café da manhã na residência oficial de Olivos, a 17km de Buenos Aires: sem sorrisos  -  (crédito: Maria Eugenia Cerutti/Presidência da Argentina/AFP)
O peronista Fernández (E) e o ultralibertário Milei, depois do café da manhã na residência oficial de Olivos, a 17km de Buenos Aires: sem sorrisos - (crédito: Maria Eugenia Cerutti/Presidência da Argentina/AFP)
postado em 22/11/2023 06:00

Um café da manhã e uma conversa de duas horas e meia marcaram a primeira reunião entre o presidente eleito da Argentina, o ultralibertário Javier Milei, e o atual chefe de Estado, Alberto Fernández. Em nota protocolar, a Casa Rosada — sede do Executivo — informou que o encontro ocorreu na residência presidencial de Olivos, a 17km de Buenos Aires, "com o objetivo de dar início ao processo de transição institucional entre as equipes designadas por ambos nas distintas áreas de governo". Segundo o jornal La Nación, Fernández e Milei acordaram que a transferência de poder será feita de forma gradual em cada setor. Fontes afirmaram ao mesmo diário que a reunião foi "amável, respeitosa e institucional". No entanto, a foto oficial mostra os dois líderes com semblante cerrado e tenso. Nesta quarta-feira (22), será a vez de a atual vice-presidente, Cristina Fernández de Kirchner, receber no Senado Victoria Villaruel, a vice de Milei.

Horas depois, em entrevista ao jornalista Manuel Adorni para o próprio canal no YouTube, Milei revelou que teve com Fernández uma "conversa muito cordial e produtiva". "Abordamos nossas diferenças de forma educada", assegurou. "Passamos muito tempo conversando, para mim foi valioso, conversamos sobre a transição, a política interna, a política internacional. E também a questão social. Foi uma conversa produtiva", acrescentou. Ele deixou claro que a transição será pontuada pelo pragmatismo. "Nesse sentido, considero muito valioso tomar a experiência de quem tem estado no cargo." Depois da reunião com Milei, Fernández também adotou um tom cordato. 

Em declarações à tevê colombiana NTN24, o líder peronista lembrou que a reunião institucional "reclamava seriedade", confirmou que ambos discutiram temas nacionais e internacionais e ensaiou um distanciamento do governo do ultralibertário. "Tomara que o novo presidente faça as coisas bem. Não compartilho de muitas de suas visões. Mas, se as coisas correrem bem, a Argentina estará bem. Não quero ser um obstáculo", sublinhou. 

Doutora em ciência política e professora na Universidad Nacional del Litoral e na Universidad de Buenos Aires (UBA), a argentina Fanny Maidana afirmou ao Correio que a tensão em torno da reunião entre Milei e Fernández focou-se em questões de agenda. "Milei não queria fazê-la em Olivos. Por uma questão de protocolo, foram usadas somente palavras corretas para esse tipo de encontro, que teve a presença do possível ministro do Interior do próximo governo (Guillermo Francos) e do secretário-geral da Presidência (Nicolás Posse). No entanto, as partes não divulgaram como a transição será feita. Isso não ficou resolvido. Foi mais uma reunião de protocolo, para começar a trabalhar", observou. Ela reconhece, no entanto, que a imagem divulgada do encontro sugere "alguma tensão" na situação. 

Por sua vez, Gastón Mutti, cientista político da Universidad Nacional de Rosario e da Universidad Nacional de Entre Ríos, destacou que as fotos divulgadas pela Presidência da Argentina mostram apenas Milei e Fernández, e nenhum assessor. "Isso faz pensar em uma transição que será comandada pelos dois, e não por outras personalidades muito importantes, principalmente dentro do governo atual — por setores da vice-presidente Cristina Kirchner ou do ministro da Economia, Sergio Massa", explicou à reportagem. "Eu tenderia a imaginar que será uma transição muito mais formal do que substancial. Com o anúncio de negociação sobre um novo acordo de preços com os supermercados, o governo seguirá com sua política econômica até 10 de dezembro (data da posse)."

Para Miguel De Luca, também professor de ciência política da UBA, o tema da passagem do bastão de comando de Milei para Fernández tem, como tema central, a desvalorização do peso argentino. "Existe uma crença de que essa desvalorização é iminente. Obviamente, Milei não quer levar isso adiante, a fim de não pagar um custo no início de seu governo. Ele espera que o próprio Fernández o faça. Esse é o principal problema", disse à reportagem. "Todos os outros entraves da transição, como a inflação, outras questões econômicas, como pagamentos de dívida, etc, são menores, quando comparados à desvalorização da moeda." Ainda segundo ele, existe uma tensão entre o atual presidente e o sucessor. "Mas o problema está no fato de que Fernández não lidera o governo, não é o 'chefe'. Esse papel cabia a Massa até a eleição. Antes, era tarefa de Cristina", ressaltou. 

EU ACHO...

Fanny Maidana, professor de ciência política na Universidad Nacional del Litoral e na Universidad de Buenos Aires (UBA)
Fanny Maidana, professor de ciência política na Universidad Nacional del Litoral e na Universidad de Buenos Aires (UBA) (foto: Fotos: Aquivo pessoal )

"Um dos principais desafios de Javier Milei será a construção da governabilidade. Apesar de ele ter vencido as eleições com uma ampla diferença,cabe ressaltar que a Argentina é um país bicameral, com uma Câmara dos Deputados e uma Câmara de Senadores. Milei tem apenas oito dos 72 senadores e 40 dos 257 deputados. Se ele não construir diálogo, alianças e estratégias compartilhadas com outras forças, será incapaz de avançar na aprovação de leis."

Fanny Maidana, professora de ciência política na Universidad Nacional del Litoral e na Universidad de Buenos Aires (UBA)

Miguel De Luca, professor de ciência política da Universidad de Buenos Aires (UBA)
Miguel De Luca, professor de ciência política da Universidad de Buenos Aires (UBA) (foto: Arquivo pessoal )

"O Libertad Avanza, partido de Milei, tem muito poucas bancadas no Congresso. Ele está claramente abaixo de um terço em ambas as câmaras do Legislativo. Esse é um problema muito grave. Nem mesmo com o apoio dos blocos do ex-presidente Mauricio Macri e da ex-ministra Patricia Bullrich essa situação se resolve. Somente lhe restam duas estratégias possíveis: um acordo com os demais partidos, mas ele teria que deixar de lado suas medidas mais extremas; ou governar por meio de decretos de necessidade e urgência. Algo equivalente às medidas provisórias que o presidente brasileiro tem à disposição."

Miguel De Luca, professor de ciência política da Universidad de Buenos Aires (UBA)


Ao telefone com o papa Francisco

O presidente eleito da Argentina, Javier Milei, falou por telefone com o papa Francisco, informou o escritório do político, após meses de relações tensas entre os dois devido às declarações ofensivas do então candidato contra o pontífice, sobre as quais ele se desculpou durante a campanha. "Sua Santidade, o Papa Francisco, se comunicou com nosso futuro mandatário para parabenizá-lo e expressar-lhe seus desejos de união e progresso para nossa pátria", detalhou um comunicado oficial do escritório de Milei. O presidente eleito "agradeceu as palavras do sumo pontífice, que se comprometeu a enviar-lhe um terço bento como presente de posse", diz a nota. Existe a previsão de que Francisco visite a Argentina, sua terra natal, no primeiro semestre do próximo ano.

 

  • Fanny Maidana, professor de ciência política na Universidad Nacional del Litoral e na Universidad de Buenos Aires (UBA)
    Fanny Maidana, professor de ciência política na Universidad Nacional del Litoral e na Universidad de Buenos Aires (UBA) Foto: Fotos: Aquivo pessoal
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