Eleições

As propostas de Milei para transformar a Argentina são realmente viáveis?

O candidato libertário alcançou uma vitória retumbante no segundo turno presidencial de domingo, com promessas de mudanças radicais no país. Mas haverá grandes desafios para alcançá-los.

Javier Milei prometeu dolarizar a economia argentina -  (crédito: Getty Images)
Javier Milei prometeu dolarizar a economia argentina - (crédito: Getty Images)
BBC
Gerardo Lissardy - BBC News Mundo
postado em 20/11/2023 05:49 / atualizado em 20/11/2023 07:59

Javier Milei conseguiu o que muitos consideravam improvável e foi eleito presidente da Argentina no domingo (19/11). Agora vem o seu maior desafio: governar sem maioria um país em crise que ele prometeu refundar.

Economista libertário que irrompeu na política argentina há apenas dois anos com um discurso antissistema, Milei triunfou no segundo turno presidencial com 55,7% dos votos, ante 44,2% do candidato peronista no poder, Sergio Massa, com 99% da contagem concluída.

"Hoje começa a reconstrução da Argentina", disse Milei em seu discurso de vitória no domingo à noite.

A Argentina atravessa um dos seus piores momentos econômicos e sociais desde que recuperou a democracia há 40 anos, um fator-chave que explica por que a mensagem de Milei contra a "casta política" atraiu tantos eleitores frustrados.

O presidente argentino eleito propôs mudanças radicais que vão desde a dolarização da economia e o fechamento do Banco Central, até a redução do papel do Estado na sociedade.

Mas vários especialistas preveem que a plataforma eleitoral de Milei entrará em conflito com o sistema de pesos e contrapesos da democracia argentina, uma vez que o próximo presidente não terá maioria no Congresso e terá de negociar mesmo com rivais que insultou na campanha.

"Milei tem uma fragilidade estrutural para conseguir avançar sua agenda no Poder Legislativo. E em um país federativo como a Argentina, onde os governadores têm um peso extraordinário, ele não tem um único governador de seu partido", diz o cientista político argentino Sergio Berensztein.

"Estamos diante de um presidente que terá uma enorme fraqueza", disse Berensztein à BBC News Mundo, serviço da BBC em espanhol.

'O grande desafio'

Milei, que tem 53 anos e se define como um "anarcocapitalista", disse que seu objetivo é endireitar o rumo da Argentina para que ela se torne novamente uma potência próspera.

"Hoje voltamos ao caminho que tornou este país grande e abraçamos mais uma vez as ideias de liberdade", disse ele no seu primeiro discurso após ser eleito presidente.

O país vem sofrendo com a falta de consenso político. O confronto entre o partido no poder e a oposição tornou-se uma norma que, por sua vez, aumenta a instabilidade e a deterioração da economia.

A Argentina tem hoje mais de 18 milhões de pessoas ou 40% de sua população vivendo na pobreza, além de uma inflação anual de 143% nos últimos 12 meses até outubro, segundo dados oficiais.

Neste contexto, os argentinos decidiram confiar o governo a um candidato cujo discurso antissistema suscita comparações com o ex-presidente brasileiro Jair Bolsonaro ou com o americano Donald Trump, a quem diz admirar.

No entanto, a falta de experiência de Milei na política e em tarefas executivas no setor público ou privado representa "um enigma quanto à sua capacidade de tomar decisões", alerta Berensztein.

O presidente eleito deverá promover as reformas que propôs, como a eliminação de 10 dos 18 ministérios que o governo possui ou a redução drástica dos gastos públicos, num Congresso onde nenhuma força política terá maioria e o peronismo será a maior das minorias.

A Liberdade Avança, coligação de Milei fundada há apenas dois anos, terá apenas 38 deputados numa câmara de 257 membros e oito senadores num total de 72.

Para o segundo turno de domingo, Milei conseguiu o apoio de rivais como o ex-presidente Mauricio Macri e a ex-candidata presidencial Patricia Bullrich.

Mas isto dividiu a coligação de centro-direita, Juntos pela Mudança, que no máximo garantiria ao presidente eleito o apoio de cerca de um terço dos deputados e senadores.

Milei sugeriu durante a campanha que, caso tivesse dificuldade em conseguir que o Congresso aprovasse reformas que considerasse fundamentais, poderia submetê-las a plebiscito.

Mas a Constituição argentina prevê que as consultas populares vinculativas também devem passar pelo Congresso para serem convocadas.

Milei levantou ainda a possibilidade de convocar um plebiscito para revogar a lei que permitiu o aborto em 2020, embora especialistas discordem se isso seria constitucional, já que a norma é de âmbito penal.

Também surgiram questões sobre a ideia de Milei de descentralizar o sistema educacional, dando vouchers aos pais para que possam escolher para que escola enviar os seus filhos, porque a educação depende por lei dos governos provinciais.

Mesmo os decretos de necessidade e urgência aos quais Milei poderia recorrer como presidente para promover algumas medidas teriam que ser ratificados no Congresso.

"Milei não terá maioria em nenhuma das câmaras e esta é uma condição muito específica que ele enfrentará", concorda o analista político argentino Rosendo Fraga.

"O sistema político é o grande desafio de Milei", completa.

E a dolarização?

Mesmo que supere os grandes desafios políticos que enfrenta, Milei teria obstáculos práticos para levar a cabo duas de suas propostas mais emblemáticas: a dolarização da economia e o fechamento do Banco Central.

O descontrole da inflação argentina levou Milei a sustentar que o país é "incapaz de ter moeda" própria e que a emissão de notas pelo Banco Central representa um "roubo" à população.

Mas o presidente eleito ofereceu poucos detalhes sobre como planeja implementar esta mudança.

Uma questão fundamental sobre o plano monetário de Milei é como irá dolarizar a economia de um país onde os dólares são escassos.

"Para realizar uma dolarização ordenada, é necessário ter uma quantidade suficiente de dólares para substituir os pesos existentes e dolarizar o sistema financeiro", diz Claudio Loser, ex-diretor do Fundo Monetário Internacional (FMI) para a América Latina.

O próprio Milei estimou durante a campanha que a dolarização custaria cerca de US$ 35 bilhões (R$ 170 bilhões), que na sua opinião poderiam ser cobertos com as reservas e títulos detidos pelo Banco Central.

Mas Loser, tal como outros economistas, adverte que qualquer plano de dolarização exigirá primeiro a correção da política fiscal e monetária do país, a redução da inflação, a estabilização do sistema financeiro e a garantia de linhas de crédito para ganhar confiança.

Tudo isso pode levar pelo menos vários meses.

"Se você quiser fazer isso imediatamente, minha expectativa é que isso gere um choque significativo para a economia", diz Loser, que preside o Centennial Group Latin America, uma empresa de consultoria financeira com sede em Washington, nos EUA.

Ao mesmo tempo, mesmo que Milei conseguisse a prometida dolarização, os especialistas duvidam que possa fechar completamente o Banco Central, já que além de uma função monetária esta instituição controla os bancos que operam no mercado argentino.

"Se o que [Milei] diz sobre fechar o Banco Central é para que o governo deixe de ser financiado, é viável. Eliminá-lo não existe na prática nos países dolarizados (...) porque há necessidade de manter a disciplina financeira e isso sem um Banco Central ou equivalente seria muito complicado", diz Loser.

No entanto, na opinião deste especialista, o desafio mais sério que Milei poderá enfrentar será o conflito crescente à medida que promover medidas para reduzir subsídios e diminuir os gastos públicos.

Na Argentina, a luta pelas agendas dos governos não peronistas costuma ir para as ruas, com protestos sindicais e estudantis que podem se tornar massivos.

"Pode ser do interesse do peronismo ou da eventual oposição a Milei que ele realize a consolidação fiscal e pague o custo político de fazê-lo", argumenta Berensztein.

"Portanto, é provável que em algumas coisas ele alcance consenso", acrescenta.

"Não porque o sistema político seja generoso, mas pelo contrário: é bastante egoísta e Milei se tornaria um presidente muito impopular."

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