Conflito

Guerra na Ucrânia: os russos que delatam colegas e desconhecidos

Na Rússia Soviética, era comum delatar pessoas às autoridades; com guerra na Ucrânia, prática voltou.

Tatiana Chervenko, Aleksandra Arkhipova e Yaroslav Levchenko foram delatados por outros russos e sofreram punições diferentes -  (crédito: BBC)
Tatiana Chervenko, Aleksandra Arkhipova e Yaroslav Levchenko foram delatados por outros russos e sofreram punições diferentes - (crédito: BBC)
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Amalia Zatari - BBC Rússia
postado em 19/11/2023 09:28 / atualizado em 19/11/2023 14:02

Denunciar, ou reportar vizinhos, colegas e até mesmo desconhecidos às autoridades era algo comum na era soviética da Rússia. Agora, à medida que o governo reprime os críticos da guerra na Ucrânia, isso voltou a acontecer.

"Aprendi a delatar com meu avô, que também era delator", afirma uma mulher chamada Anna Korobkova. Ela diz que mora em uma grande cidade russa, mas se recusa a dizer qual.

Ela conta que o avô dela era um informante anônimo da polícia secreta soviética durante o governo de Stalin (1924-1953), quando as denúncias faziam parte da vida cotidiana.

E Korobkova segue os passos dele. Agora, está denunciando qualquer pessoa que considere crítica à guerra na Ucrânia.

Delatora em série

Korobkova afirma ter feito 1.397 denúncias desde a invasão em grande escala na Ucrânia pela Rússia. Ela diz que pessoas foram multadas, demitidas e rotuladas como agentes estrangeiros por causa de suas denúncias.

"Não sinto pena deles", diz. "Fico feliz se forem punidos por causa das minhas denúncias".

Novas leis de censura foram introduzidas logo após a invasão russa na Ucrânia em fevereiro de 2022.

Desde então, Korobkova tem passado a maior parte de seu tempo livre online, frequentemente denunciando pessoas por "desacreditarem o Exército russo" — um crime que acarreta uma multa de até 50 mil rublos russos (R$ 2,6 mil) ou até cinco anos de prisão, se for cometido mais de duas vezes.

Korobkova é muito cautelosa ao falar comigo e só se comunica por e-mail. Ela não quer mostrar o rosto e se recusa a fornecer provas de sua identidade. Justifica-se dizendo que frequentemente recebe ameaças de morte e teme que suas informações possam ser hackeadas ou roubadas.

A mulher parece ter dois motivos para denunciar seus conterrâneos.

Em primeiro lugar, ela me diz que acredita estar ajudando a Rússia a derrotar a Ucrânia e, em segundo, pensa que isso ajudará a proteger a sua própria estabilidade financeira.

Ela mora sozinha e trabalha meio período como professora de humanidades, dependendo muito de suas economias.

Mas Korobkova teme que a Rússia acabe pagando reparações se o conflito seguir o caminho da Ucrânia e que isso possa afetar as finanças de todo o país e de todos que vivem nele.

"Todos aqueles que se opõem à operação militar especial são rivais do meu próprio bem-estar", explica ela, prevendo que uma vitória da Ucrânia seria uma perda para ela. "Eu poderia perder todas as minhas economias e teria que conseguir um emprego em tempo integral."

Desde que as novas leis de censura foram introduzidas, mais de 8 mil processos foram abertos contra pessoas por desacreditarem o Exército, segundo o grupo russo independente de direitos humanos, OVD-Info.

Alvos

Korobkova denuncia principalmente pessoas que falam com a imprensa, especialmente aquelas que aparecem em meios de comunicação internacionais, como a BBC. Um dos alvos de Korobkova é a antropóloga Aleksandra Arkhipova.

"Ela me denunciou sete vezes", diz Arkhipova. "Escrever denúncias é a forma dela de interagir com as autoridades. Ela considera isso sua missão".

"Ela encontrou o seu nicho. As denúncias dela silenciam os especialistas de forma bastante eficaz", acrescenta Arkhipova, que está agora no exílio e pensa que as ações de Korobkova poderiam ter contribuído para que ela fosse rotulada como agente estrangeira pelo Estado russo em maio.

"Amigos meus que ela denunciou agora se recusam a fazer comentários a qualquer veículo de imprensa. Então, pode-se dizer que ela teve sucesso. Missão cumprida."

Outro alvo foi uma professora em Moscou chamada Tatiana Chervenko.

Quando a Rússia introduziu aulas de patriotismo em setembro de 2022, Chervenko decidiu ensinar matemática, disse ela à TV Rain, o último canal independente da Rússia, que foi fechado pelo governo e agora tem sede na Holanda.

Como resultado, Korobkova, que viu a entrevista na televisão, começou a fazer denúncias contra Chervenko. Ela fez a denúncia ao superior dela, ao departamento de educação de Moscou e ao comissário russo dos direitos da criança.

Chervenko foi posteriormente demitida em dezembro de 2022.

Korobkova não demonstra remorso pelas ações dela. Em vez disso, mantém orgulhosamente uma base de dados de pessoas que denunciou, incluindo as consequências.

Ela afirma que, após suas denúncias, seis pessoas foram demitidas de seus empregos e 15 foram alvo de processos administrativos e multas.

'Acerto de contas'

Embora Korobkova insista que tem como alvo aqueles que acredita serem inimigos do Estado, outras pessoas disseram à BBC que as denúncias também estão sendo usadas na Rússia para "acerto de contas".

O pescador Yaroslav Levchenko é natural da Península de Kamchatka, no extremo leste da Rússia, conhecida não apenas pelas suas paisagens vulcânicas e vida selvagem extraordinária, mas também por sua grande presença militar. Muitas pessoas nesta região são apoiadores do presidente russo Vladimir Putin, incluindo os colegas de Levchenko.

Em fevereiro de 2023, o navio de Levchenko atracou no porto de Kamchatka após uma viagem de pesca de um mês. Ele conta que um colega pescador o ofereceu uma bebida alcoólica, que ele recusou. Ele acredita que o homem já possuía um ressentimento contra ele e ambos acabaram discutindo.

Levchenko explica que foi atingido por uma garrafada na cabeça e, mais tarde, acordou no hospital.

Levchenko diz que quando recebeu alta e foi a uma delegacia de polícia para fazer uma denúncia, ficou horrorizado ao saber que foi ele quem foi denunciado — não por agressão, mas por ter opiniões anti-guerra. Ele afirma que a polícia lhe disse que não havia provas suficientes para apresentar acusações criminais contra o colega dele.

Levchenko foi preso no dia 13 de julho. Segundo documentos judiciais aos quais a BBC teve acesso, ele é acusado de justificar o terrorismo, acusações que nega, e está detido enquanto aguarda julgamento.

A única forma de contar sua história à BBC é por meio de cartas, entregues pelo advogado dele.

"Os investigadores estatais afirmam que usei força física contra outros marinheiros… expressando intenções de participar das hostilidades contra a Federação Russa", escreve Levchenko.

Os amigos de Levchenko consideram que a denúncia contra ele foi feita para desviar a atenção da polícia do ataque contra ele e do fato de o álcool estar sendo consumido a bordo de um navio, o que era proibido.

"Eu só quero voltar para casa", diz Levchenko. "O céu é visível da minha cela, através de várias fileiras de grades, e é insuportável", escreve ele em uma carta ao amigo que foi compartilhada com a BBC.

'Cobranças sem fim'

A polícia russa reconheceu que tem sido inundada com denúncias desde o início da guerra.

Autoridades disseram à BBC anonimamente que estão gastando muito tempo investigando e revisando "intermináveis acusações sobre a discretização do Exército".

"As pessoas estão sempre procurando uma desculpa para denunciar alguém pela 'operação militar especial'", disse um policial recém-aposentado à BBC, acrescentando: "Sempre que algo real surge, não há ninguém para investigar. Mas todo mundo foi checar uma denúncia de alguma avó que viu uma cortina que parecia a bandeira ucraniana."

Com os repetidos apelos do presidente Putin para "punir os traidores" e o fim da guerra na Ucrânia ainda não à vista, delatores em série como Korobkova não mostram nenhum sinal de quererem parar de reportar seus conterrâneos.

"Vou continuar escrevendo denúncias", escreve ela num e-mail à BBC, acrescentando: "Tenho muito trabalho a fazer".

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