Quatro pessoas que vivem em Gaza registraram a vida delas a pedido do serviço mundial da BBC, descrevendo longos dias à procura de comida e água e passando longas noites abrigadas de ataques aéreos — rezando para permanecerem vivas até a próxima manhã.
Segundo o ministério da saúde administrado pelo Hamas, as forças israelenses bombardeiam a Faixa de Gaza desde 7 de outubro, matando desde então mais de 11 mil palestinos. A ofensiva no território palestino é uma retaliação ao ataque do Hamas a Israel, que matou mais de 1.200 pessoas e fez mais de 200 reféns.
Redes telefônicas instáveis e cortes de comunicação dificultaram o contato, mas nossas fontes — Adam, Abdelhakim, Farida e Khalid — enviaram mensagens e vídeos quando puderam.
Aviso: este texto contém descrições gráficas de cenas que podem ser perturbadoras para algumas pessoas.
Sexta-feira, 13 de outubro
Aviões israelenses lançam panfletos dizendo aos moradores do norte de Gaza para abandonarem suas casas e irem para o sul antes de uma invasão terrestre iminente, para sua própria “segurança e proteção”.
Farida: Farida é uma professora de inglês de 26 anos que mora na Cidade de Gaza.
“Três casas dos meus vizinhos estão agora destruídas. Estamos todos tendo de fugir, mas não temos para onde ir”, diz ela na sua primeira mensagem. "Estamos apenas esperando. Vários dos meus amigos estão desaparecidos, possivelmente mortos. Não sei sobre meus pais."
Ela segue para o sul a pé com seus irmãos e seis filhos pequenos. Eles caminham por quase uma semana, dormindo nas ruas. O objetivo é ir além de Wadi Gaza, para a área onde Israel diz ser segura.
Adam: No mesmo dia, na cidade de Khan Younis, no sul, Adam, um jovem trabalhador, está se preparando para abandonar tudo e fugir pela quinta vez em cinco dias.
“Mais de um milhão de pessoas do norte de Gaza foram convidadas a seguir para o sul, especificamente para Khan Younis”, diz ele. "Mas Khan Younis está sendo alvo de ataques aéreos. Houve um muito perto da minha casa."
Os estoques de alimentos, medicamentos e gasolina diminuíram depois de Israel ter imposto um cerco completo à Faixa de Gaza. Adam não consegue ter acesso aos cuidados que necessita para o pai idoso, que tem doença de Parkinson. Eles também não conseguem encontrar uma cama para ele no hospital. Na noite anterior, eles dormiram no chão do pátio do hospital.
Khalid: Fornecedor de equipamento médico que vive em Jabalia, no norte de Gaza, Khalid recusa-se a fugir com a sua família, apesar dos folhetos aconselharem isso.
"Para onde iríamos? Nenhum lugar é seguro, sem exceções. Estaremos mortos de qualquer maneira", diz ele em uma mensagem de vídeo, com o som de bombas explodindo ao fundo. Khalid está cuidando dos dois filhos pequenos do primo dele. As crianças sobreviveram a um ataque a um mercado do bairro.
“Há uma grave escassez de suprimentos médicos devido ao grande número de feridos”, relata. “Alguns medicamentos precisam ser mantidos em baixas temperaturas mas, devido a quedas de energia, eles estragaram. Precisamos desses itens com urgência”.
Khalid diz que não tem conseguido entregar suprimentos médicos desde o início da guerra.
Segunda-feira, 16 de outubro
Um comboio de veículos que transportavam civis em direção ao sul na estrada Salah al-Din, uma das duas rotas de evacuação, é atingido. Setenta pessoas, a maioria mulheres e crianças, são mortas, segundo o ministério da saúde palestino. As Forças de Defesa de Israel (IDF, por sua sigla em inglês) negam qualquer envolvimento. Até a data, 2.785 palestinos tinham sido mortos.
À medida que ocorrem ataques no sul, mais palestinos decidem permanecer nas suas casas no norte. Outros que procuram abrigo no sul decidem voltar.
Farida: Depois de dormir na rua por dias, Farida fica arrasada.
“Estou sem palavras para descrever como estou me sentindo ou o que está acontecendo”, diz ela. “Há muitos bombardeios ao nosso redor e todas as crianças estão chorando. Não sabemos para onde ir."
"Todas as noites em Gaza você não sabe se vai acordar ou não. Estou apenas sentada com minha família, usando meu hijab. Preciso me preparar para qualquer ataque aéreo que possamos enfrentar."
Terça-feira, 17 de outubro
Uma explosão no hospital Al-Ahli, na cidade de Gaza, mata 471 pessoas. Mulheres e crianças que estavam abrigadas no pátio do hospital estão entre os mortos. Israel diz que não teve envolvimento e que a explosão foi causada por um foguete da Jihad Islâmica Palestina que falhou.
Abdelhakim: Poucos meses antes do início da guerra, Abdelhakim formou-se como engenheiro de software. Ele mora no campo de refugiados de Al Bureij, no centro de Gaza. Ele diz que vários de seus amigos estavam no local da explosão no hospital. Um ficou ferido, enquanto outro perdeu toda a família.
“Tenho 23 anos e estou vivo por enquanto”, diz ele em um vídeo filmado à luz de tochas. "Não sei se minha história será contada enquanto eu estiver vivo. Posso ser morto pelos aviões."
"Não temos água, nem remédios, nem eletricidade, nem itens básicos. Não como há três dias, exceto uma pequena fatia de pão dividida entre mim e meus irmãos. Minha família e eu não dormimos mais de 10 horas em 12 dias. Estamos muito cansados. Não podemos descansar porque estamos muito preocupados."
Abdelhakim e outros voluntários estão distribuindo doações em sua casa.
“Estamos preparando pacotes de ajuda e cobertores. Até as crianças estão ajudando. Decidimos tomar a iniciativa em vez de esperar pelos caminhões de ajuda vindos do Egito”, explica.
Sexta-feira, 20 de outubro
A casa de Abdelhakim foi destruída em um ataque aéreo israelense e ele envia um vídeo do prédio desabado. Há gritos frenéticos ao fundo enquanto a família luta para fugir.
Abdelhakim: "Estávamos sentados e, de repente, fomos atingidos por foguetes. Mal saímos de casa. Nossos vizinhos ainda estão sob os escombros", diz ele.
“Fomos procurá-los, mas não encontramos ninguém. Vivemos cada minuto e cada hora cercados pela morte”.
"Minha família e eu estamos vivos por algum milagre. Estamos tendo que consertar parte da nossa casa para podermos ficar aqui e esperar a morte."
Quarta-feira, 25 de outubro
O bairro onde mora Abdelhakim é atingido por outro ataque aéreo. Até a data, 6.972 palestinos foram mortos.
Abdelhakim: Desta vez, ele só consegue enviar uma mensagem de voz chorosa e algumas mensagens de texto dizendo: "Não pude fazer nada para ajudar, fiquei paralisado ao ver partes de corpos por toda parte. Ninguém aqui está seguro, somos todos mártires em formação."
Caminhões com ajuda humanitária foram autorizados a entrar em Gaza através da passagem de Rafah, na fronteira com o Egito, mas os suprimentos que eles levam estão longe de ser suficientes para a população desabrigada de Gaza - a ONU estima que mais de 1,4 milhão de pessoas tiveram que deixar suas casas.
Adam: A luta para encontrar comida para a família pesa constantemente em sua mente: “Tenho que acordar muito cedo para conseguir comida sem ficar em uma longa fila. A situação está piorando”.
"Quando você dorme no pátio de uma escola, algo dentro de você se quebra. E quando você dorme no pátio de um hospital, alguma outra coisa dentro de você se quebra. Quando você fica na fila por pão e implora por água, muitas coisas dentro de você quebram."
Khalid: "Eles continuam nos bombardeando e não sabemos como podemos sair para comprar pão. Não há geladeira para guardar comida. Estamos comendo comida estragada, tomates podres. Há insetos saindo na couve-flor. Não temos escolha a não ser comê-los, porque não há mais nada. Temos que tirar o mofo e comer o que temos”.
Farida: A família decide voltar para sua casa no norte.
“Não temos onde ficar no sul e não tínhamos como suprir necessidades básicas. As bombas eram muito pesadas onde estávamos. Decidimos voltar para casa para pelo menos manter a nossa dignidade”, diz ela.
“Ficamos muito felizes por ter um lugar para sentar e estar em contato com amigos e familiares, mesmo que seja apenas quatro ou cinco minutos por dia.”
Pouco depois de retornar, a rua deles é bombardeada e parte da casa é danificada.
Sexta-feira, 27 de outubro
Os serviços de internet e telefone estão completamente cortados em Gaza, causando um bloqueio total das comunicações durante 48 horas, à medida que Israel intensifica a sua operação terrestre. Não conseguimos nos comunicar com Adam, Abdelhakim, Farida e Khalid. Quando as redes de comunicação voltam, eles descrevem dias de escuridão.
Abdelhakim: “Houve bombardeios intensos ontem à noite. Não há como se comunicar e as ambulâncias não podem vir buscar as pessoas, então quem é bombardeado morre no local”.
Adam: "Estou bem, graças a Deus. Mas enquanto as comunicações caíram, meu pai morreu. Que ele descanse em paz. Eu estava completamente impotente naquele momento para ligar até mesmo para as pessoas mais próximas de mim, para que pudessem estar ao meu lado, ou até mesmo contar a eles o que aconteceu."
Farida: “Perdi meu amigo e minha casa foi destruída”, diz ela, entre lágrimas. "Meu irmão ficou ferido. A dor devasta meu coração. Não estamos bem, estamos totalmente destruídos."
Khalid: "O dia parecia normal mas, quando a internet voltou, começamos a receber as notícias. Casas e quarteirões inteiros foram destruídos. Famílias inteiras mortas. A situação é trágica. Eles nos isolaram do mundo e então os massacres começaram."
Segunda-feira, 30 de outubro
Tanques israelenses se aproximam da Cidade de Gaza e são vistos na estrada Salah al-Din.
Khalid: "Não vou embora. Agora estamos pensando: "'Oh, Deus, quando cairá a próxima bomba para que possamos morrer e descansar?'"
Perdemos contato com Khalid após um ataque aéreo israelense a Jabalia, onde ele vive, no dia 31 de outubro. Pelo menos 101 pessoas morreram e 382 ficaram feridas, segundo uma autoridade de saúde palestina. Israel diz que tinha como alvo um comandante sênior do Hamas, e não civis. O país acusa o grupo, que é designado como terrorista pelos EUA, Reino Unido, União Europeia, entre outros, de esconder os seus membros em áreas civis.
Farida: "Tenho sonhos. Tenho uma ótima família e amigos. Tive uma vida ótima. Fico pensando: 'Quando morrermos, ninguém saberá o que está acontecendo.' Por favor, escreva tudo o que eu disser. Quero contar minha história ao mundo porque não sou um número."
Adam: "Quero que você conte toda esta história, para que fique documentada, para que o mundo sinta vergonha para sempre por permitir que isso aconteça conosco."
Especialistas da ONU alertaram que o tempo está se esgotando para evitar um “genocídio” em Gaza.
Nas primeiras quatro semanas de guerra, segundo o ministério da saúde administrado pelo Hamas, mais de 10 mil palestinos, a grande maioria civis, foram mortos. Mais de 4.000 deles eram crianças.
Atualização: sábado, 11 de novembro
Após 10 dias de silêncio, Khalid volta a entrar em contato. A Organização Mundial da Saúde (OMS) afirma que 36 instalações de saúde, incluindo 22 hospitais, foram danificadas desde o início da guerra, em 7 de outubro, e apenas algumas ainda estão funcionando.
Khalid: “Percorri um longo caminho para conseguir um sinal para avisar que ainda estou vivo, pois estou em uma área sem internet, água ou eletricidade."
“Aventuramo-nos a entregar mantimentos ao hospital infantil de Rantisi [no norte da Cidade de Gaza], ficando a poucos metros dos tanques, arriscando as nossas vidas. Não há um único centímetro, incluindo corredores e escadas, que não esteja ocupado por um paciente."
“O hospital ficou sem suprimentos médicos. Não há leite infantil disponível para crianças. Os médicos estão realizando operações sem anestesia."
“O povo do Norte de Gaza foi condenado à morte. Estamos sendo sistematicamente exterminados. Quem não morrer por causa do bombardeio, morrerá de doença. E quem não morrer de doença, provavelmente morrerá por falta de comida e água.”
Posteriormente, as IDF divulgaram à BBC detalhes de conversas telefônicas entre um funcionário do hospital Rantisi e um oficial sênior das IDF nas quais eles discutem maneiras de conseguir ambulâncias para retirar os pacientes.
O porta-voz das FDI, Daniel Hagari, também mostra aos jornalistas o que ele diz ser a evidência da infraestrutura do Hamas no hospital Rantisi — um vídeo mostrando explosivos, coletes suicidas e uma motocicleta usada nos ataques do Hamas de 7 de outubro escondidos em um porão.
Hagari mostra o vídeo de um poço profundo com uma escada na lateral que, segundo ele, fica próximo a uma escola e ao hospital, acrescentando que se trata de “um túnel do terror”. A BBC não conseguiu verificar essa informação.
*Os números de pessoas mortas em Gaza são fornecidos pelo ministério da saúde administrado pelo Hamas.
Reportagem adicional de Haya Al Badarneh e Mary O'Reilly
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