A prisão de dois brasileiros suspeitos de integrarem o grupo libanês Hezbollah e de planejar ataques contra a comunidade judaica no Brasil lançou luz sobre a presença e a atuação da organização islâmica xiita em território nacional.
As investigações, que contaram com o apoio de serviços de inteligência dos Estados Unidos e de Israel, apontam que um grupo de pelo menos quatro pessoas já teria mapeado possíveis alvos para ataques em diversos pontos do Brasil, inclusive contra a Embaixada de Israel, em Brasília. Procurada, a Embaixada de Israel não quis comentar.
A BBC News Brasil apurou que na operação desta quarta-feira (8/11), além do governo israelense, também houve colaboração de agências de segurança dos Estados Unidos.
Batizada de Operação Trapiche, a ação da PF também incluiu dois mandados de prisão contra outros dois brasileiros que estão fora do Brasil e que seriam descendentes de libaneses. De acordo com investigadores da PF ouvidos pela BBC News Brasil, essas duas pessoas já estariam na lista de procurados da Interpol.
Ainda de acordo com as fontes ouvidas pela BBC News Brasil, os planos para ataques coordenados contra alvos judaicos no Brasil teriam sido intensificados após o início dos conflitos entre o grupo palestino Hamas e o governo de Israel na Faixa de Gaza. No último dia 7 de outubro, o grupo palestino Hamas promoveu ataques brutais que mataram cerca de 1,4 mil pessoas em Israel e que detonaram a atual guerra.
Mais de 10,5 mil pessoas foram mortas em Gaza desde então, segundo o Ministério da Saúde administrado pelo Hamas, incluindo mais de 4,3 mil crianças.
O grupo Hezbollah foi formado depois que Israel invadiu uma parte do sul do Líbano em 1982, em resposta a uma série de ataques de palestinos contra Israel.
Além do seu braço armado, o Hezbollah também tem um braço político. Desde 1992, o grupo participa das eleições no Líbano e se transformou em uma importante força política do país.
O Hezbollah conta, desde sua criação, com forte apoio do Irã, uma das potências regionais do Oriente Médio rivais de Israel.
No Brasil, a chegada do Hezbollah teria ocorrido na década de 1980, quando houve uma grande imigração libanesa para o país de pessoas que fugiam da guerra civil no Líbano. É o que explica Jorge Lasmar, professor de Relações Internacionais na Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais.
“O grupo se infiltrou em atividades religiosas, educacionais e comerciais, principalmente entre os mulçulmanos xiitas. Alguns deles se tornaram líderes locais principalmente na região da tríplice fronteira (entre Brasil, Argentina e Paraguai)”, afirma o professor, que cita a estimativa de 460 pessoas ligadas ao Hezbollah no lado brasileiro da fronteira no início dos anos 2000.
Lasmar diz que o braço armado do Hezbollah adotou um perfil mais discreto na América do Sul nos últimos anos, com uma presença focada em atividades criminosas e não terroristas: o foco estaria em tráfico de drogas, tráfico humano, contrabando e lavagem de dinheiro.
A América Latina teria sido uma das saídas encontradas pelo Hezbollah para buscar financiamento para o seu braço armado após encontrar dificuldades financeiras decorrentes das sanções impostas pelo Ocidente ao Irã, grande financiador e aliado do grupo libanês.
O professor ressalta, porém, que nem todos os membros do Hezbollah fazem parte de seu braço armado e que a comunidade libanesa na região tampouco deve ser confundida com os integrantes do grupo.
A BBC News Brasil entrou em contato com a Embaixada do Líbano no Brasil para um posicionamento, mas não obteve resposta até a publicação desta reportagem.
Hezbollah e a tríplice fronteira
Ao menos desde os ataques da Al-Qaeda, em 11 de setembro de 2001, nos EUA, autoridades americanas passaram a monitorar atividades de grupos radicais islâmicos ao redor do mundo e a expressar preocupação com a atuação deles. Entre os grupos que mais atraem a atenção dos EUA está justamente o libanês Hezbollah. Suas atividades na Tríplice Fronteira entre Brasil, Argentina e Paraguai motivaram uma série de relatórios de inteligência, do Departamento de Estado e do Congresso dos EUA.
Ainda em 2002, o Departamento de Estado lançou a iniciativa “3 + 1 Group on Tri-Border Area Security”, pelo qual os americanos ofereciam treinamento e financiamento para ações de contraterrorismo na Tríplice Fronteira a Brasil, Argentina e Paraguai. Informações de inteligência de agências americanas também passaram a ser compartilhadas com mais frequência com os colegas latino-americanos e o Comando Militar do Sul dos Estados Unidos intensificou sua presença e atividades conjuntas com as forças armadas dos três países. De lá pra cá, a região e suas implicações com o Hezbollah estão constantemente no radar dos EUA.
Em 2011, o assunto foi tema de uma sabatina no subcomitê de Contraterrorismo e Inteligência da Câmara dos Deputados americana. Na ocasião, a deputada Jackie Speier, da Califórnia, resumiu o entendimento das autoridades americanas sobre a situação do grupo libanês na América Latina:
“O grupo (Hezbollah) supostamente realiza ampla atividade financeira ilícita na América Latina, incluindo tráfico de drogas, falsificação e contrabando. O epicentro dessas atividades é a Área Tríplice Fronteiriça, uma região sub governada entre Brasil, Argentina e Paraguai, onde as autoridades policiais locais não conseguiram combater as atividades de numerosas organizações terroristas e criminosas”.
A preocupação com o Hezbollah se justificava não só porque, até os eventos do 11 de setembro, o grupo xiita era o responsável pelos mais mortíferos assaltos a alvos americanos: em 1983, integrantes do Hezbollah atacaram a embaixada e uma base da marinha americanas na capital libanesa Beirute e provocaram mais de trezentas vítimas. Autoridades argentinas também atribuem ao grupo o que são considerados os maiores atentados em território sul-americano na história: os ataques à bomba contra a Embaixada de Israel em Buenos Aires, em 1992, e a Associação Mútua Argentina-Israelense (AMIA), em 1994 - que resultaram em mais de cem mortos.
Nos dois casos, a organização dos atos teriam sido realizadas justamente na Tríplice Fronteira, afirmou a diretora-executiva do Comitê Interamericano de Combate ao terrorismo da Organização dos Estados Americanos (OEA), Alison August Treppel, em 2019, por ocasião dos 25 anos do atentado à AMIA.
“A Área Tríplice Fronteiriça é há muito considerada um centro de atividades criminosas: tráfico de armas e drogas; contrabando de mercadorias; documentos e moeda falsificados; lavagem de dinheiro; e a circulação de mercadorias piratas. A proximidade geográfica dos três principais centros urbanos da área – a cidade brasileira de Foz do Iguaçu, a cidade paraguaia de Ciudad del Este e a cidade argentina de Puerto Iguazu – facilita o trabalho de grupos criminosos e terroristas, que se aproveitam das vulnerabilidades das instituições públicas locais”, disse Treppel, a respeito da região que também atrai turismo de luxo graças às belezas das Cataratas de Iguaçu.
Em 2006, o Tesouro Americano qualificou o libanês Assad Ahmad Barakat como um “terrorista global” e o incluiu, junto a seus irmãos, em uma lista de financiadores do Hezbollah. No caso de Barakat, que teve parte dos negócios congelados, esse financiamento acontecia na região de Iguaçu.
"A rede de Assad Ahmad Barakat na Área da Tríplice Fronteira é uma importante artéria financeira para o Hezbollah no Líbano", disse, à época, o então diretor do gabinete de Controle de Ativos estrangeiros do Tesouro Americano, Adam Szubin.
Batizado de “tesoureiro do Hezbollah”, Barakat foi preso em 2018 pela Polícia Federal em Foz do Iguaçu. Antes disso, porém, ele teria lavado cerca de US$ 10 milhões para o Hezbollah em cassinos na região de fronteira, segundo a polícia argentina. Em 2020, Barakat foi extraditado para o Paraguai, onde seria julgado por falsidade ideológica.
Ainda em 2006, o Tesouro americano impôs sanções a Farouk Omairi, um libanês naturalizado brasileiro, a quem o departamento identificou como "um coordenador dos integrantes do Hezbollah na região,...(e) uma figura-chave na aquisição de documentação falsa brasileira e paraguaia na tríplice fronteira."
Dezessete anos depois, em junho último, o juiz federal argentino Daniel Rafecas pediu que a Interpol buscasse Omairi, junto com outros três alvos de origem libanesa, para que fossem detidos e explicassem sua atuação no ataque à AMIA. “Sobre esses indivíduos, há suspeitas bem fundamentadas de que eles são colaboradores ou agentes operacionais do braço armado do Hezbollah”, escreveu Rafecas na decisão, segundo a agência de notícias Associated Press. Ali Hussein Abdallah, também naturalizado brasileiro e possivelmente residente na tríplice fronteira, é outro dos alvos no caso.
A BBC News Brasil questionou o Departamento de Estado e a Embaixada dos EUA no Brasil sobre o assunto. Os dois órgãos “parabenizaram” a Polícia Federal pelo sucesso da operação e se recusaram a dar detalhes sobre sua atuação nas prisões desta quarta-feira, embora a BBC News Brasil tenha apurado que agentes do FBI trabalharam com a PF na investigação. O Departamento de Estado também não quis comentar sobre sua histórica preocupação com o Hezbollah na Tríplice Fronteira. Segundo Lasmar, estimativas americanas dão conta de que o grupo libanês arrecade até US$1bilhão na área anualmente, mas a cifra é desconhecida, a despeito das extensas investigações.
Ainda em 2011, a deputada Speier expressou as dúvidas que persistem sobre a tríplice fronteira e o Hezbollah para os americanos: “Embora saibamos que o Hezbollah arrecada dinheiro na América Latina, não sabemos a verdadeira extensão das suas operações. Quanto financiamento o Hezbollah realmente recebe de suas atividades, tanto legais quanto ilegais, na América Latina?”
Compartilhamento de informações entre as polícias
A troca de informações entre serviços policiais e de inteligência sobre a atuação do Hezbollah no Brasil foi, segundo o Mossad (um dos principais serviços de inteligência de Israel), responsável pela prisão dos brasileiros suspeitos de integrarem o grupo libanês.
A BBC News Brasil apurou que houve colaboração de agências de segurança dos EUA durante a investigação que resultou na prisão dos brasileiros.
Esse tipo de colaboração, dizem duas fontes policiais ouvidas pela BBC News Brasil, é uma prática comum e frequente e envolve, na maior parte dos casos, a alta cúpula da Polícia Federal, mais precisamente, a Diretoria de Inteligência do órgão, responsável por investigar crimes como terrorismo e ações de inteligência e contra-inteligência.
Um exemplo de como essa colaboração é frequente consta de um relatório de inteligência, produzido em 2012, e obtido pela BBC News Brasil.
No dia 28 de maio daquele ano, a Superintendência da Polícia Federal no Rio Grande do Norte informou ter recebido informações sobre a possibilidade de um atentado a bomba a ser realizado no Brasil, Colômbia ou Bolívia.
De acordo com o relatório, a organização por trás dos ataques seria o Hezbollah e as informações sobre o suposto ataque teriam sido repassadas por agências de segurança de países da América do Sul.
"Informações repassadas por órgãos de inteligência na América do Sul sinalizam que unidade especial do Hezbollah, em conjunto com a unidade especial do Irã (Força Qods) estariam atuando no planejamento de atentados na América Latina, particularmente no Brasil, na Colômbia e na Bolívia", diz um trecho do documento.
O documento cita os nomes de duas pessoas que teriam sido apontadas como suspeitas de integrar o grupo. Seus nomes, no entanto, aparecem tarjados no documento. Elas foram, segundo o relatório, incluídas no antigo Sistema Nacional de Procurados e Impedidos (Sinpi).
A BBC News Brasil não conseguiu verificar se as pessoas citadas no documento chegaram a ser presas.
Hezbollah e o tráfico de drogas
Um dos pontos que mais preocupa as autoridades brasileiras e estrangeiras em relação à atuação do Hezbollah no Brasil e na região da Tríplice Fronteira é a possibilidade de o grupo estar ligado a facções criminosas que exploram o tráfico internacional de drogas.
Relatórios do governo norte-americano também mencionam essa possibilidade.
No Brasil, essa ligação foi levantada durante as investigações em torno de um brasileiro apontado como traficante internacional de drogas ligado ao Primeiro Comando da Capital (PCC). Segundo as investigações da Polícia Federal, ele seria um dos principais nomes da facção na fronteira do Brasil com o Paraguai. Seu nome é Elton Leonel Ruminich da Silva, conhecido como "Galã".
Segundo informações repassadas à Justiça Federal do Rio de Janeiro pela Secretaria de Administração Penitenciária fluminense, foram encontrados indícios de que "Galã" mantinha ligação com integrantes do Hezbollah e que ele e seus supostos comparsas teriam montado um plano de fuga. Até 2019, ele estava preso na penitenciária Laércio da Costa Pellegrino, conhecida como Bangu 1, no Rio de Janeiro.
Após o repasse das informações, a Justiça Federal autorizou a transferência de "Galã" para um presídio federal de segurança máxima.
Procurado pela BBC News Brasil, o advogado de Elton Leonel Ruminich da Silva, Eugenio Malavasi, negou as supostas ligações do seu cliente com o Hezbollah.
"Essas conexões nunca foram provadas. Não existem. Não há nenhum elemento factual que corrobore essa vinculação", disse Malavasi.
O professor Jorge Lasmar diz que investigações da Polícia Federal também identificaram ligações entre o Hezbollah e o PCC. Isso ocorreria principalmente por conta das atividades ilegais executadas pelo Hezbollah envolvendo contrabando e tráfico de drogas.
“As evidências em relação a isso estão cada vez maiores. Um documento de 2014 da Polícia Federal aponta essa parceria com o PCC e os Estados Unidos sempre apontam essa ligação”, afirma.
Lasmar explica que essa relação ocorre porque o Hezbollah usa diversas rotas brasileiras comandadas pelo PCC para traficar drogas, como a tríplice fronteira e o aeroporto de Guarulhos. E, para isso, precisa negociar com a facção paulista.
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