Legado

Quem foi Oswaldo Aranha, o brasileiro que ajudou a criar o Estado de Israel

O diplomata e político brasileiro Oswaldo Aranha desempenhou um papel fundamental como presidente da Assembleia Geral das Nações Unidas em 1947 ao apoiar a Resolução 181 da ONU, que recomendou a partição da Palestina e a criação do Estado de Israel

 Oswaldo Aranha eu reunião com autoridades internacionais na ONU, em 1947 -  (crédito: Arquivo Nacional )
Oswaldo Aranha eu reunião com autoridades internacionais na ONU, em 1947 - (crédito: Arquivo Nacional )
BBC
Edison Veiga - De Bled (Eslovênia) para a BBC News Brasil
postado em 04/11/2023 12:57 / atualizado em 04/11/2023 14:04

Uma das avenidas principais de Porto Alegre se chama Oswaldo Aranha e corta justamente o bairro do Bom Fim, reduto de expoentes da comunidade judaica na capital do Rio Grande do Sul. Também há ruas com este nome em Tel-Aviv, Bersebá e Ramat Gan, em Israel. E uma Praça Oswaldo Aranha em Jerusalém.

As homenagens se justificam principalmente pela atuação do brasileiro para a aprovação da chamada Resolução 181, quando a Organização das Nações Unidas (ONU) lançou as bases para a criação do atual Estado de Israel.

Para especialistas, o político, diplomata e advogado brasileiro Oswaldo Euclides de Sousa Aranha (1894-1960) deve ser considerado um dos maiores nomes do país no âmbito das relações internacionais.

“Sua atuação no cenário internacional estava dentro da questão do excedente de poder, um conceito de política externa que trata das coisas que criam condições para que você crie outras”, diz à BBC News Brasil o cientista político Leonardo Bandarra, pesquisador na Universidade de Duisburg-Essen (Alemanha) e associado sênior na organização desarmamentista Middle East Treaty.

“A participação do Brasil [na criação do Estado de Israel] foi importante para o país mostrar capacidade de gerir assuntos complexos de paz que não são de sua região. Até hoje nos dá prestígio no cenário internacional”, acrescenta.

Em 1948, por conta dessa atuação, Aranha chegou a ser indicado para o Prêmio Nobel da Paz.

“Ao lado de Ruy Barbosa [(1849-1923)], Barão do Rio Branco [(1845-1912)] e Bertha Lutz [(1894-1976)], é um dos nomes mais importantes da diplomacia brasileira. Simboliza um Brasil que se lançava para o mundo”, afirma à BBC News Brasil o economista Robert Georg Uebel, professor de relações internacionais da Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM).

Diplomacia inata

Mas como foi a trajetória desse gaúcho, antigo amigo do presidente brasileiro Getúlio Vargas (1882-1954) que também se tornaria amigo do seu homólogo americano Franklin Roosevelt (1882-1945), a ponto de ele se tornar um dos nomes mais importantes da diplomacia mundial no conturbado momento da vigência e do término da Segunda Guerra Mundial?

Sua biografia indica uma facilidade inata para intermediar conflitos e buscar soluções.

“Ele tinha uma aptidão muito grande para questões internacionais desde cedo”, diz à reportagem o cientista político Christopher Mendonça, professor na Ibmec de Belo Horizonte. “Aranha nasceu no lugar onde é praticamente fronteira do Brasil com Argentina e Uruguai [o município de Alegrete] e jovem esteve em países como França, Itália e Suíça. Esse conhecimento internacional fez dele uma pessoa de destaque nesse assunto.”

Graduado pela Faculdade de Ciências Jurídicas e Sociais, hoje Faculdade Nacional de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), logo em seguida passou uma temporada de estudos em Paris. Só então se viu talhado para começar a carreira, como advogado, no Rio Grande do Sul.

Logo sua trajetória se misturaria com a política. Em 1923, tinha 29 anos quando explodiu a luta entre chimangos e maragatos — e ele chegou a pegar em armas para lutar a favor do sistema republicano em seu estado. Dois anos mais tarde tornou-se prefeito de sua cidade natal — e lembrado até hoje como o introdutor do sistema de esgoto no município.

Nesse período, o diplomata dentro dele pareceu saltar aos olhos. Os resquícios do conflito de dois anos atrás ainda ecoavam em sua Alegrete, fazendo com que famílias distintas se vissem como rivais. Ele conseguiu selar a paz.

Aranha parecia galgar uma ascensão meteórica. Em 1927, foi eleito deputado federal. No ano seguinte, foi nomeado secretário de Negócios Interiores e Exteriores do Rio Grande do Sul.

Pouco tempo depois, ele era um dos principais articuladores da chamada Aliança Liberal, campanha que organizou o golpe armado que deporia o presidente Washington Luís (1869-1957), fazendo a Revolução de 30 que acabaria levando o seu conterrâneo gaúcho Getúlio Vargas à presidência da República pela primeira vez.

Foi nessa época que a amizade de ambos se tornou forte.

Com Getúlio Vargas

“Ele passou a fazer parte do gabinete governativo de Vargas”, pontua Mendonça. Foi ministro da Justiça e, depois, da Fazenda. Seu olhar estava sempre mirando o exterior — tanto que em sua gestão no comando das finanças públicas promoveu um levantamento que, pela primeira vez, consolidou o montante da dívida externa brasileira.

Mendonça lembra que era um momento delicado para as contas, já que o planeta vivia o rescaldo da intensa crise de 1929, quando houve a quebra da bolsa de valores de Nova York e uma reação em cadeia pelos mercados mundo afora.

A amizade com Vargas, contudo, não fazia dele um apoiador inconteste. Em 1934, após uma série de desentendimentos, ele pediu demissão do cargo. Foi quando acabou nomeado embaixador brasileiro em Washington.

“Ele foi colocado nessa posição por sua grande capacidade em assuntos internacionais e habilidade de mediação política”, ressalta Mendonça.

“Aranha era um admirador dos Estados Unidos, de como uma ex-colônia se tornava uma democracia pujante. Ao mesmo tempo, ele era antifascista e pró-democracia e isso é uma característica na qual ele foi muito coerente ao longo de sua carreira”, diz Bandarra.

Durante sua gestão, ele costurou alguns tratados importantes. Em 1935, por exemplo, Brasil e Estados Unidos firmaram um compromisso comercial mútuo que é considerado basilar para a aproximação histórica entre as duas nações.

Ele também se aproximou do presidente Roosevelt, de quem se tornou amigo, e formou uma comitiva que o trouxe para visitar o Rio de Janeiro, em 1936.

“Os Estados Unidos ainda não eram um país de referência, uma potência global, mas Oswaldo Aranha teve o feeling, a capacidade de ver neles uma grande capacidade do ponto de vista econômico e militar”, analisa o cientista político.

No ano seguinte, houve nova rusga com Vargas. “Foi quando o presidente redigiu o decreto do Estado Novo. Aranha criticou”, lembra Mendonça. O episódio precipitou sua demissão do posto em Washington.

“Ele tinha uma relação próxima com Vargas, mas era uma relação crítica, com momentos de proximidade e momentos de separação, de corte de relações formais com o governo”, explica Bandarra. “Isso só reforça que ele falava o que pensava, o que acreditava.”

Em 1938, ambos se aproximaram mais uma vez. Oswaldo Aranha acabou nomeado ministro das Relações Exteriores. E aí seu papel se tornou crucial para os rumos adotados pelo país durante a Segunda Guerra Mundial, conflito que ocorreu entre 1939 e 1945.

Panamericanismo e Segunda Guerra

O primeiro ponto elementar de sua gestão à frente do Itamaraty foi reforçar os laços brasileiros dentro das relações americanas.

“Ele lutou pela aproximação comercial com a Argentina e os Estados Unidos e, vale dizer, os dois são até hoje parceiros muito importantes para o Brasil. Nesse sentido, Aranha foi responsável pelo padrão da política externa brasileira ainda vigente”, argumenta Mendonça.

Com a guerra, havia uma pressão para o posicionamento brasileiro dentro do conflito.

Em 1942, na Conferência do Rio que foi presidida por ele, Aranha declarou o rompimento das relações diplomáticas e comerciais do Brasil com os países do Eixo. “Esse foi o passo fundamental para a aproximação do Brasil com os países que posteriormente venceram a Segunda Guerra”, analisa Mendonça.

“Havia no país um flerte com o autoritarismo, inclusive com o nazismo. Nesse sentido, ele teve o mérito de fazer com que o país se mantivesse dentro dos preceitos da democracia, da liberdade.”

O cientista político Bandarra afirma que, no governo Vargas, Aranha se contrapunha a dois outros nomes sobre o posicionamento brasileiro na guerra: o então chefe da polícia política Filinto Müller (1900-1973) e Enrique Gaspar Dutra (1883-1974), que ocupava o posto de ministro da Guerra.

“Estes eram favoráveis a uma relação próxima com os países do Eixo. Aranha teve uma atuação forte nos bastidores para que o Brasil ficasse ao lado dos Aliados”, diz.

No princípio, o diplomata advogou pela chamada equidistância, em que o país deveria assumir uma pretensa neutralidade no conflito, tentando se beneficiar de ambos os lados. “Seria um equilíbrio pragmático, uma neutralidade positiva”, afirma Bandarra.

“Em seguida, ele puxou para o caminho mais próximo com o lado americano, pela questão do panamericanismo, da democracia e tudo isso”, complementa. “Ele foi uma pessoa que pensou à frente na questão da posição do país no cenário internacional.”

“Era um momento muito conturbado da política internacional e, ao mesmo tempo, um momento em que o Brasil estava se lançando ao mundo, se mostrando para o mundo”, comenta Uebel.

“Oswaldo Aranha teve um papel fundamental nisso, reafirmando a imagem do Brasil como um país antifascista e antinazista, um país alinhado aos valores ocidentais.”

Em 1944, novamente enfraquecido no governo, decidiu pedir demissão do cargo de ministro. Havia um rumor de que ele seria um nome forte para disputar as eleições para a presidência em 1945, mas não houve base política suficiente para bancá-lo na corrida.

A criação do Estado de Israel

Quando a Organização das Nações Unidas foi criada, ele logo assumiu o cargo de chefe da delegação brasileira, a partir de 1947. Foi aí que ocorreu seu papel-chave na criação do Estado de Israel.

“Ele já estava fora da agenda política e foi recolocado no cenário pelo presidente Dutra [que sucedeu Vargas]. Pode parecer inesperado, porque eles tinham uma relação anterior problemática, mas, durante seu governo, ele se tornou um pró-americanista incisivo na política externa, então fazia sentido chamar de volta o Aranha”, analisa Bandarra.

Aranha se tornou o presidente da II Assembleia Geral da ONU, justamente aquela que votou o plano para a partição da Palestina. A resolução estava longe de ser um consenso, e mesmo entre aqueles que defendiam a criação de um novo Estado não havia posição unânime sobre as formas de dividir o território.

“Ele tinha uma boa aproximação com os judeus que viviam nos Estados Unidos e isso influenciou em sua postura”, afirma Mendonça. “Sua motivação não era apenas política, mas também pessoal.”

“Mas a criação do Estado não foi consensual. Havia interesses difusos durante o processo de negociação, o que causou muitas intercorrências. O papel de mediador de Aranha, hábil, foi fundamental para a negociação”, complementa o cientista político.

“Eu diria que ele foi muito bem-sucedido ao manobrar os interesses das partes”, afirma Bandarra.

Utilizando a história do Brasil como exemplo, o diplomata soube conduzir as discussões dentro daquilo que, ao menos sob o prisma da época, parecia ser o mais adequado.

“Aranha negociou bastante, inclusive acionando contatos nos governos, principalmente nos Estados Unidos. E buscou formas alternativas de como chegar ao resultado, de como deveria ser feita a partilha do território”, explica Bandarra.

O pesquisador afirma que eram muitas as propostas e, para defender a solução que acabaria adotada naquele momento, Aranha usou como exemplo a história da definição das fronteiras do Brasil. “No final, foi o critério que se usou: quem está ocupando deve ter a terra”, diz.

Se por um lado, naquele momento parece ter funcionado — e o processo ocorreu com rapidez — por outro ele traria problemas, segundo o especialista.

“A Palestina ficou com duas partes desconectadas, foram criados dois exclaves, digamos, e isso dificulta bastante até hoje a viabilidade do Estado Palestino. É uma coisa que não ficou solucionada”, diz Bandarra.

Mas, conforme ressalta o pesquisador, é inegável que Aranha “manobrou de diversas formas para que, no final, conseguisse uma boa votação e a consequente aprovação da resolução” que dividiu a Palestina e criou Israel.

“Foi uma posição bem feita, embora poderia ter levado outros fatores em consideração para evitar futuros problemas”, critica ele.

“É preciso lembrar, entretanto, que foi uma solução relativamente rápida e isso é uma coisa importante. Mostra eficiência na negociação e vontade de resolução.”

Para Uebel, é preciso lembrar que Aranha “é reconhecido até hoje pelo papel de destaque” nesses primeiros anos da ONU e isso está atrelado ao seu trabalho pela aprovação da criação do Estado de Israel.

“Ele construiu todo o diálogo político necessário”, comenta. “Havia também a preocupação humanista de Aranha em busca de uma solução para um povo que havia sido tão perseguido, que havia acabado de sofrer o Holocausto na Segunda Guerra.”

Houve ganhos simbólicos também para a política externa brasileira. “Isso demonstra também que Aranha já pensava na época em colocar o Brasil na agenda internacional”, acrescenta.

Um dos motivos que faz com que o país historicamente abra as assembleias gerais da ONU é justamente em homenagem ao trabalho de Aranha no período.

Legado — até no prato

“De forma geral, a trajetória de Oswaldo Aranha mostra que ele viveu momentos de grande necessidade da atuação forte da diplomacia brasileira. Foi ministro da Fazenda em um momento crucial, pós-Crise de 1929, conduziu o Brasil no mercado internacional de maneira importante através de assinaturas com Estados Unidos e Argentina, foi referência na entrada do Brasil na Segunda Guerra Mundial e, posteriormente, nos primeiros passos da ONU”, diz Mendonça. “É um nome inescapável dentro da história diplomática.”

Além dos logradouros públicos com seu nome, uma das mais curiosas homenagens que acabaram por eternizar a memória do diplomata é um prato, o filé à Oswaldo Aranha.

Trata-se de um bife de filé mignon ou contra-filé, fartamente temperado com alho frito, acompanhado de batatas, arroz e farofa de ovos.

O apelido pegou porque essa era a receita que ele costumava pedir no restaurante Cosmopolita, chamado popularmente de Senadinho, que ele costumava frequentar na Lapa, no Rio.

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