Julia, de 18 meses, é retirada dos escombros de um prédio destruído e levada às pressas para o Hospital El-Najar, em Rafah, no sul de Gaza.
Ali, ela se reencontra com sua irmã, Joury, de cinco anos, que já havia sido resgatada e estava recebendo cuidados médicos.
"Minha irmã, minha amada", diz Joury chorando no momento em que percebe que sua irmã havia sobrevivido.
As duas estavam almoçando com a família quando o prédio vizinho ao delas foi bombardeado, destruindo a casa onde estavam, disse o tio das meninas à BBC.
Segundo ele, as meninas tiveram ferimentos na cabeça e ficaram assustadas e traumatizadas.
Mais tarde, elas deixaram o hospital com a família.
O caso de Julia e Joury é um retrato da trágica realidade das crianças palestinas de Gaza desde o início da escalada mais recente do conflito entre o grupo militante palestino Hamas e Israel.
Elas são as principais vítimas da guerra — segundo dados mais recentes do Ministério de Saúde de Gaza, administrado pelo Hamas, 3.542 crianças foram mortas no território — cerca de 40% do total de mortos (8.525).
Israel, por sua vez, alega que o Hamas usa civis como "escudo humano", escondendo armas e munições em casas, escolas e hospitais.
Em reunião do Conselho de Segurança (CS) da ONU nesta segunda-feira (30/10), a diretora-executiva da Unicef (Fundo das Nações Unidas para a Infância), Catherine Russell, afirmou que 420 crianças são feridas ou mortas em Gaza todo os dias, ou seja, cerca de uma criança ferida ou morta a cada cinco minutos.
Russell acrescentou que a violência perpetrada contra as crianças se estendeu para além da Faixa de Gaza.
Na Cisjordânia ocupada, incluindo Jerusalém Oriental, pelo menos 37 crianças teriam sido mortas, disse ela.
Do lado israelense, mais de 30 teriam sido mortas — enquanto pelo menos 20 permanecem reféns em Gaza.
"O verdadeiro custo desta última escalada será medido nas vidas das crianças, daquelas que foram perdidas pela violência e daquelas que foram mudadas para sempre por ela", afirmou Russell.
Segundo ela, as consequências do terrível trauma que as crianças palestinas e israelenses estão sofrendo poderão durar a vida toda.
Por seu lado, Philippe Lazzarini, diretor da UNRWA, agência da ONU para refugiados palestinos, descreveu a tragédia humana em Gaza como "intolerável" e reiterou que não há lugar seguro em Gaza.
Ele também descreveu o bombardeio, as ordens de evacuação e o cerco de Israel como "deslocamento forçado" e "punição coletiva".
Segundo Lazzarini, o número de crianças mortas em Gaza — acima de 3 mil — em apenas três semanas já ultrapassa o número de crianças mortas anualmente nas zonas de conflito do mundo desde 2019.
Isso, disse ele, não pode ser tratado como um "dano colateral".
A UNRWA perdeu 64 funcionários, afirmou Lazzarini ao CS da ONU, incluindo um que, segundo ele, morreu apenas duas horas antes junto com sua esposa e oito filhos.
Lazzarini disse ainda que os moradores de Gaza sentem que o mundo os está equiparando ao Hamas e que é perigoso que uma população inteira esteja sendo desumanizada.
As atrocidades do Hamas, afirmou, não "isentam Israel das suas obrigações ao abrigo do Direito Internacional Humanitário".
Lazzarini instou os membros do CS a mudarem a trajetória da crise, acrescentando que o "presente e o futuro dos palestinos e israelenses dependem de um cessar-fogo humanitário imediato".
Na semana passada, o embaixador de Israel na ONU, Gilad Erdan, afirmou que agências das Nações Unidas criaram uma "imagem falsa" da situação em Gaza ao aceitar alegações de autoridades palestinas controladas pelo Hamas.
Ajuda humanitária
Lazzarini, da UNRWA, também reiterou os apelos para que haja um fluxo contínuo e desimpedido de ajuda humanitária — incluindo combustível — e proteção dos civis e da infraestrutura.
No domingo (30/10), 33 caminhões carregando ajuda humanitária cruzaram a fronteira do Egito com Gaza no maior comboio já autorizado desde o início do conflito.
Esse número, no entanto, está, segundo a ONU, muito aquém do total de 500 caminhões que entravam no território antes do início do conflito, quando o Hamas atacou Israel em 7 de outubro, matando 1.400 pessoas e capturando mais de 200 reféns.
Na segunda-feira, os EUA afirmaram estar confiantes de que em breve haverá um aumento significativo da ajuda destinada a Gaza, segundo o porta-voz de segurança nacional da Casa Branca, John Kirby.
A "primeira fase consiste em transportar até 100 caminhões por dia", disse Kirby, acrescentando que mesmo isso não seria suficiente, mas ainda assim representava uma "melhoria substancial" da situação atual.
Segundo ele, os EUA acreditam que isso poderá acontecer "nos próximos dias".
"Os EUA estão liderando o esforço para tentar levar assistência humanitária a Gaza, e se não fosse francamente pela liderança americana, sei que não veríamos o aumento da ajuda entrando", disse Kirby em entrevista a jornalistas na Casa Branca.
Kirby acrescentou que os EUA não apoiam um cessar-fogo neste momento, o que, segundo ele, só beneficiaria o Hamas, mas que corredores humanitários temporários deveriam ser cogitados.
Ele também disse que os EUA "fizeram parte da conversa" que levou à restauração da conexão à internet em Gaza, depois de ela ter sido cortada no fim de semana.
Enquanto a ajuda humanitária não chega em grandes proporções, a população de Gaza raciona comida e água.
Segundo a ONU, as crianças que vivem no território não têm acesso à água potável, apenas à "água salgada para sobreviver".
No fim de semana, armazéns administrados pela UNRWA contendo produtos básicos como farinha e sabão foram saqueados por milhares de pessoas.
Segundo a UNRWA, é um "sinal preocupante de que a ordem civil está começando a ruir".
Israel continua bloqueando a entrada de suprimentos em Gaza, sob a alegação de que possam ser usados pelo Hamas.
Abeer Etefa, porta-voz do Programa Alimentar Mundial da ONU (PAM), disse à BBC que os saques eram "esperados" devido às "condições difíceis que as pessoas enfrentam".
"As pessoas estão desesperadas, estão com fome", disse ela.
Alguns dos deslocados que saquearam os armazéns da ONU disseram à agência de notícias AFP que "não tinham farinha, nem ajuda, nem água, nem sequer banheiros".
"Nossas casas foram destruídas. Ninguém se importa conosco. Apelamos às pessoas do mundo. Todas as potências internacionais estão contra nós. Precisávamos de ajuda e não teríamos feito isso se não estivéssemos necessitados", afirmou Abdulrahman al-Kilani, morador de Gaza.
Segundo o correspondente da BBC em Gaza, Rushdi Abu Alouf, que está em Khan Younis, no sul do território, centenas de pessoas fizeram fila para encher "uma garrafinha de água" de um caminhão-pipa da ONU com água potável em frente ao hospital Nasser.
Ele também disse que um pai lhe contou que ficou seis horas na fila para conseguir cinco pedaços de pão para sua família.
"As pessoas nesta área pedem um corredor de ajuda sustentável. Querem poder dar comida e água às suas famílias, não se importam com mais nada. Eles estão vivendo para sobreviver", afirmou.
'Cirurgias no chão e amputações sem anestesia'
Segundo organizações humanitárias que atuam em Gaza, médicos estão sendo forçados a operar no chão e a realizar cesarianas em mulheres e amputações em crianças sem anestesia devido à falta de medicamentos.
Mohammed Obeid, cirurgião da ONG Médicos Sem Fronteiras (MSF) em Gaza, contou como operou um menino de nove anos que perdeu parte do pé devido aos ataques aéreos.
"Nosso centro cirúrgico estava lotado, então começamos a operar no chão, no corredor. Essa senhora, que é mãe, trouxe a filha pequena, que tem uns 13 anos, em cadeira de rodas. Estou operando o filho mais novo dela, um menino de nove anos que tem um pé semiamputado", disse ele.
"Não temos instrumentos e temos muitos casos, então apenas amputamos sob leve sedação. O anestesista tentou manter a boca do menino aberta para evitar estrangulamento. a irmã estava esperando para ser operada em seguida. Você não pode imaginar. Essa garota, essa garota de 13 anos esperando para ser operada, olhando para mim enquanto estou amputando o meio do pé de seu irmão", acrescentou ele.