O número crescente de vítimas no conflito Israel-Hamas após um ataque sem precedentes do grupo palestino ter deixado mais de 1,4 mil mortos, segundo o governo de Israel, e a intensificação das ações por terra e por ar de Israel contra Gaza levantaram ao redor do mundo discussões sobre quais são os limites de uma guerra.
Basicamente, a pergunta principal nestes casos é: o que pode ou não ser feito por cada uma das partes no caso de um conflito armado?
Mesmo um cenário de guerra deve obedecer regras, segundo o Direito Internacional. E elas devem ser seguidas tanto por forças de Estados quanto por grupos armados não estatais (leia mais abaixo).
As regras tratam de dois aspectos centrais e que não devem ser confundidos, segundo os especialistas: uma parte determina cenários nos quais o uso da força poderia ocorrer, e outra parte estabelece os limites que devem ser observados durante conflitos, principalmente para proteger civis.
A seguir, entenda o que dizem as principais regras sobre os limites de uma guerra.
'Legítima defesa': quando uma guerra pode ser iniciada?
Uma parte dessas regras internacionais está relacionada ao início de uma guerra – ou seja, determina se um conflito armado pode ou não ser iniciado.
A possibilidade de legítima defesa é prevista no artigo 51 da Carta das Nações Unidas, assinada em 1945, que tem entre seus objetivos manter a paz e a segurança internacionais.
O tratado proíbe o uso da força, com duas exceções: casos de legítima defesa contra um ataque armado, e quando é autorizado pelo Conselho de Segurança das Nações Unidas.
Segundo essa regra, "quando um país é atacado, ele tem o direito legítimo de resposta proporcional", diz Carolina Claro, professora de Direito Internacional no Instituto de Relações Internacionais da Universidade de Brasília (UnB).
Thiago Amparo, professor de Direito Internacional e Direitos Humanos na FGV Direito SP, acrescenta que "a carta das Nações Unidas deixa explícito que a ideia é que, logo que for feito um ato em autodefesa, é necessário que se notifique o Conselho de Segurança da ONU para, caso queira, tomar as medidas necessárias".
Ele aponta, ainda, que "o Conselho de Segurança é o principal órgão que vai olhar se aquela autodefesa extrapolou os seus limites, a exigir restrição e diminuição do uso da força ou a parar o uso da força por uma autoridade específica".
Carolina Claro diz que "a legítima defesa, no Direito Internacional, vem da ideia de guerra justa, na Baixa Idade Média, e foi consolidada no artigo 51 da Carta da ONU".
Essa parte das normas, diz Claro, são as "regras da guerra", que tratam sobre "o direito de um Estado entrar ou não em guerra".
"E também há as regras na guerra, que é como as partes devem se comportar."
Regras na guerra: como limitar os efeitos de um conflito armado?
A proteção da população civil e de bens civis durante conflitos armados está prevista no chamado Direito Internacional Humanitário. O objetivo é limitar os efeitos dos conflitos armados uma vez que são iniciados.
Esse conjunto de regras se aplica "igualmente a todos os lados, independentemente de quem tenha iniciado o conflito ou dos motivos", segundo o Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CICV).
Além disso, o CICV aponta que todos os que lutam numa guerra devem respeitar esse conjunto de regras – tanto forças de Estados quanto grupos armados não estatais.
Amparo também destaca que essas regras – que protegem os civis, prisioneiros de guerra e feridos – devem ser seguidas em qualquer contexto de conflito armado.
"As regras humanitárias devem ser respeitadas independentemente de quais são os fundamentos da guerra – a guerra pode ser um crime de agressão ou pode não ser um crime de agressão (...) Isso é uma outra análise", diz o professor.
O objetivo dessas normas é chegar a um equilíbrio entre as preocupações humanitárias e as exigências militares do conflito armado.
Essas normas incluem proteção para combatentes feridos e enfermos, regras para tratamento de prisioneiros de guerra, e restrições ao uso de determinadas armas e métodos de guerra. E as regras proíbem que civis sejam feitos reféns, conforme o CICV.
Também proíbe o assassinato e tortura das pessoas protegidas (civis, feridos, enfermos, prisioneiros de guerra) e estabelece que pessoas feridas e enfermas devem ser recolhidas e tratadas e que, para garantir isso, atividades médicas e transportes médicos devem ser respeitados e protegidos.
Prevê também que o acesso à assistência humanitária para a população civil afetada pelo conflito deve ser permitido e facilitado, e que as equipes e os objetos humanitários devem ser respeitados e protegidos.
As normas do Direito Internacional Humanitário estão baseadas em três princípios:
1. Distinção de civis e militares
É a exigência de que as partes envolvidas no conflito armado façam a distinção, a todo momento, entre civis e bens civis – como escolas e hospitais – e combatentes e objetivos militares.
Os ataques só podem ser direcionados contra militares – ataques contra civis ou indiscriminados (ou seja, que atingem militares e civis) são proibidos.
"O Direito Humanitário não proíbe o ataque a objetos e oficiais militares. Ou seja, é uma guerra. Você pode atacar objetos militares, mas não pode exercer o uso da força (de forma) que não permita distinguir entre civis e combatentes", explica Amparo.
2. Ataque proporcional
O princípio da proporcionalidade estabelece que, "ao atacar um objetivo militar, a perda acidental de vidas civis, lesões a civis, danos a bens civis, ou uma combinação destes, não deve ser excessiva em relação à vantagem militar concreta e direta prevista", segundo o CICV.
Ou seja, as partes envolvidas precisam prever “danos incidentais que possam ser causados diretamente por um ataque e os efeitos indiretos, desde que sejam razoavelmente previsíveis”, ainda de acordo com o CICV.
Amparo complementa: “Você tem que provar que sua reação é minimamente proporcional à ação que você sofreu. Não pode simplesmente receber um canhão e atacar com bomba atômica.”
3. Medidas de precaução
“Você tem que mostrar que tomou as medidas necessárias para poder assegurar que você não tem vítimas civis. Por exemplo, quando tem ordens de evacuação, em geral, os Estados utilizam isso como justificativa para dizer que estão exercendo o princípio da precaução”, diz Amparo.
O princípio da precaução é o que determina que as partes de um conflito armado devem ter constante cuidado de poupar a população civil e os bens civis durante a condução de todas as operações militares.
As partes de um conflito devem tomar precauções no ataque (“precauções ativas”) e uma série de precauções contra os efeitos dos ataques para proteger civis e bens civis (“precauções passivas”), segundo o CICV.
As precauções no ataque, segundo a organização, incluem, por exemplo, medidas para verificar se os alvos são objetivos militares e para dar à população civil um alerta efetivo antes do ataque.
Para tomar as precauções necessárias para proteger a população civil e os bens civis sob o seu controle contra os efeitos dos ataques, é necessário, por exemplo, evitar objetivos militares dentro ou perto de áreas densamente povoadas. Segundo o CICV, também pode incluir “a evacuação temporária de civis, ou pelo menos permitir a sua saída, de uma área sitiada onde as hostilidades estão ocorrendo”.
Regras internacionais
E onde estão estabelecidas essas regras?
As normas do Direito Internacional Humanitário estão previstas principalmente nas Convenções de Genebra de 1949 e em protocolos adicionais, além de tratados internacionais que proíbem o uso de determinados meios e métodos de guerra e protegem algumas categorias de pessoas e objetos contra os efeitos das hostilidades.
Além do que está estabelecido nesses documentos, parte das regras nessa área já são uma “prática geral aceita como direito”, como define o CICV. É considerada costume uma norma que “se tornou tão consolidada que se tornou uma prática generalizada, aceita como direito pelos Estados em questão”, explica Amparo.
Se regras relativas à guerra forem desrespeitadas, há consequências previstas.
O Tribunal Penal Internacional é responsável por julgar os crimes mais graves de interesse internacional, incluindo crimes de guerra. O TPI não julga Estados, mas indivíduos.
A jurisdição do TPI entra em ação “somente quando um Estado genuinamente não se mostrar capaz ou estiver relutante a processar indivíduos suspeitos de terem cometido crimes de guerra sobre os quais tem jurisdição”, diz o CICV.
O TPI foi criado em 1998, pelo Tratado de Roma, e entrou em vigor em 2002.
“O TPI passou a ter competência universal para julgar pessoas por crime de guerra, crimes contra a humanidade, crimes de genocídio e crime de agressão desde o ano de 2002”, diz Carolina Claro.
“Antes do TPI, a gente teve outros tribunais internacionais, mas eram tribunais de exceção – desde o tribunal de Nuremberg, tribunal de Tóquio e dois tribunais criados pelo conselho de segurança da ONU na década de 1990. Eram tribunais específicos para situações específicas”, explica a professora.