Por gerações, essas criaturas nadaram pelo oceano sem cruzar o caminho de nenhum ser humano. Algumas delas atingem até 24 metros de comprimento, pesando 90 toneladas.
Se estes enormes animais por acaso encontraram algum barco, esses encontros não ficaram registradas. Até recentemente, nem sabíamos que elas estavam lá: um grupo de baleias-azuis-anãs no Oceano Índico.
A descoberta feita em 2021 é ainda mais impressionante pela forma como elas foram encontradas. Não teríamos encontrado este grupo se não fosse pelas armas nucleares.
Mas o que as bombas atômicas têm a ver com um grupo de baleias?
A resposta está numa rede global de sensores, colocados em alguns dos locais mais remotos do mundo. Desde a década de 1990, seus operadores numa sala de controle em Viena, na Áustria, buscam detectar testes nucleares clandestinos.
Mas, com o passar dos anos, essa rede também captou muitos outros sons e estrondos por todo o oceano, solo e atmosfera – e isso se revelou um benefício surpreendente para a ciência.
A história de como as baleias azuis foram encontradas remonta à década de 1940, quando os seres humanos descobriram que podiam liberar o terrível poder do átomo.
Após o teste Trinity (primeiro teste nuclear da história, conduzido pelos Estados Unidos em 16 de julho de 1945) e o bombardeio do Japão, seguiram-se décadas de instabilidade e medo, enquanto as nações corriam para formar seus próprios arsenais e testar armas cada vez mais poderosas.
Após 50 anos, muitos governos aceitaram que a transparência era necessária.
Para evitar a escalada nuclear, o mundo precisava de uma forma de saber se alguma nação ou agente estava realizando testes não autorizados. Só então elas poderiam confiar umas nas outras.
Assim, na década de 1990, várias nações assinaram e ratificaram o Tratado de Proibição Total de Testes Nucleares (CTBT), incluindo o Reino Unido e muitas potências nucleares da Europa Ocidental. Alguns países não aderiram, incluindo China, Índia e EUA.
Embora estas resistências tenham feito que o tratado não entrasse em vigor, o processo criou uma norma global contra testes.
E, o que é crucial, também levou ao estabelecimento de uma rede capaz de detectar uma detonação nuclear em qualquer lugar da Terra.
Com sensores em todo o mundo, o Sistema Internacional de Monitoramento – gerido pela Organização CTBT em Viena – tem funcionado desde então, com mais de 300 instalações em todo o mundo. Elas podem detectar o som, as ondas de choque e os materiais radioativos de explosões nucleares.
Isso inclui mais de 120 estações sísmicas, 11 microfones hidroacústicos nos oceanos, 60 estações de "infrassom" que captam ruídos inaudíveis de frequência muito baixa e 80 detectores de partículas ou gases radioativos.
Muitas instalações podem ser encontradas em locais tranquilos e relativamente desertos.
Os EUA, por exemplo, operam uma estação na Ilha Wake, no Pacífico, um dos atóis mais isolados do mundo. Outras podem ser encontradas na Antártica.
No entanto, algumas estão um pouco mais próximas da civilização, como a rede sísmica na aldeia de Lajitas, no Texas – a 650 kma oeste de San Antonio – ou a estação de radionuclídeos em Sacramento, Califórnia.
(Aqui está um mapa de todas elas.)
Sua ampla distribuição significa que, se houver uma detonação nuclear em algum lugar da Terra, os operadores da sala de controle de Viena saberão, diz Xyoli Perez Campos, diretora da divisão do Sistema de Monitoramento Internacional (IMS, na sigla em inglês) da CTBTO na Áustria.
"Onde quer que aconteça, temos as tecnologias para detectar", diz ela.
"Se houver um teste nuclear subterrâneo, temos a tecnologia sísmica para identificá-lo. Se o teste for subaquático, temos as estações hidroacústicas. Se acontecerem na atmosfera, então temos o infrassom. E as estações de radionuclídeos nos permitem distinguir se havia um componente nuclear; essa é a prova definitiva."
De fato, quando a Coreia do Norte realizou testes de armas nucleares nas décadas de 2000 e 2010, vários sensores sísmicos do IMS captaram as ondas das explosões, confirmadas pelas análises de isótopos radioativos na atmosfera.
A rede também detectou grandes explosões não nucleares, como a enorme explosão no porto de Beirute em 2020, ou a erupção vulcânica Hunga Tonga-Hunga Ha’apai em janeiro de 2022.
Recentemente, no entanto, a rede de monitoramento nuclear IMS descobriu muito mais do que grandes explosões.
Ao longo da última década, à medida que o acesso científico aos dados se abriu, pesquisadores recorreram ao IMS para detectar eventos que de outra forma poderiam passar despercebidos.
Isso inclui o canto das baleias, mas também muito mais.
Em junho, centenas destes cientistas reuniram-se numa conferência em Viena para compartilhar suas descobertas.
Pesquisadores da Alemanha mostraram como os sensores hidroacústicos da rede podem monitorar o ruído produzido pelo transporte marítimo.
Uma equipe do Japão apresentou descobertas sobre como usaram o IMS para estudar a atividade vulcânica submarina e um pesquisador brasileiro falou sobre o infrassom gerado pela aurora boreal e aurora austral.
Outros descreveram esforços para detectar à distância a queda de geleiras em avalanche – com base em pesquisas anteriores que usaram a rede para monitorar a formação de icebergs a partir da ruptura de geleiras na Antártida.
A física Elizabeth Silber, dos Laboratórios Nacionais Sandia no Novo México, EUA, até demonstrou como os detectores do IMS captaram uma "bola de fogo que passava pela Terra" – um meteoróide maior do que 10 cm que gerou ondas de choque ao atingir a atmosfera terrestre em 22 de setembro de 2020.
Quanto às baleias-azuis-anãs – uma subespécie tropical da baleia-azul –, elas foram descobertas quando pesquisadores na Austrália decidiram ouvir um pouco mais de perto os sons do oceano usando a rede hidroacústica do IMS.
Em 2021, a especialista em bioacústica Emmanuelle Leroy, da Universidade de Nova Gales do Sul, em Sydney, e colegas analisaram o canto de várias populações de baleias no oceano Índico central.
Alguns anos antes, um novo som havia sido registrado, conhecido como "Canção de Chagos", ou "Diego Garcia Downsweep", em homenagem ao local onde foi detectado: o atol Diego Garcia, no arquipélago de Chagos.
À época, cinco grupos de baleias-azuis eram conhecidos no Oceano Índico, juntamente com populações de baleias-de-Omura. Mas não ficou claro a qual grupo a canção de Chagos pertencia.
Os cientistas sabem que cada grupo tem cantos fortemente personalizados, o que significa que podem ser classificadas em "populações acústicas", e este não batia.
Leroy e seus colegas perceberam que a rede IMS lhes permitiria estudar o canto de Chagos ao longo de quase duas décadas, em vários locais do oceano, desde o Sri Lanka até a Austrália Ocidental.
A análise concluiu que o canto de Chagos deve pertencer a uma população inteiramente nova de baleias azuis anãs.
Encontrar este novo grupo foi uma boa notícia significativa, porque baleias-azuis-anãs são muito raras. No século 20, as baleias-azuis foram caçadas até sua quase extinção, passando de estimadas 239 mil na década de 1920, para um mínimo de cerca de 360 em 1973.
Quando os arquitetos do IMS construíram sua rede de detecção, fizeram-no na esperança de que o mundo fosse um pouco mais seguro.
"O que é realmente surpreendente para mim é que estas pessoas inteligentes decidiram que os testes nucleares são um perigo para a humanidade, e não só escreveram um tratado dizendo 'vamos parar com isso', mas também criaram as tecnologias para monitorá-los. Isso é colocar a ciência e a tecnologia em bom uso pela humanidade", diz Perez Campos.
Mas mesmo com essa visão, os fundadores da rede provavelmente não previram todos os usos do IMS hoje. Suas mais de 300 estações evoluíram para que o sistema se tornasse a rede de escuta planetária definitiva.
Neste momento, em locais remotos por todo o mundo, sensores estão monitorando a humanidade e a natureza em busca de sons e estrondos que de outra forma poderiam passar despercebidos – e isso inclui uma família de baleias cantando uma canção única.
Podemos não ser capazes de observar esse grupo esquivo, mas mesmo assim elas podem ser ouvidas.