O presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) sancionou parte do projeto de lei aprovado pelo Congresso Nacional que estabelecia um marco temporal para a demarcação de terras indígenas no país.
O anúncio foi feito pelo secretário de Relações Institucionais, Alexandre Padilha, pela ministra dos Povos Indígenas, Sônia Guajajara, e pelo Advogado-Geral da União (AGU), Jorge Messias, na tarde desta sexta-feira (20/10).
O principal item do projeto, o famigerado marco temporal, foi vetado, disse o trio de ministros.
Apesar do tom de comemoração dos ministros, a decisão de Lula poderá abrir um novo embate com a poderosa bancada ruralista no Congresso Nacional. Atualmente, a bancada do agronegócio corresponde a 303 deputados federais (59% do total) e a 50 (61%) senadores, os quais pertencem a de diversos partidos e Estados do país.
Pouco depois do anúncio, a Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA), que congrega a chamada bancada ruralista, divulgou uma nota dando o tom da reação e afirmando que os vetos de Lula ao projeto "serão" derrubados pelo Congresso.
Para derrubar vetos presidenciais são necessários os votos de pelo menos 257 deputados federais e 41 senadores.
"A Frente Parlamentar da Agropecuária, bancada temática e suprapartidária [...] informa que os vetos realizados pela Presidência da República à Lei do Marco Temporal serão objeto de derrubada em sessão do Congresso Nacional", disse a nota.
O embate
O chamado marco temporal se transformou num dos principais "campos de batalha" do embate que colocou, de um lado, a bancada ruralista, e do outro, o governo e o Supremo Tribunal Federal (STF).
O marco temporal é uma tese que vinha sendo debatida no Congresso e no STF segundo a qual a demarcação de terras indígenas só poderia ocorrer em comunidades já ocupadas por indígenas quando a Constituição foi promulgada, em 5 de outubro de 1988.
Ambientalistas e lideranças indígenas rejeitavam o marco temporal sob o argumento de que muitas comunidades foram expulsas de seus territórios originais antes de 1988.
Ruralistas, por outro lado, alegam que o não estabelecimento de um marco temporal poderia causar insegurança jurídica, pois abriria o precedente para que áreas ocupadas por não indígenas possam ser reivindicadas como terras indígenas mesmo que elas não estivessem sendo habitadas por povos tradicionais antes da promulgação da Constituição.
Em setembro deste ano, o STF julgou um processo sobre o caso e derrubou, por nove votos a dois, a tese do marco temporal. A decisão foi considerada uma vitória histórica para o movimento indígena.
A bancada ruralista, por sua vez, manifestou ter interpretado a decisão do Supremo como uma intromissão do Judiciário, com o apoio do atual governo, em um assunto que estava sendo debatido pelo Legislativo.
Em reação e com o apoio dos principais líderes do Congresso, os parlamentares aprovaram um projeto de lei que estabelecia um marco temporal para as demarcações de terras indígenas.
Por ser um projeto de lei, o texto foi à sanção presidencial e Lula tinha até hoje para comunicar se vetaria ou não a matéria.
Ao longo das últimas semanas, ambientalistas e movimentos indígenas pressionaram o governo para que Lula vetasse o projeto integralmente.
Do outro lado, os ruralistas indicavam que, se Lula vetasse a matéria, os vetos seriam derrubados pelo Congresso Nacional.
Nos bastidores, havia a expectativa de que Lula vetasse apenas parcialmente o projeto de lei.
A dúvida era sobre qual seria a extensão do veto. Parlamentares da base governista defendiam que Lula evitasse se indispor ainda mais com a bancada ruralista.
Ao mesmo tempo, havia o temor de que um veto considerado "tímido" pudesse comprometer o discurso do governo que tenta se colocar como defensor da causa indígena.
Além de vetar o principal item do texto, que era o que estabelecia o marco temporal para a demarcação, Lula vetou outros dispositivos aprovados pelo Congresso — como o que previa a possibilidade de arrendamento de terras indígenas para não indígenas, o que permitia o cultivo de alimentos transgênicos nessas áreas e o que abria brechas na política de não contato com indígenas isolados.
A ministra Sônia Guajajara comemorou os vetos, apesar de o movimento indígena defender que o projeto deveria ser vetado de forma total.
"Nós podemos considerar uma grande vitória os vetos aqui apresentados pelo presidente, de reafirmar a decisão do Supremo Tribunal Federal, e de garantir essa coerência do governo com a agenda indígena, com a agenda ambiental e com a agenda internacional”, disse a ministra em nota sobre o assunto.
Reação
Do outro lado dessa disputa, o presidente da FPA, o deputado federal Pedro Lupion (PP-PR), criticou o veto de Lula e afirmou que a bancada ruralista está pronta para mais um embate com a ala governista.
"Essa decisão foi um desrespeito à maioria do Congresso Nacional. O presidente jogou para a torcida e decidiu pensando na bolha dele", disse o parlamentar à BBC News Brasil.
"Nós temos ampla maioria para derrubar os vetos e esperamos que isso aconteça logo. Temos três meses para apreciar os vetos, mas acho que vamos fazer isso bem antes", disse o parlamentar.
Em entrevista coletiva, Alexandre Padilha disse não temer uma reação dos parlamentares e que o governo estaria aberto ao diálogo com o Congresso para negociar os vetos.
"Estamos absolutamente abertos a dialogar com o Congresso Nacional e acreditamos que aquilo que foi sancionado [por Lula] abre possibilidade de diálogo [com os parlamentares] porque era coerente com a Constituição", disse o ministro.
Apesar disso, Pedro Lupion afirmou que a bancada ruralista vai continuar pressionando pelo estabelecimento do marco temporal.
Além de se mobilizar para derrubar os vetos, a FPA, disse ele, vai tentar acelerar a tramitação de duas propostas de emendas à Constituição (PECs) que tratam do assunto.
Uma delas, a PEC 48, restabelece a tese do marco temporal. A outra, a PEC 132, prevê o pagamento de indenização a proprietários que tenham suas terras convertidas em terras indígenas.
A ideia é que, por se tratar de uma PEC, as mudanças propostas não estariam sujeitas à sanção presidencial e abririam menos margem para contestação junto ao STF, uma vez que alterariam o texto constitucional.
Em meio às ameaças de reação, ambientalistas avaliam que o embate entre o governo e os ruralistas ainda está longe de acabar e que a estratégia usada pelos negociadores governistas estaria errada.
"O problema é que os negociadores do governo não podem deixar que esses temas cruciais sejam decididos pelo presidente. O ideal é que o governo negociasse esses pontos antes de os projetos serem colocados em votação. Não dá para deixar o presidente ficar entre a cruz e a espada o tempo inteiro", disse o secretário-executivo da organização não-governamental Observatório do Clima, Márcio Astrini.
A BBC News Brasil enviou questões ao Palácio do Planalto e à Secretaria de Relações Institucionais (SRI), mas não obteve resposta.