“Esta não é uma tragédia distante – os laços entre Israel e os Estados Unidos são profundos”, afirmou o presidente americano Joe Biden na terça, 10/10, em uma de suas várias manifestações desde que, no último 7/10, o grupo militante palestino Hamas lançou um ataque sem precedentes em 50 anos no sul de Israel.
Em outras declarações, Biden também disse que o apoio dos EUA à segurança de Israel “é sólido e inabalável”, “que faremos tudo para que Israel possa se defender” e que os americanos caminham “ombro a ombro com os israelenses”.
As palavras de Biden tem sido acompanhadas de ações: em quatro dias de crise, o presidente americano falou ao telefone três vezes com o primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu, ordenou o envio do mais moderno porta-aviões da marinha americana, o Gerald Ford, à região do Oriente Médio, autorizou reforços para o Domo de Ferro, o escudo anti-aéreo israelense, remeteu um navio recheado de munições que chegou ao território israelense na terça, 10/10, e decidiu despachar seu secretário de Estado, Antony Blinken, a Tel Aviv nos próximos dias. O presidente americano adiantou também que pedirá ao Congresso americano a aprovação de um pacote de auxílio militar a Israel.
Nem o tom de indignação de Biden nem sua rápida movimentação para apoiar militarmente o aliado do Oriente Médio, a quem chamou de “parceiro fundamental”, é uma novidade no cenário político dos EUA. Tampouco os 14 americanos mortos na ação do Hamas e os prováveis 20 reféns dos EUA ainda sob controle dos militantes palestinos, segundo informações do governo americano, explicam a atual reação de apoio inequívoco a Israel. Esta é uma postura americana de décadas.
Desde o fim da Segunda Guerra Mundial, Israel é o país do mundo que mais recebeu, cumulativamente, recursos dos EUA. Entre 1946 e 2023 foram estimados US$ 260 bilhões (o equivalente a mais de R$1,3 trilhão), segundo um relatório do Congresso americano publicado em março deste ano. Mais da metade desse montante foi designado como auxílio militar.
Mas o apoio dos EUA não se restringiu a atos financeiros bilaterais. Membro permanente do Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas (ONU), os EUA usaram repetidamente seu poder de veto para barrar admoestações ou sanções a Israel por suas sucessivas ocupações ao território autônomo palestino.
“Na história do Conselho, os EUA vetaram mais de 80 vezes. Em mais da metade delas, os americanos fizeram isso para blindar os israelenses de críticas internacionais. E devo mencionar que, em geral, os EUA foram o único voto (de um total de 15) contrário neste tema no Conselho de Segurança da ONU”, afirmou à BBC News Brasil Stephen Zunes, professor de política e fundador do Centro de Estudos do Oriente Médio da Universidade de San Francisco, na Califórnia.
Embora sempre tenha formalmente defendido a solução dos dois Estados - um israelense e um palestino -, na prática, os americanos pouco se moveram pra pressionar Israel por essa solução.
“Historicamente, enquanto a maioria dos países critica os ataques terroristas do lado palestino e o bombardeio israelense contra alvos civis, acreditando que é errado matar civis seja por ação de artilharia de exército, seja com homem-bomba, os EUA criticam quase que exclusivamente o lado palestino, sem mencionar Israel”, nota Zunes, que há décadas acompanha os posicionamentos americanos em relação a Israel e à Palestina.
Durante o governo do republicano Donald Trump (2017-2021), os EUA se afastaram do compromisso histórico por dois Estados e seu sucessor, o democrata Joe Biden, jamais atuou decisivamente para reabrir esta negociação. Ao contrário, Biden tem tentado ajudar na normalização das relações entre países árabes e Israel, travada há décadas justamente pela indefinição na criação de um Estado palestino, deixando a questão palestina à margem. A mais recente negociação é de um acordo de relações diplomáticas entre Arábia Saudita e Israel, cujo destino é incerto diante do novo conflito entre israelenses e palestinos.
Em suas manifestações desde os ataques do Hamas, Biden tem evitado qualquer crítica direta a potenciais excessos da contra-ofensiva israelense, já sinalizados pela ONU e pela União Europeia. Israel cortou o abastecimento de água, energia elétrica, combustível e alimentação para a Faixa de Gaza, área densamente povoada por civis e sob intenso bombardeio. “EUA e Israel são democracias. E democracias são mais fortes quando seguem a lei”, disse Biden nesta terça, no que soou como uma indireta advertência para que o aliado evite crimes de guerra.
“Os governos americanos chegam a culpar os próprios palestinos por serem mortos por Israel e já se voltaram contra a Anistia Internacional, a Human Rights Watch, o Conselho dos Direitos Humanos das Nações Unidas e mesmo o Tribunal Penal de Haia, que denunciaram a ocupação israelense na Cisjordânia como uma violação dos direitos humanos e do direito internacional. Então, de muitas maneiras, o apoio dos EUA a Israel é muito maior do que já foi dado a qualquer outro país e fere a posição americana internacional para poder criticar, por exemplo, a ocupação russa na Ucrânia”, analisa Zunes, mencionando a expansão de assentamentos judaicos em território considerado palestino em comparação com a ocupação por Moscou do território ucraniano.
Mas, afinal, quais são as origens dos “laços profundos” citados por Biden entre Israel e EUA que explicam o posicionamento americano?
Raízes históricas
Os EUA foram o primeiro país do mundo a reconhecer o Estado de Israel como uma nação soberana, em 1948. Os horrores do Holocausto, que massacrou estimados 6 milhões de judeus, geraram um contexto internacional que facilitou a fundação do Estado israelense em uma região já densamente povoada há séculos por árabes palestinos.
A demanda de parte da comunidade judaica por uma nação própria, no entanto, já existia antes do massacre produzido pelo regime alemão nazista de Adolf Hitler. Desde o começo do século 20, o movimento sionista se articulava em defesa da criação de um Estado para o povo judeu na área ocupada na Antiguidade, antes da diáspora histórica. Em 1946, EUA e Reino Unido já sugeriam a divisão da área palestina entre árabes e judeus, resolução que a ONU viria a adotar um ano mais tarde.
Ao final da Segunda Guerra Mundial, EUA e União Soviética surgiram como as grandes potências mundiais, disputando protagonismo na organização do mundo pós-guerra e áreas de influência global.
Com a maior população judia do mundo naquele momento, os EUA foram rápidos em se posicionar a favor do novo país. Atualmente, estimativas indicam que Israel possui cerca de 6,5 milhões de judeus, enquanto os EUA têm uma comunidade de cerca de 6 milhões de judeus.
Ao longo das décadas seguintes, as relações entre as duas comunidades judaicas se mostrou intensa. Uma pesquisa, feita pelo Instituto Pew Research em 2021, mostrou que 1 em cada 4 judeus americanos já morou em Israel ou esteve no país múltiplas vezes.
No mesmo levantamento, quase 6 em cada dez judeus americanos se disseram muito ou razoavelmente ligados emocionalmente a Israel. “Certamente a conexão entre as duas sociedades é um motivo válido para explicar esse apoio histórico americano”, diz Zunes.
Guerra ao Terror
Segundo Zunes, o fator empatia certamente entra também na conta do apoio. Quando Netanyahu compara o ataque do Hamas aos atentados de 11 de setembro de 2001, o maior assalto ao território americano desde a investida japonesa em Pearl Harbor, na Segunda Guerra Mundial, o premiê israelense mobiliza sentimentos poderosos nos americanos, de um trauma coletivo gerado pela derrubada de aviões sobre alvos estratégicos pela organização fundamentalista islâmica sunita Al-Qaeda.
O fato de que nos dois casos os autores das ações eram grupos fundamentalistas islâmicos também facilita a identificação da sociedade americana com o sofrimento dos israelenses.
Ao responder aos ataques, os EUA lançaram a chamada “guerra ao Terror”, usada como justificativa para as invasões do Afeganistão e do Iraque. Nos dois países, os regimes locais foram derrubados, e o que se seguiu foi uma enorme dificuldade de estabelecer novos governos e de se retirar garantindo estabilidade à área. A estratégia acabou considerada falha pelos próprios americanos e trouxe enormes custos domésticos e internacionais ao país.
Há quem veja no atual momento de Israel, avaliando uma possível incursão por terra em Gaza, como uma potencial repetição, em menor escala, da história protagonizada pelos americanos em mais de 20 anos de Guerra ao Terror.
“Se o impacto psicológico sobre os israelenses do que aconteceu (no dia 7) é semelhante ao impacto psicológico do 11 de Setembro sobre os americanos, então é imperativo que Israel não cometa os mesmos erros que os EUA cometeram na sua resposta ao 11 de Setembro”, afirmou em seu perfil no X (ex-Twitter) o professor Dox Waxman, do Centro de Estudos de Israel da Universidade da Califórnia Los Angeles (UCLA). Waxman segue:
“Em particular, a invasão do Afeganistão pelos EUA levou a duas décadas de ocupação e insurgência (e não destruiu a Al-Qaeda). Se as Forças de Defesa de Israel acabarem por invadir Gaza e derrubar o regime do Hamas, também poderão acabar por ocupar Gaza e enfrentar uma insurgência prolongada. Será mais fácil entrar do que sair, como os EUA aprenderam da maneira mais difícil”.
Minoria poderosa
Embora os judeus sejam uma minoria na sociedade americana, ela é economicamente e educacionalmente poderosa em relação à média dos cidadãos dos EUA. Outra pesquisa do Pew Research, de 2020, mostrou que metade dos judeus americanos têm renda familiar acima de US$ 100 mil anuais, enquanto entre os americanos em geral, o percentual com esta mesma renda atinge apenas 19%. E 23% dos judeus têm renda familiar superior a US$ 200 mil anuais, contra só 4% dos adultos americanos.
Além disso, 36% dos judeus americanos têm não apenas o terceiro grau completo, mas concluíram uma pós-graduação, contra 14% da população americana em geral.
Como elite econômica e intelectual, os judeus encontraram também caminho na política. Eles estão super-representados no congresso americano: na atual legislatura, 34 congressistas, ou 6,4% dos parlamentares, se declaram judeus, enquanto a parcela da população americana auto-declarada judia não ultrapassa 2%.
O grupo lobista American Israel Public Affairs Committee (AIPAC) é reconhecido como um dos mais poderosos a atuar na política americana. No ano passado, o grupo foi acusado de investir milhões de dólares nas primárias democratas para as eleições de meio de mandato do Congresso para derrotar políticos de esquerda com posicionamento pró-palestina. O grupo afirmou que sua atuação sempre foi bipartidária e em defesa dos interesses de Israel.
Ainda assim, cientistas políticos defendem que é um mito falar no voto judeu como algo decisivo, um fator de desequilíbrio capaz de mobilizar as decisões geopolíticas de Washington.
Em 2019, pouco antes das eleições que deram a Biden a vitória sobre Trump, o cientista político do Gallup Institute Frank Newport demonstrou estatisticamente que, embora o republicano parecesse muito dedicado em cativar o eleitorado judeu, parecia improvável que ele pudesse chegar a vitória apenas conquistando esta fatia do eleitorado.
“Como os judeus têm um perfil educacional mais elevado do que a média da população e como a participação eleitoral é influenciada pela escolaridade (quanto maior, mais chance de o eleitor votar), os judeus nos EUA têm uma ligeira maior participação eleitoral. Mas mesmo levando isso em conta, e admitindo que o voto judaico possa ser importante em algumas áreas específicas de alguns Estados (como Flórida e Pensilvânia), é evidente que o voto judaico não fará uma grande diferença nas próximas eleições presidenciais”, escreveu Newport, em uma análise que segue válida para o pleito do ano que vem.
Mesmo que os votos não sejam decisivos, a ressonância política das pautas pró-Israel não deve ser ignorada. E não é. “Três dos presidentes que mais avançaram a agenda sionista, Richard Nixon, George W. Bush e Donald Trump, não contaram com aberto apoio da comunidade judaica, mas nem por isso deixaram de atuar em prol dela”, diz Zunes.
Estratégia geopolítica
Há 40 anos, o secretário de Estado dos EUA Alexander M. Haig, apontado pelo então presidente Ronald Reagan, cunhou a seguinte definição sobre o aliado do Oriente Médio: “Israel é o maior porta-aviões americano, é inafundável, não carrega nenhum soldado americano e está localizado numa região crítica para a segurança nacional dos EUA”.
Para boa parte dos analistas da relação EUA - Oriente Médio, a descrição segue perfeitamente atual e a estratégia geopolítica é, na avaliação dele, a principal explicação para o apoio praticamente incondicional dos EUA a Israel.
“O Oriente Médio tem sido de central importância para os EUA, à medida que sucessivos governos perseguiram um amplo conjunto de objetivos inter-relacionados, incluindo garantir recursos energéticos vitais, afastar a influência soviética e iraniana, garantir a sobrevivência e segurança de Israel e dos aliados árabes, combater o terrorismo, promover a democracia e reduzir os fluxos de refugiados”, resumiu Kali Robinson, especialista em Oriente Médio do Council of Foreign Relations, em um artigo de julho de 2023 sobre as políticas americanas no conflito Israel-Palestina.
O Irã, uma teocracia islâmica com grande influência na região e um controverso programa nuclear, é o principal antagonista americano na região. E aliado histórico do Hamas, o grupo palestino responsável pelos ataques ao território israelense. Embora tanto israelenses quanto americanos tenham se permitido especular publicamente sobre a possibilidade de que o Irã estivesse por trás da organização e financiamento do ataque à Israel, até o momento a inteligência americana não encontrou ligações diretas entre o país dos aiatolás e o grupo militante palestino. Recentemente, o Irã estreitou laços tanto com a China quanto com a Rússia, o que aumentou ainda mais a importância de ter Israel como um enclave americano na área.
“Israel tem uma poderosa Força Aérea, eles controlam essencialmente os céus na região. São eles que ajudaram a suprimir movimentos revolucionários de esquerda e islâmicos no Líbano, na Jordânia e em outros países. Eles testam em campo de batalha os equipamentos militares americanos. O Mossad, a inteligência israelense, e a CIA têm cooperado na obtenção de informações e em operações secretas. Israel chega até a financiar armas a terceiros que os EUA, por razões políticas, não podem apoiar diretamente, como os contras da Nicarágua, a junta da Guatemala e, mais recentemente, os paramilitares colombianos. Eles desempenham quase que um papel de laranjas ou de despachantes em relação aos interesses americanos na área”, afirma Zunes.
Conexões ideológicas
Diante do cenário em que pouquíssimos assuntos são capazes de mobilizar apoio bipartidário na política americana, o suporte a Israel é, por enquanto, uma dessas raridades que congrega Democratas e Republicanos. Nos dois casos, motivos ideológicos explicam o entusiasmo.
“Entre uma geração mais velha de liberais americanos há um apego sentimental a Israel, em que israelenses são vistos como pessoas perseguidas que finalmente fundaram seu próprio Estado depois de séculos de exílio. E fundaram um país historicamente progressista, embora não recentemente e não com os palestinos, mas uma social-democracia, um estado de bem-estar generoso muito diferente das reacionárias ditaduras árabes ao seu redor”, diz Zunes.
Segundo o cientista político da Universidade de San Francisco, em alguma medida, Israel espelha o mito fundador dos próprios EUA, um país formado por colonos perseguidos religiosos que construíram com suas próprias mãos uma nova terra próspera e livre.
Essa imagem idílica do país, no entanto, têm perdido apoio entre as novas gerações. Segundo um levantamento do Pew Research de julho de 2022, enquanto 67% dos americanos com mais de 65 anos e 60% daqueles entre 50 e 64 anos têm opiniões positivas sobre Israel, apenas 41% dos americanos entre 18 e 29 anos sustentam as mesmas ideias. Entre as razões para o declínio estão as crescentes políticas religiosamente ortodoxas e autoritárias de governos direitistas, como o de Netanyahu, e o avanço contínuo de Israel sobre a Cisjordânia.
Para Zunes, porém, a rejeição do eleitorado mais jovem ao comportamento israelense não se traduziu ainda na política de Washington porque a arena política americana segue sendo dominada pelos pais e avós desses jovens.
No lado oposto do espectro político, Israel renovou seu apoio junto aos cristão evangélicos dos EUA, que representam pouco menos de ? da população do país. Esse eleitorado, majoritariamente trumpista, ajuda a explicar o apego de Trump à pauta israelense, mesmo que ele nunca tenha contado com a simpatia da comunidade judaica americana.
“Os evangélicos cristãos de direita veem a questão de Israel como uma manifestação da profecia bíblica necessária para o retorno de Jesus Cristo à Terra. Eles vêem a luta entre Israel e os palestinos como uma continuação da luta entre os israelitas e os filisteus”, afirma Zunes, referindo-se ao Velho Testamento. Fenômeno semelhante têm se repetido com evangélicos no Brasil. Lideranças evangélicas brasileiras têm tomado partido em favor de Israel e justificado posicionamentos políticos de apoio à direita bolsonarista com base em interpretações bíblicas.