Foi em um jantar em Pequim durante a visita histórica do então presidente americano Richard Nixon à China, em fevereiro de 1972, que o primeiro-ministro chinês Zhou Enlai ofereceu dois pandas gigantes aos Estados Unidos.
A viagem de uma semana, na qual Nixon se reuniu com o líder chinês, Mao Tsé-Tung, ocorria depois de mais de 20 anos de relações extremamente limitadas entre o governo americano e a República Popular da China, fundada em 1949, quando o Partido Comunista assumiu o poder.
Segundo relatos da época, em um dos eventos da agenda oficial, a primeira-dama americana, Pat Nixon, estava sentada ao lado de Zhou Enlai.
Pat Nixon fez um comentário sobre a "fofura" dos pandas, que havia visto em um passeio ao zoológico de Pequim. Em resposta, o premiê prometeu enviar um casal de presente a Washington.
Poucos meses depois, em abril daquele ano, o macho Hsing-Hsing e a fêmea Ling-Ling, apresentados pela Casa Branca como "um presente do povo da República Popular da China ao povo dos Estados Unidos", foram recebidos com uma grande festa na capital americana.
Na época, a chamada "diplomacia dos pandas", a estratégia da China de presentear os ursos a outros países como forma de aprofundar relações, já tinha centenas de anos.
O próprio governo americano já havia recebido um par de filhotes décadas antes, em 1941, como agradecimento ao apoio contra a invasão japonesa durante a Segunda Guerra Sino-Japonesa.
Mas Hsing-Hsing e Ling-Ling foram os primeiros pandas presenteados pela China comunista aos Estados Unidos, em um momento que marcava uma nova fase na relação entre os dois países, depois de décadas de tensões e isolamento.
O Smithsonian's National Zoo, o zoológico nacional, localizado em Washington, venceu uma disputa entre instituições do país inteiro e foi escolhido para ser o novo lar dos animais.
Nos mais de 50 anos desde então, os vários pandas que habitaram o zoológico sempre foram não apenas a principal atração, mas também um símbolo dos laços entre Estados Unidos e China.
Agora, porém, a capital americana se prepara para a despedida da sua atual família de pandas: a fêmea Mei Xiang, de 25 anos, e o macho Tian Tian, de 26 anos, que chegaram a Washington em 2000, e o filhote Xiao Qi Ji, de três anos de idade, nascido no zoológico durante a pandemia e cujo nome significa "pequeno milagre".
Diferentemente do casal original, os atuais pandas não foram um presente, mas estão no zoológico em um empréstimo da China, parte de uma parceria em pesquisa, conservação e reprodução que era periodicamente renovada.
Desta vez, porém, não houve renovação, e os ursos devem voltar para a China até o prazo de 7 de dezembro.
O mesmo vem ocorrendo em outras cidades e países, que não tiveram os empréstimos renovados e foram obrigados a devolver seus ursos recentemente ou terão de fazer isso nos próximos meses.
Com a partida da família de Washington, os únicos pandas restantes nos Estados Unidos serão os quatro do zoológico de Atlanta, no Estado da Geórgia, cujo acordo vence no fim do ano que vem.
Tensão crescente
Não há declaração oficial sobre o motivo de os empréstimos não terem sido renovados, mas a partida dos pandas ocorre em um momento de crescentes tensões entre Washington e Pequim em uma série de questões econômicas, comerciais, militares e diplomáticas.
A "diplomacia do pandas" e a China sofreram profundas transformações no meio século desde a visita de Nixon.
Se, nos anos 1970, o governo chinês buscava uma ofensiva de charme, presenteando os ursos a outros países "como um gesto de amizade e boa vontade", hoje a China é uma potência global.
"No início da década de 1970 a China era um país extremamente isolado. Não somente isolado dos Estados Unidos, mas também da União Soviética", diz à BBC News Brasil a especialista em política chinesa Mary Gallagher, professora da Universidade de Michigan, nos Estados Unidos.
"A diplomacia dos pandas foi usada de maneira muito eficaz para fazer a China parecer não apenas mais amigável, mas também mais familiar às pessoas. Para de certa maneira permitir que a China reingressasse na sociedade global."
Mas, segundo Gallagher, isso mudou, e agora a “diplomacia dos pandas” reflete o poder crescente da China.
“Os pandas não são mais apenas uma forma de tornar a China atraente, já que o país tem muitas outras coisas atraentes. Em vez disso, são usados como instrumento de influência.”
Tesouro nacional
Os pandas gigantes são considerados um símbolo da China e um tesouro nacional.
Relatos históricos sugerem que a estratégia de oferecer esses animais a outros governos para estreitar laços remonta pelo menos ao século 7, quando a imperatriz chinesa Wu Zetian (624 to 705), da Dinastia Tang, enviou um par de ursos ao Japão.
Após a Revolução Chinesa, a prática ganhou popularidade. Inicialmente, eram presenteados a países como Coreia do Norte e União Soviética, mas, a partir da década de 1970, o leque de agraciados se expandiu para incluir governos capitalistas, como os Estados Unidos e o Reino Unido.
Ao longo desses anos, a “diplomacia dos pandas” serviu para a China promover laços políticos e econômicos com dezenas de governos, melhorar sua imagem e projetar “soft power”, a capacidade de influenciar outros países não com coerção, mas sim por outros aspectos culturais e diplomáticos.
Os pandas muitas vezes também ajudaram o país a avançar parcerias comerciais.
Desde os anos 1980, as regras mudaram. Em vez de dar os animais de presente, a China passou a emprestá-los, em contratos de aluguel nos quais os recipientes chegam a pagar até US$ 1 milhão (cerca de R$ 5 milhões de reais) por ano.
O governo chinês se compromete a investir esse dinheiro em esforços de preservação dos animais em seu território e das florestas de bambu que habitam.
Foi nesse contexto que, em 2000, o zoológico de Washington firmou um acordo de cooperação em pesquisa e reprodução de pandas gigantes com a Associação de Conservação da Vida Selvagem da China para receber Mei Xiang e Tian Tian.
Ling-Ling havia morrido em 1992, e Hsing-Hsing, no final de 1999. Todos os filhotes do casal também haviam morrido poucos dias após o nascimento, e o zoológico corria o risco de ficar sem pandas, suas principais estrelas.
O contrato previa que Mei Xiang e Tian Tian ficariam por um período inicial de dez anos, pelo qual o zoológico deveria pagar US$ 10 milhões (cerca de R$ 50 milhões).
O montante foi arrecadado com doações privadas, e, desde então, o acordo foi renovado três vezes, a última delas em 2020, quando o prazo foi estendido até dezembro deste ano.
Pelas regras do governo chinês, qualquer filhote nascido no exterior deve ser devolvido após alguns anos, para participar de programas de reprodução, e a partida de Xiao Qi Ji já era esperada para breve, mas não a de seus pais.
Antes dele, os outros três filhotes de Mei Xiang que sobreviveram já haviam voltado à China: Tai Shan, nascido em 2005 e devolvido em 2010, Bao Bao, nascida em 2013 e devolvida em 2017, e Bei Bei, nascido em 2015 e devolvido em 2019.
Os custos para manter os pandas vão além dos milhões de dólares pagos à China e envolvem desde a construção de acomodações especiais até a alimentação, que consiste em vários quilos de bambu por dia.
Em troca, os zoológicos ganham a expectativa de atrair mais visitantes e receitas.
As parcerias ao redor do mundo são importantes para a preservação dos pandas gigantes e de seu habitat, não apenas por meio do dinheiro destinado a esses esforços na China, mas também na colaboração com cientistas ao redor do mundo.
Depois de anos classificados como espécie ameaçada de extinção, eles deixaram essa lista em 2016, mas continuam sendo considerados “vulneráveis”.
Calcula-se que existam pouco mais de 1.800 na natureza, em populações dispersas na região central da China.
O zoológico de Washington ressalta que seus cientistas “passaram 51 anos trabalhando com colegas na China para promover os esforços de conservação dos pandas gigantes sob cuidados humanos e na natureza”, e diz que a parceria com os chineses representou “uma oportunidade incomparável de estudar o comportamento, a saúde, a reprodução e a ecologia” desses animais.
Mudanças nas relações
Além de Washington, outras três cidades americanas receberam pandas emprestados da China. Mas, depois de décadas sendo renovados, estes contratos também estão chegando ao fim.
O primeiro foi o do zoológico de San Diego, na Califórnia, que em 2019 se despediu de seus pandas após mais de 20 anos de parceria.
Recentemente, outros países também tiveram de devolver seus pandas à China após os empréstimos terem expirado sem renovação, entre eles Japão e Holanda. Outros, como Reino Unido e Austrália, terão de enviar seus ursos em breve.
O fim dessas parcerias ocorre ao mesmo tempo que há uma deterioração nas relações entre a China e os Estados Unidos e outros países ocidentais, e reflete mudanças na política externa chinesa.
A lista dos pontos de tensão é grande, e inclui disputas comerciais e imposição de tarifas, rivalidades no setor de tecnologia, conflitos territoriais no mar do Sul da China, acusações de espionagem e de abusos de direitos humanos da população Uyghur, entre outros.
Além disso, a aproximação da China e da Rússia, em meio à guerra na Ucrânia, também preocupa Washington.
A Rússia foi um dos países a receber pandas recentemente, com um par de ursos enviados ao zoológico de Moscou em 2019, em um contrato válido por 15 anos.
Mary Gallagher, da Universidade de Michigan, lembra que tanto sob a liderança do presidente Joe Biden quanto com seu antecessor, Donald Trump, o governo americano “disse muito claramente que vê a China como um grande concorrente e uma ameaça ao poder dos Estados Unidos”.
“Não é apenas pela posição econômica (da China), mas também a competição militar em lugares como o mar do Sul da China, a competição diplomática sobre países no Pacífico e na América Latina”, enumera.
“A perspectiva da China é a de que os Estados Unidos veem a ascensão chinesa como algo que precisa ser contido.”
Gallagher diz que o atual momento marca um tipo de “mudança qualitativa” nas relações bilaterais. “No sentido de que já não vêem uma espécie de destino compartilhado.”
“Anteriormente, existia a sensação de que havia muita interdependência, mas que era mutuamente benéfica. Agora, por razões diferentes, ambos os lados já não consideram isso benéfico”, afirma.
Um símbolo recente da deterioração das relações foi o retorno da panda Ya Ya, que desde 2003 vivia no zoológico de Memphis, no Estado do Tennessee.
Ela foi devolvida em abril deste ano, após o fim do contrato e em meio a rumores de maus-tratos espalhados pelas redes sociais e negados tanto pelo zoológico quanto pelo governo chinês.
Desde pelo menos 2019, fotos e vídeos mostravam Ya Ya magra e com falhas no pêlo, gerando preocupação entre visitantes e defensores dos animais.
Veterinários americanos e especialistas enviados pela China garantiram que Ya Ya era bem tratada e saudável e que seu pêlo irregular era causado por problemas de pele e mudanças hormonais.
Mas o descontentamento de muitos chineses continuou e foi agravado ainda mais após a morte súbita do panda Le Le, o companheiro de Ya Ya, em fevereiro deste ano, em decorrência de problemas cardíacos. Uma campanha online na China passou a exigir a devolução imediata de Ya Ya.
“Também é possível que, dado o nacionalismo que vimos nas redes sociais (na China), (o retorno dos pandas) se trate mais de política interna”, observa Gallagher.
Em Washington, o zoológico promoveu um festival de despedida para os pandas, batizado de “Panda Palooza”.
Durante nove dias no final de setembro, visitantes acompanharam uma série de apresentações musicais, filmes e atividades especiais, além de demonstrações de caligrafia e guloseimas temáticas oferecidas em colaboração com a Embaixada da China.
“Milhões de pessoas cresceram amando Mei Xiang, Tian Tian e seus filhotes, visitando-nos em Washington e assistindo nossa Câmera dos Pandas”, diz a diretora do zoológico, Brandie Smith, referindo-se à câmera que transmite a movimentação dos animais e é acompanhada por milhões de fãs.
“Embora essa despedida seja agridoce, devemos celebrar estes ursos e o seu impacto nos fãs e na nossa compreensão, cuidado e conservação da sua espécie.”