Tensão

Por que a China está em rota de colisão com as Filipinas

Entenda por que as Filipinas e a China vivem momento de tensão - e como barco da década de 1940 faz parte da política filipina para manter controle de áreas disputadas no Mar da China Meridional.

O navio Sierra Madre tem quase 80 anos de história -  (crédito: Reuters)
O navio Sierra Madre tem quase 80 anos de história - (crédito: Reuters)
BBC
Rupert Wingfield-Hayes e Atahualpa Amerise - BBC News e BBC News Mundo
postado em 28/10/2023 20:54 / atualizado em 28/10/2023 23:23

China e Filipinas vivem atualmente o seu momento de maior tensão dos últimos anos.

Ambos os países disputam territórios no Mar da China Meridional (também conhecido como Mar do Sul da China) incluindo o arquipélago Ilhas Spratlye e o Atol de Scarborough.

Estes territórios ficam a cerca de 200 km a leste das Filipinas, que os controla. Mas Pequim reivindica as áreas como suas e tem posicionado a sua força naval nas águas ao redor.

No último domingo (22/10), um navio da Guarda Costeira chinesa atingiu intencionalmente um dos barco filipinos.

Não é a primeira vez que isso acontece - e tampouco foi um impacto violento (foi um golpe leve e sem consequências) -, mas as imagens, registadas por uma equipa de jornalistas filipinos a bordo do navio, deram a volta ao mundo.

Manila apresentou uma queixa diplomática sobre o confronto entre os dois países, cujas relações sempre foram tensas, mas se deterioraram nos últimos anos.

O navio atingido transportava suprimentos para soldados que estão estacionados em um outro barco, parado em um ponto-chave da disputa entre China e Filipinas.

E não se trata de uma embarcação qualquer: os soldados estão no Sierra Madre, um antigo navio da Segunda Guerra Mundial.

O navio de 5 nomes

Coberto de ferrugem e com buracos no casco, o Sierra Madre fica encalhado no banco de areia de Ayungin (também chamado de Second Thomas Shoal, em inglês).

Em 1997, as Filipinas posicionaram a embarcação estrategicamente no local, dentro da sua zona econômica exclusiva, a 194 km da Ilha de Palawan.

Desde então, este navio de desembarque de tanques de 100 metros de comprimento tem servido como uma peculiar base militar com a qual - para desgosto da China - o Estado filipino defende a sua soberania na área.

Hoje maltratado e decadente, o Sierra Madre tem uma longa história que remonta à intervenção americana na 2ª Guerra Mundial.

Fabricado no estado de Indiana, nos Estados Unidos, entrou na guerra no final de novembro de 1944, sob o nome de USS LST-821. Ele transportou suprimentos por toda a Ásia e Pacífico, o que lhe valeu uma estrela de batalha do Exército americano.

No final da guerra, em setembro de 1945, ele foi enviado de volta aos Estados Unidos, desativado e renomeado como USS Harnett County.

Depois de anos na reserva, voltou à ação em 1970. Os EUA o transferiram para a força naval do seu aliado Vietnã do Sul, que o utilizou como navio de transporte logístico após lhe atribuir um novo nome: My Tho.

Com a derrota dos sul-vietnamitas em 1975, o navio transportou cerca de 3.000 refugiados de Saigon para a Baía de Subic, que abrigava bases americanas a norte de Manila, na ilha filipina de Luzon.

Um ano depois passou a fazer parte da Marinha das Filipinas, primeiro com o nome de BRP Dumagat e finalmente de Sierra Madre, em homenagem à cordilheira que corre ao longo da costa nordeste de Luzon, a mais longa do país.

Nas duas décadas seguintes foi utilizado como navio de transporte anfíbio até que, já em declínio, assumiu a sua atual e mais famosa missão: proteger a soberania marítima das Filipinas contra as ambições territoriais da China.

A disputa

Após iniciar seu mandato em junho de 2022, o presidente filipino, Ferdinand Marcos Jr., abandonou as políticas de aproximação com a China de seu antecessor, Rodrigo Duterte, para se aproximar do tradicional aliado do país, os Estados Unidos.

Desde então, a antiga colônia espanhola e americana de 100 milhões de habitantes tem sido mais firme na defesa das suas reivindicações contra o gigante asiático, o que gera crises perigosas como a que ocorreu no domingo.

O Mar da China Meridional – onde estão localizadas as ilhas Spratly e Paracel – tem sido palco de diversas disputas territoriais durante séculos, mas a tensão aumentou na última década.

As extensas reivindicações da China - que incluem a disputa pela posse de bancos de areia e as águas adjacentes - irritaram os países que historicamente reivindicam essas águas, não apenas as Filipinas, mas também Vietnã, Taiwan, Malásia e Brunei.

Numa tentativa de reafirmar a sua soberania, Pequim construiu ilhas artificiais e implantou patrulhas navais na área.

Os Estados Unidos e o Japão, que não estão envolvidos conflito, enviaram navios e aviões militares para conter a China e garantir a liberdade de navegação.

Embora nunca tenham ocorrido incidentes graves, existe a preocupação de que a área possa se tornar um ponto crítico de conflito com potenciais consequências globais, uma vez que os EUA têm compromissos de defesa tanto com as Filipinas como com Taiwan, caso estes sejam atacados.

A importância destas águas

Mas por que as águas do Mar da China Meridional são consideradas tão importantes?

Em primeiro lugar, é uma rota fundamental, uma vez que mais de 20% do comércio marítimo mundial passa por ela todos os anos.

É também o lar de extensos pesqueiros onde trabalham navios de pesca de todo o mundo.

No caso dos arquipélagos Paracel e Spratly, que são desabitados, acredita-se que possam existir reservas de recursos naturais, como petróleo e gás, nas proximidades.

Contudo, a área não foi explorada detalhadamente e as estimativas se baseiam na riqueza mineral de outras regiões vizinhas.

A questionada “linha de nove pontos”

A China reivindica a maior parte do território de uma área delimitada pela chamada “linha dos nove traços”, que se estende por centenas de quilômetros a sul e a leste da sua província mais meridional, Hainan.

Em 1947, Pequim publicou um mapa antigo para apoiar as suas reivindicações, segundo o qual as ilhas Paracel e Spratly foram supostamente consideradas parte da nação chinesa durante séculos.

Os seus críticos salientam que este mapa carece de legitimidade e nem sequer inclui as coordenadas da área que reivindica, enquanto o Vietnã alega que a China nunca reivindicou os arquipélagos antes de 1940 e afirma ter controlado as áreas desde o século 17.

As Filipinas, por sua vez, argumentam a seu favor que são o país geograficamente mais próximo dos Spratlys.

Manila também está em disputa com Pequim pelo Atol de Scarborough (conhecido na China como Ilha Huangyan), uma ilhota localizada a pouco mais de 160 quilômetros das Filipinas e a mais de 800 quilômetros da costa chinesa.

A Malásia e o Brunei, por seu lado, reivindicam territórios no Mar da China Meridional que afirmam estar dentro das suas zonas econômicas exclusivas.

Em 2013, as Filipinas levaram as suas reivindicações ao Tribunal Permanente de Arbitragem de Haia, que três anos mais tarde decidiu a favor, considerando que a China tinha violado os seus direitos de soberania.

O governo chinês, no entanto, classificou a decisão como “infundada” e se recusou a cumprir.

Política filipina

O confronto entre Manila e Pequim no Mar da China Meridional já dura décadas. Mas nos últimos meses algo mudou. Os conflitos estão agora se desenrolando sob o olhar atentos dos meios de comunicação televisivos.

Nas imagens da colisão entre os dois navios do domingo passado, é possível ver uma equipe de televisão filipina lutando para filmar o momento.

Essa é a segunda vez em poucas semanas que jornalistas filipinos filmam um encontro entre embarcações chinesas e filipinas perto de um recife particularmente sensível conhecido como Second Thomas Shoal, Ayungin Shoal ou Ren Ai Reef.

Tudo isso não aconteceu por acidente. Faz parte de uma política deliberada do governo filipino para chamar a atenção para o que chamou de “força bruta” da China.

“Penso que assistimos a uma mudança significativa este ano. É o que chamo de uma campanha de transparência assertiva”, afirma o coronel reformado Raymond Powell, do Gordian Knot Center da Universidade de Stanford.

A partir de janeiro, o governo filipino começou a enviar mais vídeos dos encontros à mídia local. Durante o período do verão na região, levou diversos jornalistas, incluindo da BBC, a bordo dos seus barcos e aviões que se dirigiam para as águas disputadas.

“Foi como acender uma luz para mostrar as operações da China na zona cinzenta”, diz o coronel Powell.

A China parece ter ficado surpreendida com estas novas táticas.

Durante algum tempo, parecia que a estratégia estava funcionando, diz Oriana Skylar Mastro, do Instituto Freeman Spogli de Estudos Internacionais: “Vimos uma certa calmaria nas atividades da China”.

Com isso, Manila conseguiu fazer várias viagens de reabastecimento ao Sierra Madre.

Mas a maioria dos analistas acredita que a China se contenta em jogar um jogo a longo prazo.

Quando as relações entre Pequim e Manila estão boas, a guarda costeira da China permite que os reabastecimentos do Sierra Madre prossigam. Já quando as relações azedaram, eles agem para bloquear os navios filipinos.

Mas a avaliação geral de Pequim é que o Sierra Madre não poderá continuar na região para sempre e que, em algum momento, as Filipinas serão forçadas a evacuar os fuzileiros navais.

Durante os seis anos do governo Duterte, essa suposição parecia bem fundamentada. Mas desde a eleição de Ferdinand Marcos Jr., no ano passado, a política externa das Filipinas deu uma volta de 180 graus.

Além da reversão da aproximação com a China, fontes em Manila dizem que comida e água não são as únicas coisas que as Filipinas têm levado para o Sierra Madre nas operações de reabastecimento.

As fontes dizem que o governo filipino tem transportado discretamente materiais de construção, incluindo cimento e andaimes, com o objetivo de escorar o navio enferrujado e manter ele funcionando.

“É muito difícil imaginar como eles poderiam prolongar a vida útil do navio”, diz o coronel Powell. "Acho que estamos chegando a um ponto de crise. O fim do Sierra Madre está próximo. Ele poderá se desintegrar muito em breve."

Talvez este seja o motivo da urgência que está levando tanto Manila como Pequim a uma maior assertividade. As Filipinas estão desesperadas para manter a sua presença em Ayungen Shoal. E Pequim reitera mais uma vez o seu poder, determinado que o Sierra Madre não sobreviverá.

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