GUERRA ISRAEL-HAMAS

'Não vamos abandonar nossa gente': as freiras sul-americanas que se recusam a deixar Gaza apesar dos bombardeios

As freiras gêmeas María del Pilar e María del Perpetuo Socorro Llerena Vargas pertencem à única igreja católica de Gaza, onde centenas de civis se refugiam, incluindo crianças deficientes, doentes e idosos em cadeiras de rodas.

Foto do arquivo das igrejas María del Perpetuo Socorro (à esquerda) e María del Pilar Llerena Vargas, na única igreja católica de Gaza -  (crédito: Familia Religiosa IVE)
Foto do arquivo das igrejas María del Perpetuo Socorro (à esquerda) e María del Pilar Llerena Vargas, na única igreja católica de Gaza - (crédito: Familia Religiosa IVE)
BBC
Alejandra Martins - BBC World Service
postado em 26/10/2023 19:08 / atualizado em 27/10/2023 08:20

As freiras peruanas María del Pilar e María del Perpetuo Socorro Llerena Vargas são missionárias na Igreja da Sagrada Família na cidade de Gaza, a única igreja católica naquele território palestino.

As freiras – que são gêmeas – são missionárias do Instituto do Verbo Encarnado (IVE) e, jcom freiras de outras congregações, elas tentam ajudar mais de 600 pessoas na igreja de Gaza, incluindo crianças deficientes, doentes e idosos em cadeiras de rodas.

Horas depois do ataque do Hamas a Israel em 7 de Outubro – que deixou mais de 1.400 mortos, segundo o governo israelense, e mais de 200 foram feitos reféns –, Israel lançou uma campanha de bombardeamentos sobre Gaza.

Isso deixou mais de 5 mil civis mortos, incluindo mais de 2 mil crianças, segundo o Ministério da Saúde de Gaza, dirigido pelo Hamas.

O chefe da seção consular da Embaixada do Peru no Egito, Giancarlo Pedraza Ruiz, confirmou à BBC que a embaixada do Peru “realizou esforços para evacuar os peruanos e seus parentes estrangeiros de Gaza para o Egito”.

Pedraza Ruiz destacou que são nove pessoas no total: quatro peruanos, incluindo uma menina de seis anos, e seus familiares. Contudo, as duas freiras peruanas insistem que não sairão de Gaza.

A seguir, leia o que María del Pilar disse à BBC.

BBC - A senhora disse que a igreja não tem água encanada, nem eletricidade. Qual é a situação neste momento?

María del Pilar – Estão aqui cerca de 600 pessoas. Como o resto da cidade, não temos água. Mas temos um poço de água natural, usamos essa água para os banheiros e para lavar etc... não sabemos quanto tempo vai durar. E compramos água mineral para as pessoas beberem, pelo triplo do preço normal.

BBC - A senhora disse que compareceu ao funeral de 18 cristãos que morreram quando uma bomba atingiu a Igreja Ortodoxa de São Porfírio (Israel negou ter como alvo o edifício da igreja, e o porta-voz do Ministério dos Negócios Estrangeiros israelense, Lior Hayat, disse à BBC que o que aconteceu foi “dano colateral” depois de Israel ter lançado “um ataque à infraestrutura do Hamas que estava muito perto da igreja”). Você poderia explicar o que aconteceu?

María del Pilar - Eles morreram por causa de um bombardeio israelense; um dos quartos onde dormiam desabou. E, como consequência, morreram muitos amigos cristãos, crianças que participavam ou vinham às nossas atividades paroquiais ou frequentavam a nossa escola.

Saí pela primeira vez desde o início de tudo isto para poder acompanhar as famílias cristãs no funeral, para consolá-las um pouco, embora saiba que é muito difícil.

BBC - Onde as vítimas foram enterradas?

María del Pilar – Cada igreja aqui tem seu cemitério.

BBC - Você mencionou que naquele funeral viu imagens que jamais serão apagadas da sua mente.

María del Pilar – Sim, infelizmente é verdade. Quando você vai a um funeral, sente a dor de um filho se despedindo de um pai. Bom, a dor dos pais que se despedem dos filhos é mais dolorosa. Há famílias nas quais todos – absolutamente todos – os seus filhos morreram. E eram crianças que conhecíamos. É muito doloroso.

BBC - Vocês têm comida? Porque só foi permitida a entrada de alguns caminhões com auxílio.

María del Pilar – Graças a Deus, o Patriarcado Latino está ajudando a nós e ao próprio povo. As duas igrejas, latina e ortodoxa, estão colaborando muito bem, e isso é uma grande bênção de Deus. Estamos comprando comida, comprando colchões. É muito caro, obviamente, mas graças a Deus temos comida.

BBC - Você também está abrigando pessoas que se refugiaram na igreja ortodoxa antes da explosão de 19 de outubro?

María del Pilar – Sim, algumas dessas pessoas decidiram vir até nós porque obviamente parte da estrutura desabou. Alguns deles vieram a nós.

BBC - O consulado do Peru no Egito confirmou que está tomando medidas para permitir a partida de cidadãos peruanos e suas famílias. A senhora está disposta a deixar Gaza?

María del Pilar - Não. Nos ligaram da embaixada do Peru em Israel. E depois da embaixada e consulado do Peru no Egito, e nos disseram que tinham todas as nossas informações, que estava tudo pronto na fronteira para o momento em que quiséssemos partir.

Mas em nenhum momento nos perguntaram o que pretendíamos fazer.

Não vamos abandonar nosso povo. Moro aqui há quatro anos e esta é a minha vida. Esta é a minha paróquia. Este é o meu povo e não vou sair daqui. Eles precisam da nossa ajuda.

BBC - Mesmo sabendo que os bombardeios aumentam o risco de morrer a cada dia...

María del Pilar – Sim, tenho plena consciência disso porque ouço os bombardeios. Acredito que todos aqui na paróquia têm consciência disso. Todos estes cristãos puderam ir para o sul, para tentar se salvar, mas nenhum deles quis ir. Todo mundo queria ficar em sua igreja. Em outras palavras, quiseram estar perto do Santíssimo Sacramento, perto de Deus, e sentir-se seguros aqui.

BBC - Israel lançou avisos para as pessoas no norte de Gaza alertando que aqueles que não forem para o sul do leito do rio Wadi Gaza correm o risco de serem consideradas “cúmplices de uma organização terrorista”. Qual é a realidade para quem está aí?

María del Pilar – Dentro da igreja, há crianças deficientes.

As pessoas vieram em cadeiras de rodas, temos idosos e muitos deles não conseguem andar. Temos uma pessoa doente com câncer que fez uma cirurgia no cérebro. E temos alguns feridos da paróquia ortodoxa que estão sendo tratados aqui porque entre os refugiados também temos médicos.

Obviamente, como você poderia levar 600 pessoas, incluindo crianças, doentes e idosos? Nós não podemos. Isso realmente não pode ser feito.

E acredito que esta é uma razão humanitária que eles podem compreender, que podem compreender que não podemos nos mover.

Queremos paz, só queremos paz. Para isso temos que orar muito. O Papa convocou um dia de oração (para sexta-feira, 27 de outubro). Acredito que é hora de todos nós nos unirmos neste grande pedido de orar pela paz.

Gostou da matéria? Escolha como acompanhar as principais notícias do Correio:
Ícone do whatsapp
Ícone do telegram

Dê a sua opinião! O Correio tem um espaço na edição impressa para publicar a opinião dos leitores pelo e-mail sredat.df@dabr.com.br