O Bolsa Família deve retirar 10,7 milhões de pessoas da pobreza em 2023 — um número recorde e uma redução de quase 20% na pobreza do país, resultado do aumento do valor do benefício e orçamento sem precedentes para o programa.
Mas dos 45 milhões de brasileiros que devem permanecer nessa condição, mesmo após a reformulação do benefício, 32,5 milhões devem ser negros, ou 71% do total, segundo projeção feita em estudo inédito do Made-USP (Centro de Pesquisa em Macroeconomia das Desigualdades da Universidade de São Paulo), realizado a pedido da BBC News Brasil.
Isso significa que três em cada quatro brasileiros na pobreza ainda serão negros, comparado a uma participação de 56% de pretos e pardos no total da população, segundo o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística).
Para os pesquisadores do Made-USP, os números revelam alguns dos limites do programa social que completa 20 anos neste mês de outubro. E o fato de que, segundo eles, "o novo Bolsa Família não pode, sozinho, enfrentar todos os obstáculos estruturais a uma maior equidade e inclusão social".
"Quando você tem uma população que sofre com certas desigualdades que são questões sociais históricas, no momento que você trata essa população de forma igual, do ponto de vista de políticas públicas, você está dando um tratamento desigual", diz Luiza Nassif-Pires, diretora do Made-USP e uma das autoras do estudo, ao lado de Amanda Resende, João Pedro Freitas e Gustavo Serra.
Conforme a economista, para populações desiguais, são necessárias ações focadas, como as políticas de ação afirmativa para ampliar o acesso da população negra à educação.
Mas, para além disso, é preciso combater o racismo da sociedade e pensar em novas ações específicas para tirar as pessoas negras da pobreza – incluindo começar a discutir de maneira concreta, do ponto de vista da criação de políticas públicas, a questão da reparação histórica pela escravidão, defende a professora do Instituto de Economia da Unicamp.
Como foi feito o estudo
No estudo Do Bolsa Família ao Brasil sem miséria? Duas décadas de luta pela universalização da cidadania, os pesquisadores do Made-USP calcularam os impactos da política social nas taxas de pobreza e extrema pobreza ao longo das duas décadas de existência do programa – de 2003 a 2023.
Para isso, consideram as linhas de pobreza e extrema pobreza do Banco Mundial, utilizadas também pelo IBGE: US$ 5,50 e US$ 1,90 por dia, respectivamente.
Considerando a Paridade de Poder de Compra (PPC) entre as duas moedas e descontando a inflação medida pelo IPCA (índice de inflação oficial do país), para junho de 2023, esses valores são equivalentes a R$ 536 mensais por pessoa para pobreza e R$ 185 para extrema pobreza, calculam os economistas.
Para fazer a análise, os pesquisadores usaram a antiga Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) anual do IBGE para os anos de 2003 a 2015 e a atual Pnad Contínua entre 2012 e 2023 – realizada mensalmente em uma amostra de domicílios, a pesquisa recolhe dados sobre emprego e renda da população, entre outros indicadores socioeconômicos.
Um resultado surpreendente
Em média, o programa reduziu a taxa de pobreza em apenas 0,66 ponto percentual (p.p.) por ano entre 2003 e 2015 e em 0,89 entre 2012 e 2019, mostram os pesquisadores no estudo.
Em comparação, o Auxílio Emergencial, o Auxílio Brasil e o novo Bolsa Família – todos programas com valores de transferência mais altos – impactaram a redução da pobreza respectivamente em 4,98 p.p. (para a média dos anos 2020 e 2021), 3,58 p.p. (em 2022) e até 5,04 p.p. em 2023.
"O Auxílio Emergencial e o Auxílio Brasil retiraram, em média, 9,9 milhões de pessoas da pobreza por ano de 2020 a 2022 e o novo Bolsa Família tem o potencial de retirar 10,7 milhões de pessoas da pobreza em 2023, em contraste com 1,8 milhão de pessoas por ano resgatadas dessa situação pelo Bolsa Família entre 2012 e 2019, em média", destacam os economistas.
Os autores observam que parte do resultado surpreendentemente modesto encontrado para o efeito do Bolsa Família sobre a taxa de pobreza até 2019 se deve às linhas de pobreza escolhidas no levantamento. Outros estudos que avaliaram esse mesmo efeito no passado e apontaram resultados ligeiramente melhores usaram linhas de pobreza mais baixas, destacam os economistas.
Mas não é só isso. Como o efeito dos programas posteriores revela, o baixo valor do Bolsa Família também limitou durante anos que o programa tivesse um impacto maior em reduzir as taxas de pobreza – ainda que tenha servido para aliviá-la, além de reduzir os diferenciais de pobreza entre homens e mulheres e entre brancos e negros, conforme também mostra o estudo do Made-USP.
"O Bolsa Família começa como um programa muito mais tímido e assim tem efeito menor na pobreza", observa Nassif-Pires.
"Ele ganha ímpeto nos últimos anos, com o Auxílio Emergencial e sobretudo com o novo Bolsa Família, que tem um efeito muito grande, de uma redução quase histórica da taxa de pobreza graças a ele."
Vinte anos de programa e Bolsa Família 'turbinado'
A economista observa que outros fatores contribuíram para a redução da pobreza nesses 20 anos, como o crescimento da economia e do emprego até 2014, os aumentos do salário mínimo acima da inflação e o próprio efeito multiplicador do programa de transferência de renda na economia.
Assim, o Made-USP estima que 82 milhões (47%) de brasileiros viviam na pobreza em 2003 e quase 25 milhões (14%) na extrema pobreza.
Em 2023, esses números devem ser reduzidos a 45 milhões (21%) e 3 milhões (1,4%), respectivamente.
Sem o novo Bolsa Família, seriam 56 milhões na pobreza (26%) e quase 18 milhões (8,3%) na extrema pobreza este ano, calculam os economistas.
"Historicamente, sempre houve muita resistência ao programa Bolsa Família", diz Nassif-Pires.
"Era um programa que representava um gasto pequeno em termos de percentual do PIB e com um benefício de valor muito baixo nos seus primeiros anos, então não tinha como ter um efeito muito grande, mas combinado a outras políticas, conseguimos uma saída de pessoas da pobreza."
A diretora do Made-USP observa, porém, que houve uma mudança nos anos recentes, sobretudo durante a pandemia, com uma visão mais favorável da opinião pública quanto aos programas de transferência de renda no mundo todo.
Assim, com um benefício agora mais robusto (de R$ 600 mais valores variáveis por criança), o programa finalmente deve chegar próximo de erradicar a extrema pobreza no país, projeta.
Ainda assim, críticas ao programa ainda existem. O Banco Mundial, por exemplo, divulgou em setembro uma nota técnica defendendo um novo modelo para o programa, com o pagamento de R$ 150 por membro da família, mais R$ 150 por criança ou jovem de até 18 anos. O banco considera que esse modelo seria mais equitativo e reduziria os custos do governo federal com o programa.
Já a pesquisadora Laura Müller Machado, do Insper, avalia que o Bolsa Família em seu modelo atual desestimularia a emancipação das famílias do programa.
Ela defende um modelo em que, ao invés de um valor fixo, as famílias recebam uma complementação de renda até alcançarem o valor da linha de pobreza. E um bônus para as famílias que consigam uma renda do trabalho.
Outros críticos ao programa em seu modelo atual apontam ainda que ele favorece o desmembramento artificial de famílias para ter acesso a mais benefícios, problema que o governo tem tentado resolver com uma revisão do cadastro que tem levado ao cancelamento de milhares de pagamentos considerados indevidos.
Para os pesquisadores do Made-USP, o aumento do valor e redesenho do Bolsa Família foram passos importantes na melhoria do programa. Mas é preciso mais, dizem os estudiosos, sobretudo para atender à demanda dos grupos mais atingidos pela vulnerabilidade financeira: as mulheres e os negros.
'Crise do cuidado'
Além das políticas de ação afirmativa, combate ao racismo e reparação histórica voltadas à população negra, Nassif-Pires destaca também a necessidade de políticas de cuidado, para que mais mulheres – e especialmente as mulheres negras – possam acessar o mercado de trabalho, obtendo assim um patamar de renda maior para suas famílias.
São medidas como ampliar a oferta de creches, de instituições e serviços de cuidado para idosos e pessoas com deficiência, de ensino infantil em tempo integral, entre outras.
"O racismo sustenta o país de tantas formas que as pessoas nem percebem, que você não consegue resolver o problema do racismo sem resolver outros problemas também", diz a diretora do Made-USP, ainda comentando o fato de os negros serem 71% dos pobres e 75% dos extremamente pobres, mesmo após o aumento do orçamento do Bolsa Família de cerca de R$ 30 bilhões por ano para R$ 175 bilhões em 2023.
Nassif-Pires dá o exemplo da mulher branca que está no mercado de trabalho, se sente sobrecarregada, ganha menos do que um homem e é responsável pelos cuidados do lar. Essa mulher contrata uma pessoa negra pagando pouco e nem pensa sobre sua posição de privilégio, diz a professora da Unicamp, por sofrer com outros desfavorecimentos nesta cadeia de relações sociais.
"É essencial pensarmos numa política de cuidado", defende a economista.
Ela lembra que um Plano Nacional de Cuidados está sendo discutido pelo governo federal desde maio, quando foi criado um grupo de trabalho interministerial sobre o tema.
"Considero esse plano essencial para começarmos a desconstruir o racismo, pois atualmente a crise do cuidado é solucionada em cima de discriminação de gênero e raça. São os dois pilares que sustentam a economia do cuidado no Brasil, então você não destrói o racismo sem dar uma solução para a crise do cuidado", argumenta a pesquisadora.
Para Nassif-Pires, também é preciso garantir que o Bolsa Família agora ampliado em valor não se torne a única política de combate à pobreza, em meio às restrições orçamentárias impostas pelo novo arcabouço fiscal (conjunto de regras para limitar o gasto público e evitar o crescimento descontrolado da dívida pública, que substituiu o antigo teto de gastos).
O ministro da Fazenda, Fernando Haddad, tem argumentado que o arcabouço fiscal possibilita a volta dos mais pobres ao Orçamento e garante mais espaço para investimentos públicos.
Enquanto economistas de perfil mais fiscalista dizem que o controle fiscal de alguma maneira protege os mais pobres, que são os mais afetados pela inflação resultante de uma situação de desconfiança do mercado com relação à capacidade do governo de honrar suas obrigações.
A professora da Unicamp discorda, no entanto, desta interpretação.
"O novo arcabouço fiscal é uma política de austeridade e coloca em xeque a possibilidade de continuidade de políticas públicas essenciais, por exemplo, o piso constitucional para despesas com saúde e educação", diz Nassif-Pires.
"A Constituição não cabia no teto de gastos e continua não cabendo no novo arcabouço fiscal. Então eu tenho um pé atrás antes de comemorar que estamos mudando aquela visão negativa sobre o Bolsa Família. Vejo isso com cautela e medo de que ele se torne a única política pública."
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