"Esse sol está deixando as mulheres doentes. Ninguém consegue mais ir pra roça como fazíamos antes. Não consigo mais plantar."
É assim que Virgília Arago Almeida, de 43 anos , indígena da etnia tariana, define os efeitos da seca histórica que atingiu a Amazônia neste ano.
Segundo ela, as altas temperaturas e a falta de chuvas neste ano fizeram com que as mulheres na região do Alto Rio Negro, no Oeste do Amazonas, alterassem suas rotinas seculares de trabalho na roça, colocando em risco a segurança alimentar de comunidades inteiras.
A seca que afeta a região amazônica neste ano é considerada uma das mais intensas já registradas.
Um dos principais indicadores da sua intensidade é o nível do rio Negro em Manaus. Na segunda-feira (16/10), a régua que aponta o nível do rio registrou um novo recorde de baixa: 13,59 metros. Na quarta-feira (18/10), o rio continuou a secar e o nível baixou ainda mais: 13,38 metros.
Em outros pontos da chamada Amazônia Ocidental, composta por Amazonas, Rondônia, Roraima e Acre, os efeitos também já começam a ser sentidos.
Em Rondônia, o rio Madeira atingiu níveis históricos e fez com que a Usina Hidrelétrica de Santo Antônio, uma das maiores do Brasil, tivesse seu funcionamento suspenso temporariamente.
No Amazonas, 59 dos 62 municípios do Estado já decretaram situação de emergência. Em Brasília, o governo federal anunciou medidas como o envio de mantimentos para comunidades isoladas e a dragagem de rios para facilitar a navegação.
Mas longe dali, nas comunidades indígenas do Alto Rio Negro, os efeitos desta seca atípica vêm deixando os moradores, especialmente as mulheres, preocupadas.
Rotina alterada
A tradição entre parte dos povos indígenas do Alto Rio Negro é que as mulheres sejam as responsáveis pelo trabalho nos roçados enquanto os homens ficam encarregados da pesca e da caça.
Sob a responsabilidade delas fica a plantação e a colheita de culturas como o cará (um tubérculo semelhante ao inhame) e a mandioca, base da alimentação dos indígenas naquela região. Homens também participam do trabalho na roça, mas em número bastante reduzido.
Virgília e outras mulheres disseram à BBC News Brasil que a seca deste ano fez com que elas tivessem que mudar a forma como vinham trabalhando a roças há diversas gerações.
Uma das principais alterações foi na jornada de trabalho.
Elas contam que, normalmente, as mulheres se encaminham às roças a pé ou de barco nas primeiras horas da manhã e ficam trabalhando até o final da tarde. Agora elas afirmam que não conseguem mais suportar o sol escaldante.
"A gente não aguenta mais. Neste ano, a gente tenta fazer o nosso trabalho de 7h às 9h e depois só depois das 16h, quando o sol já está mais frio. A gente vai até onde aguenta", diz Virgília.
"Do jeito que a gente trabalha, o sol está prejudicando a nossa saúde. Está prejudicando, principalmente, o trabalho da roça. A gente vai só até certo momento porque não conseguimos aguentar mais o sol. Isso está mudando a saúde da gente", disse à BBC News Brasil a agricultora Madalena Fontes, indígena da etnia baniwa e que vive na comunidade Igarapé, no rio Içana, no município de São Gabriel da Cachoeira.
O impacto direto dessa mudança é que as roças acabam recebendo menos cuidado que o ideal, propiciando o surgimento de pragas ou mesmo diminuindo a quantidade de mandioca plantada e colhida, essencial para a segurança alimentar das comunidades.
É a partir da mandioca que os indígenas produzem diversos produtos utilizados tanto no comércio quanto na própria alimentação das suas comunidades. Entre eles está a farinha, a tapioca, a goma e o beiju.
A intensidade da estação seca já preocupa mulheres indígenas como Almerinda Ramos de Lima, 50, da etnia tariana, que vive no distrito de Iauaretê, também em São Gabriel da Cachoeira. Ele diz que os esforços para cultivar mandioca e outras espécies não têm dado certo porque o solo está muito quente e muito seco.
"As sementes não germinam. O solo está muito quente. As manivas ficam todas podres [...] Eu tenho bastante preocupação porque minhas manivas estão todas morrendo. A gente vive disso. É o nosso alimento. É nossa sobrevivência e nossa resistência", disse.
A antropóloga Lorena França explica que a morte das mudas nos roçados no Alto Rio Negro tem um impacto econômico, alimentar, mas também social e afetivo.
"Toda mulher tem uma coleção de manivas (nome comumente dado à mandioca na região Norte), pimenteiras e outras mudas. Normalmente, elas recebem essas plantas de outras mulheres. Isso significa que esses cultivos, ao final, são resultado de uma intensa rede de relações", explica.
Fogo sem controle
Outra alteração foi com relação ao uso do fogo nos roçados.
Há séculos, os indígenas utilizam o fogo para "limpar" as áreas em que irão cultivar. Essa prática manejada tem o nome de "coivara".
O fogo elimina capim ou outras ervas indesejadas e deixa o solo pronto para o cultivo de dos vegetais que os indígenas querem plantar.
"Nas roças que estão em seu primeiro ou terceiro ciclo de produção, o capim cresce com facilidade. Elas controlam o capim fazendo pequenas fogueiras. Algumas mulheres dizem que as suas mandiocas gostam do cheiro de fumaça e que isso joga um adubo na terra", conta a doutora em antropologia Lorena França, que estudou as práticas alimentares dos povos do Alto Rio Negro.
Agora, contam as mulheres, a prática ancestral da "coivara" passou a ser evitada. Com a intensidade da atual estiagem, a matéria orgânica presente nas roças ficou muito ressecada e o fogo, antes manejado com cuidado, passou a sair de controle.
"Não dá mais pra fazer as coivaras porque senão a roça toda vai queimar", disse Almerinda, do distrito de Iauaretê.
"As faíscas vão queimando muito rápido e o fogo se alastra. Uma amiga perdeu toda a roça de abacaxi dela. Eu perdi quase todas as minhas pimenteiras", contou Almerinda.
Poços secos
A estiagem prolongada na região não está afetando apenas as roças no Alto Rio Negro. Indígenas que vivem na região relataram à BBC News Brasil que até mesmo poços que abastecem comunidades com água potável secaram em meio à seca.
"Dos 10 poços que abasteciam as comunidades onde eu moro, só sobraram dois. Agora, a gente está tendo que ir ao rio pegar água para beber e fazer comida", conta Almerinda.
A situação foi confirmada à BBC News Brasil por Luiz Brazão dos Santos, coordenador do Distrito Sanitário Especial Indígena (DSEI) do Alto Rio Negro, que atende a região de São Gabriel da Cachoeira.
Segundo ele, com os rios mais secos, o risco de infecções causadas pelo consumo de água contaminada aumenta.
"As pessoas estão indo ao rio para beber água, mas ele está muito seco. Como os dejetos são jogados no rio pelas comunidades mais acima, as pessoas das comunidades mais abaixo acabam correndo o risco de se contaminar", disse Santos.
Ele relata que já há relatos de problemas de saúde como infecções e doenças de pele relacionadas ao consumo de água contaminada.
"O problema é que com o rio seco, até mesmo o trabalho das equipes de saúde fica prejudicado. Antes, uma remoção de Taracuá, no rio Uaupés, até a sede de São Gabriel (da Cachoeira) levava um dia de barco. Agora, com o rio baixo e por conta das pedras e dos bancos de areia, a gente está levando mais de dois", contou.
Causas da estiagem
Almerinda Ramos diz não ter dúvidas. "Essa seca é culpa da mudança climática", disse a indígena.
"Sou de um clã de líderes. Meu avô sempre dizia que os tempos iriam mudar e iriam piorar. E que o mundo, com o tempo iria pegar fogo. Naquela época, a gente não sabia o que isso queria dizer. Agora, a gente sabe", completou Almerinda.
Cientistas ouvidos pela BBC News Brasil nos últimos dias, no entanto, são menos categóricos.
Eles explicam que a estiagem prolongada na Amazônia é causada por dois fenômenos climáticos que estão acontecendo ao mesmo tempo e influenciando o regime de chuvas na região.
O primeiro deles é o El Niño, que aquece as águas do Oceano Pacífico. Esse fenômeno natural, que está ocorrendo de forma intensa neste ano, dificulta a formação de chuvas na Amazônia.
O El Niño teria, segundo os cientistas, afetado a estação chuvosa na Amazônia deste ano, que registrou índices pluviométricos abaixo da média.
Com menos chuva, os rios entraram na estação seca com volume menor que o normal.
O segundo fenômeno afetando a Amazônia é conhecido como dipolo do Atlântico, que é o aquecimento anormal das águas do Oceano Atlântico, especialmente nas latitudes mais ao norte, e que também reduz a quantidade de chuva na região.
O pesquisador e meteorologista do Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden), Giovanni Dolif, disse à que ainda não é possível atribuir a ocorrência desses dois fenômenos às mudanças climáticas causadas pelo homem, mas a estiagem registrada neste momento seria compatível com os modelos projetados em que há aumento da temperatura do planeta.
"Um único evento atmosférico é uma amostra pequena pra gente atribuir a um fenômeno de escala global, mas os estudos mostram que um planeta mais quente proporciona eventos extremos seja de seca como de inundações", disse o pesquisador à BBC News Brasil.
Milhares de famílias vulneráveis
Além da região do Alto Rio Negro, a situação das famílias indígenas vem preocupando autoridades em áreas como a calha do Rio Solimões, outro importante rio amazônico.
Nesta semana, o jornal Folha de S. Paulo publicou uma reportagem informando que indígenas da etnia kokama que vivem na Terra Indígena Boará/Boarazinho ficaram sem acesso a água potável e tiveram que passar a consumir água contaminada de um igarapé.
Em nota enviada à reportagem da BBC News Brasil, o Ministério dos Povos Indígenas (MPI) informou que o órgão e outras instituições identificaram a existência de pelo menos 35 mil famílias indígenas em situação de vulnerabilidade no Estado do Amazonas em decorrência da estiagem.
Ainda de acordo com a pasta, foram identificados os principais fatores que colocam essas populações em situação de vulnerabilidade: insegurança alimentar, falta de água potável e de medicamentos, impacto na economia local, condições sanitárias precárias e os incêndios florestais.
"Outro problema levantado é o relativo à logística na região devido à seca dos rios, via de transporte essencial para mercadorias, equipes de saúde, técnicos e de deslocamento para a grande parte da população indígena", diz um trecho da nota.
A pasta informou que está previsto o envio de pelo menos 20 mil cestas básicas às comunidades indígenas mapeadas e que já foi feito um pedido adicional de outras 50 mil cestas básicas à Companhia Nacional de Abastecimento (Conab) e ao Ministério do Desenvolvimento Social (MDS).
A reportagem da BBC News Brasil enviou questões ao Ministério da Saúde sobre a situação de saúde das comunidades indígenas afetadas pela estiagem, mas até o momento nenhuma resposta foi enviada.
Para Almerinda Ramos, no entanto, só uma coisa pode resolver a crise: chuva.
"Se essa seca não acabar logo, não sei o que vai acontecer", disse.
Na quarta-feira, o Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet) indicava a possibilidade de chuvas intensas na região onde Almerinda, Virgília e Madalena moram.
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