A médica brasileira Julie Schleifer foi acordada na manhã de sábado (7/10) com o som de sirenes. Era o início dos ataques do Hamas.
"Por volta das 6h30, ouvimos o alarme, acordamos as crianças e corremos todos para o quarto seguro", diz ela.
O "quarto seguro" é um cômodo construído na maioria das casas israelenses para proteger as pessoas de possíveis bombardeios.
Quando as sirenes da cidade são ativadas, é necessário que todos os moradores se dirijam para esse local em questão de segundos e permaneçam lá por pelo menos dez minutos depois que o alarme parou de soar.
"Eu moro em Israel há 16 anos e posso contar nos dedos as vezes em que ouvi a sirene", conta Schleifer.
A médica vive com a família na cidade de Hod HaSharon, que fica a cerca de 10 km de Tel Aviv e a 70 km da Faixa de Gaza.
Segundo ela, o local é tranquilo e se encontra relativamente longe das zonas de maior conflito — o que fez o som das sirenes disparadas no sábado ser encarado como algo ainda mais atípico e surpreendente.
"Quando entrei na sala segura, logo acessei os sites de notícias, mas não havia nenhuma informação."
"Em cerca de 20 minutos, começaram a aparecer os primeiros relatos e soubemos que o país estava sofrendo um ataque surpresa."
Porém, mesmo quando as notícias passaram a circular, Schleifer conta que demorou um tempo para que as autoridades viessem a público confirmar o que estava acontecendo.
"Foram horas de envios de todo tipo de mensagem por WhatsApp e Telegram. Mas ninguém sabia exatamente o que ocorria naquele momento."
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Desencontros e choque
Schleifer conta que uma amiga dela, que é enfermeira, estava de folga no sábado e foi convocada às pressas para trabalhar no Hospital Beilinson, que fica na cidade de Petah Tikva, e é um dos maiores centros médicos do país.
"Disseram a ela que o hospital todo seria transformado em serviço de emergência."
Entre policiais e militares que estavam no local, segundo o relato da enfermeira a Schleifer, já circulava a informação extraoficial de que mais de 200 pessoas haviam morrido naquelas primeiras horas.
"Recebíamos mensagens de parentes e colegas, mas ninguém sabia exatamente o que estava acontecendo. O irmão da minha sogra, que mora numa comunidade próxima da Faixa de Gaza, nos escreveu dizendo que estava preso num quarto seguro, mas não tinha ideia do que se passava do lado de fora", relata a médica.
Com o passar das horas, os relatos foram se avolumando e ganharam a confirmação oficial das autoridades israelenses.
"São histórias terríveis, que só esperávamos ver nos piores filmes", desabafa Schleifer.
"Agora, 72 horas depois do ataque, começamos a fazer as conexões. 'Nossa, essa vítima é irmão do meu colega de trabalho, aquela outra é filha da minha vizinha'. Tudo está muito próximo da gente."
"Uma moça que trabalha comigo contou-me sobre um sobrinho dela, morto aos 20 anos em 2006, no Líbano. Passado algum tempo, a então namorada dele casou-se com outro rapaz — que foi morto neste sábado. Infelizmente, vamos escutar muitas outras histórias assim", lamenta ela.
Schleifer explica que algumas comunidades israelenses mais próximas da Faixa de Gaza, que foram invadidas pelos integrantes do Hamas, até possuíam um esquema de segurança próprio.
"Mas essa primeira linha de defesa, composta na maioria por jovens desarmados, foi desmontada. Ninguém sabe o que aconteceu com eles, se estão mortos ou foram sequestrados."
"Eles [os combatentes do Hamas] entraram nas comunidades e mataram bebês, crianças e idosos. Não há nenhuma lógica, nenhum critério nessa ação."
"Eu geralmente sou uma pessoa muito positiva, e tento minimizar as coisas, dizer que somos mais fortes. Mas, desta vez, fiquei assustada", confessa a médica.
Mudanças na rotina
Schleifer não atua diretamente com serviços de emergência. Especialista em Medicina da Família, ela trabalha para a Clalit Health Services, um dos quatro "planos de saúde" disponíveis em Israel. No país, todos os cidadãos são obrigados a ter um seguro médico.
E, nesses primeiros dias após o ataque surpresa do Hamas, a rotina de trabalho da brasileira — e de muitos profissionais da saúde que atuam no país — virou de cabeça para baixo.
"Eu atendo uma zona central de Israel, que não costuma estar envolvida nos conflitos no sul ou no norte."
A médica diz que, após o ataque surpresa do Hamas, milhares de israelenses foram deslocados da zona do conflito.
"Só entre anteontem e ontem, já chegaram mais mil habitantes do sul na nossa região. Eles foram colocados em três ou quatro hoteis."
"Daí nós precisamos montar pontos de atendimento, não apenas de emergência. Essas pessoas saíram de casa às pressas, às vezes sem documentos. E algumas delas necessitam de remédios para pressão alta, diabetes e outras doenças crônicas. Outras carecem do apoio de um psicólogo ou de um assistente social", aponta Schleifer.
A médica conta que, em Israel, o prontuário médico do paciente não pode ser acessado por qualquer profissional de saúde — apenas por aqueles que realizam o acompanhamento.
Só que, por causa do conflito, esses prontuários estão disponíveis a todos os especialistas agora, para facilitar o atendimento e a prescrição de tratamentos. "Há pouco, precisei emitir uma receita para um indivíduo que necessitava de antidepressivos", conta a médica.
Schleifer destaca que os serviços de saúde do país estão se organizando para absorver um possível aumento da demanda nos próximos dias e semanas.
"Há uma preparação para um momento de guerra. Pacientes que estavam internados, mas tinham condições de ir para casa, receberam alta. Cirurgias eletivas [em que não há urgência] foram canceladas. Ambulatórios estão fechados para dar foco no atendimento de emergência", exemplifica ela.
A médica explica que os hospitais de grande porte possuem planos para converter rapidamente áreas do subsolo, que ficam protegidas de bombardeio, em leitos de emergência.
"O Hospital Beilinson, por exemplo, fez um treinamento recente para um cenário desses. Se a guerra piorar, eles conseguem transformar um estacionamento num local para cerca de 700 leitos", detalha ela.
Dilemas e futuro
Em meio ao caos, a brasileira avalia que levará muito tempo para que o país — e as próprias pessoas — possam retomar a normalidade.
"Em algumas comunidades ao redor de Gaza, parece que 10 a 20% da população foi morta ou sequestrada. Muitas famílias perderam um ou dois membros", informa ela.
"Vai demorar para conseguirmos nos recuperar. E aqui não falo apenas da parte física, mas também moral e psicológica."
"Há uma sensação muito grande de insegurança", relata ela.
"Ainda não é momento para isso, mas certamente precisaremos refletir onde o Exército, o governo, os sistemas de inteligência e nós mesmos, enquanto cidadãos, falhamos ao não vermos os sinais de alerta de um ataque."
Schleifer também relata que enfrenta outro dilema pessoal muito grande.
"Eu e meu marido somos médicos e entendemos que Israel precisa de nós agora."
"Mas temos dois filhos pequenos."
"Se eu puder, eles não ficarão aqui agora. Minha família está toda no Brasil, então posso mandá-los para lá e ficar tranquila."
"Mas é um dilema muito grande: como pegar meus dois filhos e dizer 'vocês vão ficar bem'?", questiona ela.
"Há muitas famílias passando por essa situação agora."
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