Religião

Por que tantos evangélicos defendem Israel?

Uso de símbolos como a estrela de David ou a bandeira de Israel em eventos evangélicos no Brasil se tornou comum nos últimos anos, especialmente entre grupos religiosos ligados ao bolsonarismo.

Uso de símbolos como a estrela de David ou a bandeira de Israel em eventos evangélicos no Brasil se tornou comum nos últimos anos, especialmente entre grupos religiosos ligados ao bolsonarismo -  (crédito: Reuters)
Uso de símbolos como a estrela de David ou a bandeira de Israel em eventos evangélicos no Brasil se tornou comum nos últimos anos, especialmente entre grupos religiosos ligados ao bolsonarismo - (crédito: Reuters)
BBC
Letícia Mori - Da BBC News Brasil em São Paulo
postado em 10/10/2023 10:08 / atualizado em 10/10/2023 10:16

Líderes evangélicos do Brasil saíram em defesa de Israel nesta semana, diante do atual conflito com o Hamas em Gaza, na Palestina. O apoio - que não se resume a uma comoção em favor das vítimas, mas defende o Estado israelense e suas políticas - não é inesperado. O uso de símbolos como a estrela de David ou a bandeira de Israel em eventos evangélicos no Brasil se tornou comum nos últimos anos, especialmente entre grupos religiosos ligados ao bolsonarismo.

Mas o apoio a Israel e suas agendas não é restrito somente a evangélicos bolsonaristas ou igrejas neopentecostais, explica a antropóloga Jacqueline Teixeira, professora da UnB. "Você vai encontrar esse apoio também em igrejas do protestantismo histórico, que imigraram dos Estados Unidos", explica.

O apoio tem um fundo religioso, explicam pesquisadores ouvidos pela BBC News Brasil. Uma das bases teológicas é uma corrente muito difundida que enxerga Israel como uma espécie de “relógio do fim do mundo”.

Além disso, há toda uma identificação dos evangélicos com o Antigo Testamento da Bíblia, que trata basicamente da história sagrada do povo israelita. “Se confunde o povo de Deus histórico, a nação de Israel do velho testamento, com o Estado moderno de Israel, com a política sionista”, afirma o pastor e teólogo Alexandre Gonçalves.

Apesar do fundo religioso, afirma o teólogo Sergio Dusilek, ex-presidente da Convenção Batista Carioca, a maneira como muitos líderes têm se posicionado sobre o assunto nos últimos anos tem um forte caráter político. Eles têm usado interpretações de conceitos do antigo testamento para se inserirem no meio político.

“Embora acredite que Bolsonaro mesmo não esteja nem aí para esse movimento de apoio ao Estado de Israel, ele fez a leitura correta (e esperta) de que muito da liturgia praticada em muitas igrejas evangélicas incorporou elementos judaicos”, explica Dusilek, que também é pesquisador do Núcleo de Estudos e Pesquisa em Filosofia da Religião, da Universidade Federal de Juiz de Fora. “O que Bolsonaro fez foi colocar um holofote institucional em uma situação que já estava posta.”

Se o apoio à Israel e à agenda política do país já existia muito antes de Bolsonaro se tornar influente entre evangélicos, o bolsonarismo trouxe uma novidade para esse apoio, segundo Teixeira: o discurso bélico-religioso. Ou seja, a ideia de que uma disputa entre o bem o mal justificaria o uso da violência.

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Sua pesquisa tem apontado para "uma aposta numa naturalização da violência ou da guerra."

"Tem me chamado a atenção a tentativa de construção de uma justificação ética para os bombardeios, para as políticas de violência e de guerra que Israel tem lançado sobre o povo palestino", explica Teixeira.

A naturalização entre religiosos de medidas como restrição de comida e água para os palestinos, seria, segundo a pesquisadora, resultado de uma "circulação mais preeminente de imagens do bolsonarismo no contexto das igrejas".

"Isso de alguma maneira permitiu uma naturalização um pouco maior dos enquadramentos de guerra e da da desumanização", diz ela.

‘Relógio do fim do mundo’

A ideia de que Israel de hoje como uma espécie de “sinal divino” para o cristianismo vem de uma teologia protestante que começou a surgir no início do século 19, explica Alexandre Gonçalves, quando um período de crise econômica e escassez deu origem a correntes evangélicas voltadas para a interpretação de profecias e previsões sobre o apocalipse.

“Havia uma interpretação de que, antes do fim do mundo, Deus faria com que o seu povo voltasse para a terra prometida, isso seria um sinal”, explica Gonçalves.

A criação do Estado de Israel em 1948, diz ele, foi entendida por essa corrente como esse sinal de que o fim do mundo está próximo. Ou seja, o relógio do apocalipse teria sido disparado a partir da criação do Estado de Israel, explica Dusilek, e seria necessário prestar muita atenção em tudo o que acontece nesse local.

Para essa corrente, que Dusilek define como ‘sensacionalista’, a região é entendida como uma espécie de campo de batalha do fim do mundo. “Ela localiza o fim do mundo em Jerusalém, onde haverá o grande Armagedom, a batalha final entre a luz e as trevas, entre Deus e seus anjos por um lado, e o Diabo e seus demônios por outro lado”, explica Dusilek.

Essa corrente teológica é parte de uma teoria chamada “dispensacionalismo” e é muito popular - ela é difundida tanto entre evangélicos neopentecostais quanto entre seguidores de correntes de protestantismo histórico mais adeptos a um fundamentalismo cristão, afirma o teólogo.

“Muitas vezes, mesmo que a pessoa não conheça essa corrente teológica ou saiba o nome, ela adere a esse pensamento, acaba assimilando essa ideia, que é bastante popular no Brasil”, afirma o pastor e teólogo Kenner Terra. Para essa corrente, explica Terra, sua posição em relação a Israel definiria se você é fiel ou não o povo de Deus.

Importância teológica

Para o teólogo Guilherme Carvalho, a questão de Israel e do judaísmo é importante para os cristãos mesmo entre quem não segue a teologia do dispensacionalismo, porque o judaísmo está na origem do cristianismo e existe toda uma discussão teológica sobre o papel da nação judaica "nos planos divinos".

“Existe um hipocrisia em dizer que Israel não tem nada a ver” com discussões relevantes para o cristianismo, diz Carvalho.“É claro que o Estado de Israel não representa o Reino de Deus, não é o Israel bíblico. Mas o Estado moderno de Israel é uma reencarnação histórica das lutas do povo judeu.”

Na sua visão, isso subsidia a ideia de que o povo judeu é importante para Deus, mas não deveria resultar em apoio sem questionamentos ao Estado de Israel.

“A existência do povo judeu - que no mundo de hoje envolve sua existência como Estado de Israel - é uma das estruturas de plausabilidade da igreja cristã. Isso significa apoio incondicional a Israel? Não. Mas significa um compromisso especial com esse povo.”

Questão política e religiosa

No Brasil, o apoio de líderes evangélicos a Israel também está ligado a uma adesão a valores e símbolos do Antigo Testamento, segundo Dusilek.

Segundo o teólogo, além de possibilitar a justificativa da chamada Teologia da Prosperidade (onde os servos de Deus seriam recompensados com bens materiais), o Antigo Testamento também traz noções que ajudam algumas lideranças evangélicas a se inserir no espaço público e na política.

“É no primeiro testamento que está a noção de territorialidade, de governo, de uma ação política, teocrática até. Neste sentido, tal apoio ganha um caráter mimético e balizador”, afirma Dusilek. “A questão é que essa inserção se dá com interesses governamentais.”

É por isso, que para ele, o apoio de evangélicos a Israel na verdade tem um fundo que é até mais político do que religioso.

“O apoio, e aí voltamos ao cerne do fundamentalismo, é de fundo político sob o verniz religioso. A ideia subjacente de certos líderes, ao que parece, é de instaurar um 'evangelistão'. O primeiro testamento, então, funciona como base desse ideário.“

A antropóloga Jacqueline Teixeira, da UNB, afirma que é importante lembrar que a centralidade do Antigo Testamento também acompanhou movimentos missionários nos séculos 18 e 19.

"Surge uma inspiração protestante muito significativa de constituir uma relação com trechos específicos do Antigo Testamento. As promessas, as batalhas enfrentadas pelo povo de Israel, o período de escravização do povo de Israel", explica. Desses momentos vem a ideia de que a libertação do povo resultaria na criação de um estado, um país.

"Uma nação eleita e consequentemente, a constituição dessa nação seria fruto do cumprimento de uma promessa divina", explica.

Para Teixeira, se trata de um caso em que religião e política andam cruzados.

"Existe um repertório teológico em que se espera a instauração de um reino divino e consequentemente o cumprimento de algumas promessas divinas", explica ela. "E parte do comprimento dessas promessas está totalmente relacionado à construção de uma gramática política, que garante uma centralidade para a ideia de Israel como uma nação escolhida por Deus", diz ela.

Alexandre Gonçalves afirma que a noção de que Israel hoje representa os valores de uma “sociedade ocidental judaico-cristã” também foi muito difundida entre conservadores evangélicos a partir da ideia de uma guerra cultural entre esquerda e direita.

“Eu vi muitos jovens da igreja ouvindo o (escritor) Olavo de Carvalho, que difundia essa ideia de guerra cultural”, conta Gonçalves. Por essa perspectiva, defender Israel seria defender esses valores.

Para Kenner Terra, a corrente teológica do dispensacionalismo foi cooptada por tradições conservadoras evangélicas e sionistas, muitas vezes ligadas a um fundamentalismo cristão, para quem essa confusão entre a nação histórica e o Estado moderno de Israel é interessante.“É uma teologia que tem origem nos EUA, país que é aliado histórico de Israel”, afirma o teólogo.

Terra critica esse apoio incondicional que muitos líderes evangélicos dão a Israel hoje.

“É um apoio que ignora uma série de perspectivas históricas, como os tratados internacionais que Israel rompeu, os territórios que tomou e a forma como tratam os palestinos.”

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