Quem compara a vida de motoboy na Inglaterra com a experiência de exercer a mesma atividade no Brasil diz que encontrou no Reino Unido mais segurança e retornos financeiros bem maiores.
"Só por um milagre teria o mesmo ganho no Brasil", diz Jorge*, brasileiro que trabalhou como entregador de aplicativo em ruas paulistanas e inglesas.
Ao mesmo tempo, quem compara a vida de motoboy na Inglaterra com a experiência de exercer a atividade no mesmo país há alguns anos diz que condições e pagamentos pioraram.
"Não se faz mais dinheiro como antes", afirma Jéssica de Oliveira, que trabalha há mais de uma década como entregadora. "Ainda paga as contas, mas não vejo meu futuro em aplicativo por muito tempo."
O crescimento do trabalho por meio de plataformas, como as de transporte de passageiros e entrega de comida, tem levado governos e cortes judiciais do mundo todo a discutir regras para a relação entre empresas e trabalhadores da área – inclusive no Brasil (leia mais abaixo).
Isso acontece depois que o número de plataformas digitais de trabalho quintuplicou em todo o mundo na última década, segundo relatório de 2021 da Organização Internacional do Trabalho (OIT).
No Reino Unido, em uma decisão que ficou conhecida mundialmente, a Suprema Corte decidiu em 2021 que motoristas do Uber eram "trabalhadores", categoria profissional no Reino Unido que faz com que tenham direito a salário mínimo, férias e aposentadoria. A decisão, restrita aos motoristas, não incluiu motoboys.
Embora faltem estatísticas oficiais detalhadas, dados citados por especialistas incluem a estimativa de que, no Reino Unido, 7,25 milhões de pessoas trabalhavam na chamada gig economy (ou seja, atuando por meio de plataformas diversas, não apenas de transporte) no fim de 2022, segundo dados compilados pela plataforma de RH StandOut CV.
Na prática, como é ser motoboy brasileiro na Inglaterra – onde basta caminhar alguns quarteirões em Londres para cruzar com grupos de brasileiros que fazem entrega de comida em motos e bicicletas?
A seguir, veja os relatos de Jorge, que acabou de voltar ao Brasil após um ano e meio no Reino Unido; Jéssica, que trabalha com entrega na Inglaterra há 13 anos; e Thiago, que recentemente deixou de ser exclusivamente motoboy para ter como atividade principal um trabalho registrado no país.
Ganhos maiores
O motoboy Jorge, de 45 anos, retornou a São Paulo depois de uma temporada de mais de um ano na Inglaterra – onde conta ter conseguido, na mesma atividade, ganhos que não consegue no Brasil.
Um motivo que o impulsionou a trocar as ruas paulistanas pelo Reino Unido foi exatamente a necessidade de aumentar a renda da família.
“Meu pai, que faleceu em 2022, tinha uma doença rara no pulmão e, no fim, usava dois cilindros de oxigênio por semana, que custava R$ 300. Aqui (em SP), não tinha como eu manter isso. Mas em um dia de trabalho na Inglaterra eu comprava dois oxigênios.”
Os valores que um trabalhador de entrega ganha dependem, além da quantidade de horas trabalhadas, de quanto o trânsito está fluindo, do dia da semana (de sexta a domingo, há mais pedidos), da época do ano e das condições de temperatura daquele dia (em dias de chuva e de frio, os pedidos aumentam).
Jorge e outros motoboys ouvidos pela reportagem relataram que gira em torno de 100 libras (mais de R$ 600) o valor de um dia de trabalho para quem atua exclusivamente nessa atividade por cerca de 12 horas diárias.
O valor, segundo eles, pode chegar a 200 libras (R$ 1,2 mil) em um dia de muito trabalho em um fim de semana de inverno (época em que, segundo eles, a quantidade de pedidos é muito maior).
Desse montante, são descontados os gastos com o veículo, como combustível e manutenção. "Minha meta era de 120 libras, para ficar com 100, porque era 10 de gasolina e 10 de cigarro."
"Para fazer R$ 600 no Brasil, só um milagre. O máximo que eu consigo trabalhando a mesma quantidade de horas no Brasil é R$ 200."
A remuneração média por hora em entrega estimada no Brasil é de R$ 23, segundo estudo divulgado pela Associação Brasileira de Mobilidade e Tecnologia (Amobitec).
A demanda mais alta pelo trabalho dos motoboys no inverno, quando os moradores saem menos de casa, vêm com um preço sentido na pele na Inglaterra.
“Nunca passei tanto frio na minha vida – meus pés doíam, meu pé nunca ficou quente nesse lugar no primeiro ano. Depois, comprei uma meia elétrica que me indicaram. Sofri demais com o frio.”
Ele diz que, no exterior, conseguiu comprar produtos que não poderia no Brasil. “Nunca que eu compraria jaqueta da mesma marca que comprei na Inglaterra – paguei 260 libras (R$ 1.580) e aqui custa R$ 3 mil”, diz.
“Aqui você trabalha o mesmo tanto de horas, mas não consegue conquistar as coisas que conquista na Inglaterra”, diz. “Você vai ao mercado lá, tem vontade de comer uma coisa e não precisa ficar escolhendo – você pega e compra. Tem um sorvete que experimentei aí, 5 libras (R$ 30), que aqui custa R$ 54. Também comprei um iPhone – eu não teria como comprar iPhone 13 Pro Max no Brasil.”
Outro fator que deixa saudades no brasileiro é a sensação de segurança que ele tinha, quando comparada à que sente em São Paulo. “Aqui em SP, os caras vêm com revólver, mão armada, para te assaltar”, diz. “Lá (cidade inglesa), graças a Deus o perigo são as raposas. Se ela bater na scooter, que a roda é muito pequena, você cai.”
Apesar da dificuldade imposta pelo frio, Jorge diz que foi a língua sua principal barreira. Chegou ao Reino Unido, nas palavras dele, sabendo inglês suficiente apenas para contar até dez.
“Foi muito sofrimento, porque quando você faz entrega, os aplicativos pedem código para o cliente (informar para o motorista). Aí já viu. A sorte é que, na minha experiência, 90% dos clientes eram muito cordiais, mesmo você não falando inglês. Nunca fui maltratado – diferente do Brasil, onde às vezes o pessoal é meio ignorante quando você atrasa”, diz.
Para exemplificar o avanço na língua, ele compara as experiências ao comprar café na Inglaterra na chegada e na partida.
“Quando cheguei, não sabia que tinha que pedir café preto (black coffee, ou café sem leite). Aí a atendente perguntava se eu queria com alguma coisa e eu não entendia o que ela falava. Ela pegou um galão de leite e sacudiu”, diz.
“Aí, antes de ir embora, consegui pedir um salgado e um café, e entendi que ela me perguntou se eu queria frio ou quente. Pensa numa alegria que fiquei com uma coisa simples – foi uma vitória muito grande”, diz ele, que conta ter voltado ao Brasil devido à saudade da família que havia ficado por lá.
'Não se faz mais dinheiro como antes'
A mineira Jessica de Oliveira, de 32 anos, acumula experiência com entregas de moto no Reino Unido desde 2015, quando deixou de ser chef de cozinha para trabalhar com delivery.
“Tava cansada da cozinha e queria trabalhar para mim. Sempre fui motoboy, sempre gostei de moto.”
Inicialmente, ela entregava encomendas, por meio de uma empresa, e recebia 9 libras (R$ 55 na cotação atual) por entrega. Depois disso, conheceu a entrega de alimentos por meio de aplicativos.
“Entrega de comida sempre foi menos, uma média de 6 pounds por entrega. Antes, pagavam bem mais que hoje em dia, tinha corrida que recebia 10 libras. Hoje em dia, não tem mais esse valor”, diz. “Não se faz mais dinheiro como antes. Mas sempre é mais que o Brasil.”
Ela – que se formou em gastronomia no passado e hoje estuda direito – resume que o trabalho com delivery “ainda paga as contas”. Mas diz que não vê seu futuro em aplicativo “por muito tempo”.
As condições pioraram nos últimos anos, na avaliação dela. Além dos ganhos terem diminuído, diz que a sensação de segurança piorou. “Já tem gente sendo assaltada com faca para pegar a moto. Antes não tinha isso. Ninguém ia roubar moto na sua mão. Isso já chegou ao Reino Unido. Preciso ter um futuro melhor.”
A brasileira morou dez anos em Londres – onde define o trânsito como “uma loucura” – e agora vive há três em Brighton – “mais tranquilo”.
Além das dificuldades enfrentadas pelos colegas homens, as mulheres nessa atividade precisam lidar com dificuldades adicionais, relata Jessica.
“Assédio tem muito, inclusive pelos motoristas que ficam nas ruas, – e pode ser até mesmo brasileiro. Às vezes entra uma moça nova e, se ela for muito bonita, é assediada pelos outros motoristas. Acontece bastante também quando você entrega álcool ou cigarro, porque o aplicativo pede (para o entregador checar) código e identificação do cliente. Se o cliente tiver drogado, bêbado ou algo do tipo, já aconteceu agressão verbal ou até física.”
“Uma amiga que trabalhava na minha área foi falar para o cliente que não poderia entregar a ordem (sem a identificação), ele tomou a ordem da mão dela e empurrou ela no chão. Quando chamamos a polícia, disseram que não podiam fazer nada.”
Jessica diz que considera que seriam benéficas regras para trabalhadores dessa área. Defende que é necessário continuar com a flexibilidade que hoje existe, mas argumenta que uma proteção maior para esses trabalhadores seria necessária.
'Desvalorização do serviço'
Foi durante a pandemia de coronavírus, em 2020, que Thiago Tedesco, de 39 anos, decidiu imigrar para o Reino Unido para trabalhar como motoboy para entrega por aplicativos.
Ele trabalha com moto no Brasil desde 2008 – antes dos aplicativos, tinha um trabalho registrado também como motoboy – e diz que sempre teve planos de morar fora.
Quando um amigo que vivia na Inglaterra contou que os ganhos tinham subido para os entregadores durante a pandemia e que a demanda por entrega havia aumentado muito, Thiago entendeu que seria o momento.
“Já tinha planos de vir e aproveitei o momento financeiro, que estava em alta aqui. E, no Brasil, estava aquele caos que a gente sabe.”
Entre os trabalhadores do delivery, é consenso que o período da pandemia propiciou maiores retornos financeiros para o trabalho deles. Um conjunto de fatores explica: além da maior demanda devido aos confinamentos, as vias sem trânsito (o que reduziu tempo de entregas) e o fato de que restaurantes muitas vezes operavam exclusivamente com entrega (reduzindo o tempo de espera).
Três anos após ter chegado ao Reino Unido e de uma breve temporada na Itália, Thiago faz o balanço de que “valeu à pena na época financeiramente” e diz que “conseguiu pôr a vida em ordem”.
“Se não fosse o poder de compra e a segurança, eu ficaria no Brasil. Mas aqui a qualidade de vida é melhor.”
De 2015 até meses atrás, a atividade principal de Thiago era o delivery – mas neste ano achou que valia mais a pena migrar para um trabalho registrado e manter as entregas como um complemento no orçamento.
“No verão, o delivery dá uma caída e pós-pandemia os ganhos no meu estilo de serviço não estavam sendo mais compensadores. Aí arrumei serviço registrado porque não estava ganhando o que gostaria. A desvalorização do serviço aqui e no Brasil é parecida, porém aqui a libra camufla isso, porque o poder de compra da libra é grande”, diz ele, que foi contratado para equipe de limpeza por uma universidade.
“No começo, achava que não ia conseguir cumprir horário pelo tempo que tive de flexibilidade. Nesse quesito, foi bem tranquilo. O que me fez decidir foi a garantia do salário do fim do mês, saber o que vou ganhar, ter férias, stress psicológico menor, porque sei o que vou ganhar – faça chuva faça sol. Na ponta do lápis, se analisar os gastos com moto, hoje ganho igual ou mais sem a despesa na moto.”
Agora, Thiago e a família planejam a mudança da esposa e dos filhos – gêmeos de 7 anos e uma menina de 5 anos –, que ficaram no Brasil. “Quando minha família tiver aqui e minha esposa tiver trabalhando, vou diminuir drasticamente o tempo de trabalho (com delivery). Se eu ganhasse bem mais do que ganho hoje, pararia (com delivery).”
Sobre a falta de proteção para a categoria, Thiago diz que, desde que vivia no Brasil, priorizou pagar seguro “top” para casos de queda e seguro de vida. “Muitos acham besteira pagar um seguro, mas tenho 3 filhos, eu não posso falhar.”
Cadastro em plataformas
Em sua página sobre entrega no Reino Unido em português, o Deliveroo – empresa de entrega citada por todos os entrevistados, diz que os requisitos para se cadastrar são: scooter, bicicleta ou carro (com licença e seguro), equipamento de segurança (ex: capacete), smartphone com iOS 13.6/Android 6 ou superior, documento que comprova seu direito de trabalhar como autônomo no Reino Unido, e ter 18 anos ou mais.
A página da Uber no Reino Unido – outra empresa citada pelos entrevistados – também traz uma relação de documentos exigidos, a depender do veículo usado.
A BBC News Brasil procurou a Associação Brasileira de Mobilidade e Tecnologia (Amobitec) para questionar se há um entendimento geral sobre as exigências para o cadastro no Brasil, e a associação informou que “os processos variam”.
A Uber no Brasil informou que as exigências para cadastro dependem de legislação local e que a empresa segue as regras de acordo com país ou cidade.
Regras para a relação entre trabalhadores e aplicativos no Brasil?
A discussão sobre o que devem ser as regras do trabalho para plataformas vem crescendo no Brasil, onde o Ministério do Trabalho discute com plataformas e trabalhadores os termos para uma proposta de regulação a ser enviada ao Congresso Nacional.
Um dos pontos sobre os quais há debate é a proteção desses trabalhadores. No Brasil, apenas um a cada quatro (23%) entregadores e motoristas autônomos paga contribuição ao INSS, segundo estudo de pesquisadores do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
Uma decisão judicial recente aumentou a urgência de definições sobre esse tema: a Uber foi condenada a pagar uma indenização de R$ 1 bilhão e a contratar formalmente os motoristas ligados ao aplicativo, segundo decisão que considerou que a empresa "se omitiu" em cumprir a legislação do trabalho. A Uber informou que vai recorrer (entenda mais aqui).
Em entrevista à BBC News Brasil, o diretor do escritório da Organização Internacional do Trabalho (OIT) para o Brasil, Vinícius Pinheiro, defendeu a necessidade de regulação do trabalho em plataformas e disse que novas regras não afastariam empresas do país.
“Claro que é necessário um ambiente favorável à inovação, mas não vejo a regulação e a adequação às necessidades humanas como barreiras. Pelo contrário. A tecnologia tem que servir às pessoas, e não as pessoas servirem à tecnologia”, disse Pinheiro.
*Nome fictício para proteger a identidade do entrevistado.
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