A república autodenominada de Nagorno-Karabakh (NK), no território do Azerbaijão, deixará de existir oficialmente em 1º de janeiro de 2024. Samvel Shahramanyan, presidente do enclave também conhecido como Artsakh, assinou um decreto que determina a dissolução de todas as instituições de Estado e organizações de NK. Até a noite desta quinta-feira (28/9), 80 mil dos 120 mil cidadãos armênios que viviam na região tinham atravessado a fronteira com a Armênia — o que representa 66,6% da população total. Shahramanyan anunciou que tomou a decisão com base "na prioridade da garantia da segurança física e dos interesses vitais do povo". Ele mencionou um acordo com o Azerbaijão, segundo o qual "viagens livres, voluntárias e sem impedimentos serão garantidas aos residentes" de Nagorno-Karabakh. O líder separatista também recomendou aos cidadãos de NK que se acostumem com a integração à sociedade azerbaijana.
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Para o repórter fotográfico armênio David Ghahramanyan, 32 anos, que deixou Nagorno-Karabakh na terça-feira, não havia outra opção. "O fato é que a limpeza étnica e o genocídio ocorreram contra o povo armênio de Artsakh", desabafou ao Correio. "Foram nove meses de bloqueio, com a fome, o corte no fornecimento de gás, o blecaute. Depois disso tudo, o ataque do Exército azerbaijano a pessoas exauridas pela fome. O assassinato de civis fala por si", acrescentou o jornalista, agora refugiado em Goris, na Armênia, a cerca de 50km de Stepanakert.
Ghahramanyan pede ao mundo para que não fique em silêncio. "Levará tempo para entendermos o que está ocorrendo e para saber quem é culpado por tudo isso", alertou. "A coisa mais importante, no entanto, é que devemos fazer de tudo para preservar nossa genética e continuar a lutar. A geopolítica é tal que você não sabe o que acontecerá amanhã." Horas depois do anúncio de Shahramanyan, armênios libaneses se concentraram diante da Embaixada do Azerbaijão, em Air Aar, no Líbano, para denunciar a integração do povo de Nagorno-Karabakh. Houve confrontos com as forças de segurança locais, que reagiram com gás lacrimogêneo e golpes de cassetete.
"É a continuação da tragédia", lamentou Armen Yeganian, embaixador da Armênia em Brasília, em entrevista ao Correio, ao avaliar o anúncio da dissolução da república de Nagorno-Karabakh. "É óbvio que essa declaração e essa decisão foram tomadas sob o ultimato das autoridades do Azerbaijão, em Baku. Infelizmente, o Azerbaijão tomou o último recurso, depois de expulsar a população nativa. Esse êxodo em massa é um dos maiores que vimos na história."
O representante do governo armênio no Brasil destacou que, durante 68 anos, Nagorno-Karabakh foi uma república autônoma dentro do Azerbaijão. "Ela teve uma independência de facto por 32 anos. É o fim de um sonho, infelizmente. Não chamamos (a luta do povo de Nagorno-Karabakh) de 'separatismo'", disse Yeganian. O embaixador acredita que o Azerbaijão será punido severamente pelo crime de limpeza étnica. "O Parlamento Europeu preparou uma resolução e haverá mais. Guarde minha palavras", afirmou Yeganian. Ele fez questão de ressaltar o fato de que os armênios de Yerevan não têm poupado esforços para ajudar os refugiados de Nagorno-Karabakh, com o fornecimento de água, comida e abrigo.
"Muito aguardada"
Para Rashad Novruz, embaixador do Azerbaijão no Brasil, "a decisão do regime separatista ilegal de se dissolver era muito aguardada". "Algumas pessoas da comunidade armênia em Karabakh finalmente compreenderam que o melhor caminho a seguir seria a reintegração à sociedade azerbaijana e a aceitação de sua estrutura constitucional. Quanto mais cedo isso ocorrer, melhor será", explicou à reportagem. O diplomata reconhece que nem todos os armênios ficarão felizes, especialmente aqueles que saíram (de Nagorno-Karabakh). "O Azerbaijão não os forçou a escolher. Se quiserem sair, são livres para fazê-lo. Mas estamos certos de que muitos ficarão e alguns até mesmo desejarão retornar."
Novruz acrescenta que, depois do início do desarmamento de "formações armadas ilegais armênias" e da prisão de alguns líderes do regime separatista, além dos "pedidos de muitos residentes da etnia armênia de Karabakh para se tornarem cidadãos do Azerbaijão", não havia necessidade para a república autoproclamada propagar sua existência. "Ambições erradas criaram falsas expectativas entre a comunidade armênia", disse o embaixador azerbaijano.
O primeiro-ministro da Armênia, Nikol Pashinyan, estima que "não haverá armênios em Nagorno-Karabakh" nos próximos dias. Ele acusou o Azerbaijão de cometer uma "limpeza étnica" e cobrou uma condenação por parte da comunidade internacional. A Rússia, por sua vez, reagiu de forma lacônica: afirmou que "tomou nota" do anúncia da dissolução de NK, mas disse não ver motivos para que a população fuja do enclave.
Voz da diplomacia
"De maneira nenhuma. Repito... De maneira nenhuma podemos imaginar uma adaptação de nosso povo ao Azerbaijão e à cultura deles. É por isso que todos nós somos forçados a deixar a nossa terra. A comunidade internacional deve claramente perceber que o que ocorre agora nada mais é do que um deslocamento forçado."
David Ghahramanyan, repórter fotográfico, 32 anos, morador de Stepanakert refugiado em Goris (Armênia)
"Na minha opinião, os armênios jamais voltarão a Nagorno-Karabakh. Se isso ocorrer um dia, eles serão, no mínimo, tratados como cidadãos de segunda categoria. De acordo com a experiência que tivemos, com os pogroms (perseguições sistemáticas), os assassinatos e opressão vista na era soviética... O Azerbaijão não respeita os direitos humanos dos próprios cidadãos. O que diremos em relação aos armênios? Eu espero que o Azerbaijão se torne um grande país, para que todo mundo possa viver em paz."
Armen Yeganian, embaixador da Armênia em Brasília
"Uma atitude séria e extremamente paciente do governo do Azerbaijão de manter uma série de diálogos intensivos com a comunidade armênia indicou que algumas pessoas de Karabakh estavam dispostas a conversar e a continuar vivendo como parte do Azerbaijão. A sabedoria e a justiça prevaleceram, 32 anos depois. Infelizmente, isso poderia ter acontecido muito antes. Assim, tanto a Armênia quanto o Azerbaijão não perderiam milhares de vidas, bilhões de dólares em armas, tempo e confiança."
Rashad Novruz, embaixador do Azerbaijão em Brasília