Chile

EUA devem pedir desculpas pelo golpe de Pinochet no Chile?

Na véspera do 50º aniversário do golpe militar que derrubou o governo de Salvador Allende, as atenções voltam-se para as ações de Washington no passado e no presente.

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O papel desempenhado pelo governo Nixon na queda de Salvador Allende no Chile gerou protestos contra os Estados Unidos, como o ocorrido em 2007 na capital chilena, Santiago

O contato telefônico entre Richard Nixon (1913-1994) e Henry Kissinger naquele domingo de manhã começou quase como uma conversa entre amigos comentando uma partida de futebol que seria disputada logo mais.

Na época, Nixon era o presidente dos Estados Unidos, enquanto Kissinger era seu conselheiro de Segurança Nacional.

O diálogo logo se voltou para o golpe de Estado ocorrido no Chile cinco dias antes — em 11 de setembro de 1973 — e a ditadura militar que tinha início no país.

“Aquilo do Chile está se consolidando”, informou Kissinger ao presidente, ignorando as críticas de parte da imprensa à derrubada do governo democraticamente eleito daquele país. “No tempo de Eisenhower [presidente dos EUA entre 1953 e 1961], seríamos heróis.”

“Mas, neste caso, a nossa mão não aparece”, comentou Nixon. Ao que Kissinger respondeu: “Nós não fizemos. Quero dizer, nós ajudamos.”

Este diálogo é um dos diversos registros que perderam o status de confidencial ao longo dos anos em Washington.

Ele é parte das evidências do papel desempenhado pelos Estados Unidos na deposição do presidente socialista do Chile Salvador Allende (1908-1973), e na ruptura social e institucional provocada pelo golpe militar de 1973 no país.

Com a chegada do 50º aniversário deste trágico episódio, uma pergunta formulada há décadas volta a ser discutida: os Estados Unidos deveriam pedir desculpas por terem propiciado o golpe militar no Chile?

Fontes diplomáticas indicaram à BBC News Mundo — o serviço em espanhol da BBC — que membros do Congresso norte-americano, de fato, estão considerando a possibilidade de criar uma resolução que sugira algum tipo de mea culpa por parte de Washington.

Consultado a respeito, o embaixador chileno nos Estados Unidos, Juan Gabriel Valdés, afirma que a preocupação de seu país é obter acesso aos arquivos norte-americanos sobre o golpe que ainda permanecem em confidencialidade.

Mas ele diz que receberia com apreço um gesto de arrependimento ou pedido de desculpas de Washington, mesmo sem apresentar uma reivindicação formal.

“Eu diria que, para nós, um gesto desta natureza seria algo que apreciaríamos profundamente e teria um valor enorme para nossas relações”, afirma Valdés.

‘Nossa cumplicidade’

Meio século depois, a sociedade chilena ainda carrega opiniões divididas sobre o golpe de Estado liderado por Augusto Pinochet (1915-2006), que governou o país com mão de ferro entre 1973 e 1990.

Alguns condenam o levante armado e as violações dos direitos humanos que se seguiram. Outros acreditam que a intervenção militar salvou o país do rumo tomado com a eleição de Allende. E existem sinais claros que as feridas causadas por este capítulo da história chilena permanecem abertas.

No final de agosto, o atual presidente chileno, Gabriel Boric, lançou um plano para que o Estado chileno comece a procurar mais de 1.100 pessoas desaparecidas durante o regime militar e que não foram encontradas até hoje.

Ao longo dos anos, esta tarefa vem sendo conduzida unicamente pelas famílias das vítimas e por grupos de defesa dos direitos humanos.

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As sequelas do golpe militar de 1973 e do regime ditatorial que se seguiu são visíveis até hoje no Chile

Na mesma semana, sete ex-militares foram condenados pelo sequestro e brutal assassinato do cantor chileno Víctor Jara, em 16 de setembro de 1973 — mesmo dia da conversa entre Nixon e Kissinger — no Estádio Nacional do Chile, em Santiago, que foi transformado em centro de detenção e tortura após a deposição e morte de Salvador Allende.

Em paralelo, os Estados Unidos continuam gradualmente a retirar confidencialidade e publicar documentos sigilosos que registram o que aconteceu no Chile e demonstram como seu próprio aparato oficial atuou durante os anos de Allende.

O governo de Boric foi responsável por solicitar este material a Washington.

“É natural que um país que sofreu um trauma desta natureza possa tratar de reconstituir como e por que este trauma aconteceu”, explica Valdés.

O embaixador destaca que o governo americano — que ele classifica como “amigo” — respondeu que iria trabalhar para extinguir a confidencialidade do material sobre o período do golpe militar no Chile que permanece em segredo.

“Queremos entender que, ao tornar públicos os documentos que nos serão entregues, os Estados Unidos estão declarando, na verdade, que isso nunca deveria ter acontecido”, afirma o diplomata.

“Pois todos os documentos que estamos lendo são de uma intervenção totalmente indevida, muitas vezes brutal, nos assuntos internos do Chile.”

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O presidente americano Richard Nixon (esq.) e seu conselheiro de Segurança Nacional, Henry Kissinger, em imagem de 1972

Os arquivos revelados indicam que, no auge da Guerra Fria, a principal preocupação dos Estados Unidos sobre Allende era a possibilidade de que seu governo socialista (o primeiro a chegar ao poder pela via democrática) pudesse “consolidar-se e projetar ao mundo uma imagem de sucesso”, segundo explicou o próprio Nixon ao seu Conselho de Segurança Nacional, em novembro de 1970.

Para impedir esta situação, os arquivos demonstram que Washington boicotou a presidência de Allende, desde sua eleição naquele ano. Os Estados Unidos realizaram então operações sigilosas, tentando evitar que o Congresso chileno ratificasse sua vitória.

Por meio da CIA, sua agência de inteligência, Washington apoiou um plano fracassado de sequestrar o comandante-chefe do Exército chileno, René Schneider, que defendia o cumprimento da Constituição do país e acabou sendo assassinado.

Após a posse de Allende, os Estados Unidos tentaram sufocar o governo, debilitando a economia chilena ou financiando sua oposição.

A documentação disponível também indica que Kissinger foi importante para que os Estados Unidos apoiassem o regime de Pinochet nos seus primeiros anos, apesar das preocupações com suas graves violações dos direitos humanos que surgiam em todo o mundo, incluindo em alguns círculos políticos em Washington.

Em resposta ao pedido chileno, o governo do presidente americano Joe Biden revelou, no final de agosto, mais dois arquivos secretos: os relatórios da CIA que foram recebidos por Nixon nos dias 8 e 11 de setembro de 1973.

O primeiro relatório advertia o presidente sobre uma possível tentativa de golpe militar de Chile. Segundo a CIA, Allende acreditava que “a única solução é política”.

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O presidente chileno Gabriel Boric recebeu a visita de um grupo de congressistas norte-americanos, que incluiu a democrata Alexandra Ocasio-Cortez. Eles discutiram o golpe militar de 1973

O segundo relatório, recebido no mesmo dia do golpe, indicava que os militares chilenos estavam “decididos a restabelecer a ordem política e econômica”, embora talvez não contassem com “um plano coordenado e eficaz que aproveitasse a ampla oposição civil”.

O Departamento de Estado dos Estados Unidos afirma que a divulgação destes documentos, além dos milhares de outros papéis revelados anteriormente, demonstra seu compromisso de colaboração com o Chile, de forma coerente com os “esforços conjuntos para promover a democracia e os direitos humanos”.

Esta ação foi aplaudida pelos que defendem que Washington trate com mais abertura suas ações durante o golpe militar chileno, embora alguns considerem que ainda haja muito por fazer.

Joaquín Castro é o congressista democrata que ocupa o mais alto posto no subcomitê de assuntos exteriores para o Hemisfério Ocidental da Câmara de Representantes dos Estados Unidos.

Ele acredita que é preciso identificar e revelar os registros restantes sobre o episódio para reconhecer o que aconteceu.

“Se os Estados Unidos quiserem ter relações honestas com a América Latina, precisamos ser honestos sobre nossa cumplicidade do passado e tomar medidas para não repetir nossos erros no futuro”, afirmou Castro à BBC.

Recentemente, Joaquín Castro visitou Santiago com uma delegação de legisladores norte-americanos.

O grupo incluiu a deputada Alexandria Ocasio-Cortez, que também pediu que Washington tire a confidencialidade dos documentos sobre o golpe de Estado no Chile e assuma “plena e publicamente a responsabilidade” pelo seu papel histórico na região.

‘Criar as condições’

A questão sobre um possível pedido de desculpas de Washington pela derrubada da democracia chilena foi apresentada pela primeira vez pouco depois do golpe militar.

Em 1977, o diplomata norte-americano Brady Tyson expressou, perante a Comissão de Direitos Humanos das Nações Unidas em Genebra, na Suíça, o “mais profundo arrependimento” pelo papel do seu país na subversão do governo de Salvador Allende.

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O golpe de 1973 no Chile aconteceu após ‘três anos de esforços para desestabilizar’ o governo do presidente Salvador Allende, segundo o analista americano Peter Kornbluh

Mas, horas depois, o então presidente dos Estados Unidos, Jimmy Carter, classificou a declaração como “inadequada”.

E o Departamento de Estado americano afirmou que Tyson havia se pronunciado em caráter pessoal, sem aprovação prévia — e o chamou de volta para Washington.

Este episódio demonstrou como o assunto era delicado para a Casa Branca.

O próprio Carter, quando era candidato democrata à presidência, havia criticado o governo republicano que o precedeu por ter “derrubado um governo eleito e ajudado a estabelecer uma ditadura militar” no Chile.

E, para justificar sua posição enquanto presidente, Carter mencionou uma investigação realizada por um comitê do Senado americano, em 1975, sobre as ações sigilosas dos Estados Unidos no Chile.

Na ocasião, não foram encontradas provas do envolvimento direto de Washington no golpe militar.

O especialista do Arquivo de Segurança Nacional de Washington Peter Kornbluh passou décadas investigando o episódio.

Ele afirma que, embora “os documentos dos Estados Unidos não demonstrem papel direto do governo norte-americano e da CIA no golpe propriamente dito, eles evidenciam três anos de esforços para desestabilizar o Chile”.

“Os registros desclassificados mostram que a intenção dessas operações era garantir o fracasso de Allende e criar condições para que ele pudesse ser derrubado”, diz Kornbluh à BBC News Mundo. E acrescenta que “nos três primeiros anos da ditadura de Pinochet, os mais sangrentos, os Estados Unidos forneceram ajuda econômica e militar”.

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Salvador Allende (dir.) nomeou Augusto Pinochet como comandante-chefe do exército chileno apenas três semanas antes do golpe militar

Mas os tempos mudaram desde aquela época. E, recentemente, diversos países e instituições vêm se desculpando por suas ações do passado.

Foi o caso de outro ex-presidente americano, Bill Clinton, que se desculpou em 1999 pelo apoio fornecido pelo seu país a forças militares e unidades de inteligência da Guatemala, que mataram dezenas de milhares de pessoas na guerra civil travada no país entre 1960 e 1996. Ele destacou que Washington “não deve repetir este erro”.

Em 2010, já no governo Barack Obama, Washington também pediu desculpas à Guatemala por experimentos realizados na década de 1940. Na ocasião, cientistas dos Estados Unidos infectaram deliberadamente centenas de pessoas do país centro-americano com doenças venéreas, como parte de estudos médicos.

Mas os Estados Unidos “nunca assumiram o custo” causado pela ruptura democrática no Chile, segundo a premiada jornalista chilena Mónica González, autora do livro La Conjura: los mil y un días del golpe (“A conspiração: os mil e um dias do golpe”, em tradução livre).

“Qual foi o custo?”, pergunta González. “Não só os mais de 3.000 detidos, desaparecidos e executados. São os 250 mil exilados, famílias que encontramos todos os dias, atingidas por bombas de fragmentação, porque ficaram despedaçadas.”

Nem Clinton, nem Obama

No ano 2000, o governo Clinton anunciou a liberação de milhares de documentos antes considerados confidenciais, defendendo que o público poderia “julgar por si mesmo até que ponto as ações dos Estados Unidos debilitaram a causa da democracia e dos direitos humanos no Chile”.

“As ações aprovadas pelo governo dos Estados Unidos durante aquele período agravaram a polarização política e prejudicaram a longa tradição chilena de eleições democráticas e respeito pela ordem constitucional e pelo Estado de direito”, indicou a Casa Branca na ocasião.

Quando Obama visitou Santiago em 2011, durante seu primeiro mandato presidencial, um jornalista perguntou se os Estados Unidos pediriam perdão pelo que fizeram no Chile nos anos 1970. O presidente americano respondeu que não podia “falar sobre todas as políticas do passado”.

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Durante sua visita ao Chile em 2011, o presidente americano Barack Obama evitou pedir desculpas pelas ações dos Estados Unidos durante o golpe militar de 1973

“É importante aprender com a nossa história, compreender a nossa história, mas sem nos deixarmos capturar por ela, pois temos muitos objetivos pela frente”, defendeu Obama.

O conselheiro de Segurança Nacional de Barack Obama para a América Latina, Dan Restrepo, afirmou posteriormente aos jornalistas que algumas das ações norte-americanas na região foram “ruins”, mas evitou entrar em detalhes sobre o Chile.

A BBC News Mundo tentou falar com o governo Joe Biden sobre o papel desempenhado pelos Estados Unidos no país sul-americano meio século atrás e sobre a possibilidade de apresentação de um pedido de desculpas pelo episódio.

Mas a Casa Branca não respondeu até a publicação desta reportagem.

“Os governos não gostam de se desculpar, nem de admitir erros”, afirma Kornbluh. “Certamente, há uma posição nacionalista [ou] legal.”

Mas ele acrescenta que “50 anos depois, é o caso de expressar o profundo pesar pelas operações secretas para minar o processo constitucional no Chile” e “pelo papel dos Estados Unidos no apoio à estrutura de repressão” de Pinochet.

“Acredito que estes dois fatos violam os valores do povo norte-americano e são relevantes hoje, pois muitos países, incluindo os próprios Estados Unidos, enfrentam a ameaça do autoritarismo e a perda de força das instituições democráticas”, conclui o analista.

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