Mariele Bueno Pires, de 20 anos, foi achada morta em casa, em Ponta Grossa, no Paraná, em 23 de agosto. Em seu corpo seminu, havia ao menos vinte perfurações feitas com uma faca.
Inicialmente, a Polícia Civil acreditava se tratar de um latrocínio – roubo seguido de morte –, mas as investigações apontaram para um feminicídio.
O principal suspeito do crime era seu companheiro, um rapaz de 26 anos.
Imagens de câmeras de segurança de outras casas registraram que ele esteve no local e saiu pouco antes de o crime ser descoberto por vizinhos.
Ele ainda teria colocado fogo em parte do imóvel na tentativa de esconder o crime. O rapaz foi preso no dia seguinte e confessou o assassinato.
A crueldade com que Mariele foi morta choca, mas não é uma situação isolada no Brasil.
Em 18 de agosto, a médica Thallita da Cruz Fernandes, de 28 anos, foi assassinada com ao menos 30 facadas no apartamento onde morava em São José do Rio Preto, no interior de São Paulo, e colocada em uma mala.
Também foram câmeras de segurança que mostraram à polícia que o namorado de Thallita foi a única pessoa que saiu do imóvel no dia do crime.
O rapaz foi preso no dia seguinte e confessou que matou a namorada. Segundo a Polícia Civil, o crime aconteceu depois que a médica tentou romper seu relacionamento de três anos.
Mariele, Thallita e outras centenas de mulheres são mortas todos os anos no país em crimes de feminicídio.
Dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública apontam que, em 2022, uma mulher foi morta a cada seis horas no país.
No total, foram 1.437 vítimas de feminicídio no ano passado, um aumento de 6,5% em relação aos 1.347 registrados em 2021.
Esse alto índice de mulheres vítimas de feminicídio está relacionado a fatores como a crença de que as mulheres são subalternas aos homens e que suas vontades são menos relevantes, dizem especialistas ouvidos pela BBC News Brasil.
Uma visão que faz com que mulheres sejam vistas por muitos homens como objetos de sua propriedade.
"Ainda há muitos crimes devido à cultura machista e sexista que existe no país, que coloca o sexo feminino como um ser inferior, que não tem direito a ter suas próprias vontades e que está submissa à vontade do homem, devendo sempre fazer o que ele quer", explica Deíse Camargo Maito, professora de Direito da Universidade do Estado de Minas Gerais (UEMG) que pesquisou sobre violência contra a mulher.
O anuário produzido pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública aponta que, em sete de cada dez femincídios no país, a vítima foi morta dentro da casa em que vivia.
Na maioria das vezes, o autor do crime foi seu parceiro (53,6%) ou ex-parceiro (19,4%).
Em 10,7%, a mulher foi morta por outro familiar, como filho, irmão ou pai, em 8%, por algum conhecido, e em 8,3% por uma pessoa desconhecida.
"O agressor não aceita o término da relação ou ele não aceita a autonomia da mulher dentro dessa relação. Por isso que a maioria dos feminicídios é cometido por alguém muito íntimo", diz Maito.
"Essa pessoa, tão próxima, é a que apresenta mais perigo, porque ela tem mais acesso a essa mulher."
O assassino nem sempre se apresenta como uma pessoa violenta o tempo todo, explicam os especialistas, e isso pode confundir a vítima sobre o que ela está passando no relacionamento.
Na maioria das vezes, ele tenta justificar a sua atitude agressiva colocando a culpa na vítima.
"O agressor é uma pessoa de comportamento normal e carinhosa. Em um momento de tensão ele comete um ato de violência e logo em seguida ele se desculpa e o relacionamento vive um momento da lua de mel", afirma Juliana Fontana Moyses mestre em Direito pela Universidade de São Paulo de Ribeirão Preto e doutoranda no Programa de Direitos Humanos.
"Com isso, a tendência é que essa violência vá ficando pior, podendo se potencializar até chegar no feminicídio."
Entre as vítimas de feminicídio no Brasil, 71,9% tinham entre 18 e 44 anos — o maior percentual se concentra na faixa entre 18 e 24 anos (16,1%).
"Essas jovens estão no início da vida com menos conhecimento de que aquelas atitudes do parceiro é uma violência contra ela. Por não terem essa visão, elas pedem menos ajuda às suas famílias e ao seu entorno", diz Maito.
Feminicídio é o ponto final
O feminicídio é a forma de violência mais grave contra a mulher. Mas, antes de acontecer o crime, a mulher passa por outros tipos de violência como agressões, violência sexual, psicológica e ameaças.
Por isso, dizem especialistas, é importante que todos que convivem com mulheres que podem estar em uma relação abusiva fiquem atentos aos sinais para ajudá-la a quebrar o ciclo de violência em que está inserida.
"Os sinais são muito claros, tudo começa com desrespeito à opinião, depois o cerceamento do convívio dessa mulher com outras pessoas, a violência psicológica, verbal e moral, e por fim, o ponto mais crítico, a violência física", diz Lazara Carvalho, advogada especialista em resolução de conflitos e chefe de gabinete da Secretaria Nacional de Justiça.
No entanto, mudar essa realidade de comportamento e pensamento da sociedade, dizem os especialistas, exige uma mudança cultural, o que não é uma tarefa fácil e pode demorar décadas.
"É necessária uma educação centrada no antimachismo, que ensine aos nossos meninos e meninas o valor das liberdades individuais, a garantia dos direitos humanos de todas as pessoas, independente do gênero, e a necessidade da construção de vínculos afetivos saudáveis baseados no respeito e na cooperação", avalia Carvalho.
Onde buscar ajuda e como denunciar
Em uma situação de emergência, é possível buscar ajuda em qualquer delegacia de polícia ou ligar para o 190, da Polícia Militar.
Já em caso de suspeita ou violação dos direitos da mulher, a vítima ou qualquer pessoa pode pedir ajuda na Central de Atendimento à Mulher, pelo número 180 ou pelo WhatsApp (61) 9610-0180.
Dados do governo federal mostram que, no primeiro semestre de 2023, a central de atendimento registrou 51,78 mil denúncias e 267,76 mil violações envolvendo a violência doméstica contra as mulheres - uma denúncia pode conter mais de uma violação de direitos humanos.
O Ligue 180 orienta sobre os direitos das mulheres e sobre os serviços da rede de atendimento em todo o Brasil, além de analisar e o serviço encaminha as denúncias para os órgãos competentes como: conselhos tutelares, CRAS, CREAS, delegacias de polícia e Ministério Público.
"Por meio do atendimento integrado, buscamos oferecer apoio e solução para essa mulher conseguir deixar o ciclo de violência e se reestruturar", explica Denise Motta Dau, secretaria nacional de Enfrentamento à Violência contra Mulheres, do Ministério das Mulheres.
"Além disso, as mulheres também podem procurar as Casas da Mulher Brasileira para receber ajuda e até mesmo abrigo por um dia, caso necessário. Os atendimentos também estão voltados para ajudar a essa vítima conseguir um emprego.”