Em visita recente a Brasília, Pasi Hellman — vice-ministro de Política de Desenvolvimento da Finlândia — participou do evento The Power of Multi-sector approaches for Human Capital Development (O poder das abordagens multissetoriais para o desenvolvimento do capital humano), organizado pelo Programa Mundial de Alimentos da ONU. Na capital, ele cumpriu extensa agenda: manteve reuniões com a delegação da União Europeia (UE) no Brasil, Banco Interamericano de Desenvolvimento, Banco Mundial, escritório da ONU e Ministério da Fazenda. Hellman falou ao Correio sobre os esforços da Finlândia para combater a fome, a iniciativa de seu país para fornecer merendas escolares gratuitamente em várias nações e a sustentabilidade como questão cultural e curricular nas instituições de ensino finlandesas. Também destacou a importância da adesão da Finlândia à Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan), admitiu danos às relações com a Rússia, criticou a guerra na Ucrânia e descartou uma saída da União Europeia. O vice-ministro elogiou o papel "muito ativo" do Brasil nas negociações sobre mudanças climáticas.
Há alguns anos, o Brasil foi um modelo no combate à fome. Que parcerias Helsinque e Brasília têm nesse esforço?
As relações entre a Finlândia e o Brasil são extremamente boas, em termos de cooperação bilateral. Nos mais altos níveis políticos, tivemos muitas trocas e colaboração. O presidente da Finlândia, Sauli Niinistö, esteve em uma visita oficial ao Brasil, em junho deste ano, e se reuniu com o presidente Lula. Acho que durante os outros governos do presidente Lula houve um bom diálogo entre a Finlândia e o Brasil. Eu gostaria de associar o trabalho sobre esse tema global do fornecimento de merenda escolar e da nutrição alimentar, saúde, segurança alimentar a assuntos globais mais amplos. Também ao trabalho mais amplo do multilateralismo. O sistema do multilateralismo está sob pressão por muitos motivos, no mundo de hoje. Quanto mais pudermos promover iniciativas de colaboração, todos os atores poderão desempenhar um papel mais benéfico para o sistema e, dessa maneira, para todos os países.
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Em relação ao aquecimento global, que ações a Finlândia tem tomado para combater esse problema? Qual deveria ser o papel das nações mais ricas?
É um assunto muito importante. Estou muito feliz em ver o papel muito ativo e forte desempenhado pelo Brasil nas negociações sobre mudanças climáticas. Não menos importante é o fato de o Brasil sediar a próxima Conferência das Partes (COP) durante a Cúpula sobre o Clima, daqui a dois anos. Acho que todos os países têm responsabilidades e coisas a fazer. A Finlândia tem se comprometido a alcançar a neutralidade de carbono até 2035. É uma das metas mais ambiciosas do mundo. É claro que todos os países deveriam honrar seus compromissos feitos durante a Cúpula do Clima de Paris, em 2015, e estabelecer planos nacionais, além de realizar atividades para contribuírem com a mitigação das mudanças climáticas. Mas, também, abordar os temas da adaptação às mudanças climáticas. Temos tentado trabalhar em ambas frentes. No lado da mitigação, nós atuamos no contexto da União Europeia (UE). Tanto na adaptação, quanto na mitigação, trabalhamos no âmbito da ação política. Nesse tipo de liderança, a UE desempenha um forte papel nas discussões globais. Mas, também em termos de estabelecer metas ambiciosas para a emissão de reduções. No lado da adaptação, somente nos últimos anos, as cúpulas climáticas começaram a colocar mais ênfase nessa área. Os temas de adaptação são particularmente mais relevantes em países mais pobres. Muitas outras nações mais pobres da América do Sul, da África e do sul da Ásia não produzem tantas emissões, mas têm desafios importantes em se adaptarem às mudanças climáticas. Nessa área, ao lado de outros países da União Europeia, estamos trabalhando de forma bem proativa, fornecendo expertise, tecnologia, suporte e financiamento.
O povo finlandês está comprometido com a sustentabilidade?
Sim, estamos muito comprometidos. Em uma das mais recentes comparações da ONU entre países comprometidos com a sustentabilidade, fomos colocados na primeira posição. Isso é um sinal do nosso comprometimento. Mas isso também é um tema que tem estado em alta, tanto na agenda política da Finlândia, quanto nas mentes do povo finlândes, que tenta trabalhar em harmonia com a natureza e o meio ambiente, e leva esse assunto a sério. Esta também é uma área em que fomos capazes de desenvolver uma experiência de trabalho, com a economia circular, a tecnologia limpa ("clean tech") ou as energias renováveis, a bioeconomia. Para esse tipo de tema, nós tentamos partilhar a expertise finlandesa para países terem benefícios. Um exemplo é o Brasil, que tem se beneficiado dessa área, dos serviços meteorológicos. Vocês têm satélites finlandeses monitorando o desmatamento na Amazônia, por exemplo.
Como as crianças finlandesas têm sido educadas, nas escolas, para terem respeito pela sustentabilidade?
Há muito tempo o tema tem feito parte do currículo de nossas escolas. Acho que isso provocou um tipo de mudança e impactou a nossa sociedade. Se eu pudesse comparar os estudantes de hoje com os da minha geração, creio que as crianças de hoje são muito melhor educadas sobre os benefícios e os hábitos ligados à sustentabilidade, como o consumo.
Em 4 de abril passado, a Finlândia foi aceita como membro da Otan. Qual é a importância dessa adesão para vocês?
Essa é uma pergunta muito importante para a Finlândia. Em primeiro lugar, se você olhar para o que está ocorrendo agora, verá que a situação da segurança na Europa é mais imprevisível e mais incerta do que em qualquer época desde o fim da Segunda Guerra Mundial. Isso por causa da flagrante e ilegal violação do direito internacional, por parte da Rússia, além da violação da soberania nacional da Ucrânia. É claro que estamos tentando nos adaptar a essa nova situação. Nossa decisão de nos unir à Otan, que está em busca de novos parceiros, foi uma reação à modificação do ambiente de segurança na Europa. Ela tem um forte apoio entre a população finlandesa. Nosso Parlamento, quase que de forma unânime, votou a favor da entrada na Otan. É claro que, de alguma maneira, é um tipo de resposta à ação da Rússia. A guerra ilegal da Rússia atraiu a Finlândia a buscar a adesão à Otan, a fim de aprimorar a nossa própria situação de segurança. A Otan é uma aliança de defesa, não uma ameaça à Rússia ou a qualquer outro. Se você me perguntar sobre reações da Rússia à adesão da Finlânda, acho que eram esperadas. A retórica russa tem mudado. Somos países vizinhos, partilhamos uma fronteira comum de 1.300km. Mas, de alguma forma, na condição de ex-bons vizinhos, a Rússia tem se abastecido com uma narrativa de guerra. O que vem da Rússia podemos categorizar como fake news. Nós estamos preparados para esse tipo de relação.
A guerra na Ucrânia danificou as relações entre Helsinque e Moscou?
Definitivamente. Estamos limitando nossa cooperação com a Rússia a temas como colaboração na fronteira e assuntos que não afetem o diálogo político. As relações foram severamente impactadas por algumas ações da Rússia, que tornaram impossível a relação de missões finlandesas a São Petersburgo ou que diplomatas nossos trabalhem em Moscou.
A Finlândia está engajada em ajudar Kiev sob o ponto de vista militar?
Recentemente, nosso Ministério das Relações Exteriores declarou que a Finlândia apoiará a Ucrânia pelo tempo que for necessário. É uma declaração muito incisiva. Nosso primeiro-ministro (Petteri Orpo) visitou Kiev há duas semanas. Nosso presidente recebeu o presidente Zelensky em Helsinque, no início deste ano. A população e os políticos finlandeses apoiam a Ucrânia em suas tentativas de lutar contra a guerra ilegal da Rússia. Os russos poderiam parar a guerra a qualquer momento, se quisessem. Temos apoiado a Ucrânia de muitas formas, inclusive com 17 pacotes de suporte civil e militar a Kiev. O valor total dos pacotes é de 1,7 bilhão de euros (R$ 9,1 bilhões). Parte significativa é de material de defesa. Mas, é claro, estão inclusos o financiamento ao desenvolvimento e outros tipos de ajuda para a reconstrução da Ucrânia.
De que modo o seu país está engajado em ajudar crianças ao redor do mundo a terem acesso à merenda escolar?
A merenda escolar é um assunto muito importante para a Finlândia. Historicamente, nós estamos entre os primeiros países do mundo a estabelecer o fornecimento universal e gratuito de merendas para os alunos finlandeses. Isso começou há mais de 70 anos, quando a Finlândia ainda não era uma nação rica. Decidimos começar a investir em crianças e em merendas escolares nutritivas. Isso incluía alunos em desenvolvimento bem precoce. Nossa experiência nos diz que esta é uma das principais características por trás do desenvolvimento da sociedade finlandesa, até mesmo da economia de nosso país. Pensamos que este é um bom investimento para qualquer país, a fim de se desenvolver e de usar da melhor forma seus próprios recursos. É claro que a merenda escolar e a nutrição têm um importante impacto sobre a saúde e sobre muitos outros temas ligados ao desenvolvimento. Nós gostaríamos de promover esse tema ao redor do mundo. Ao lado da França, iniciamos essa coalizão global em defesa da merenda escolar. Isso foi feito no contexto da cúpula das Nações Unidas, dois anos atrás, em Nova York. O interesse ao redor do mundo em se unir a essa coalizão mostra a importância do assunto. Em menos de dois anos, somamos 87 países a fazerem parte dessa coalizão. Creio que mais nações se unirão a ela.
Nesses esforços, o Brasil está engajado em uma parceria com a Finlândia?
Esta é uma iniciativa global. Não se trata de uma iniciativa bilateral, de uma iniciativa norte-sul. É uma coalizão muito igualitária. A ideia é que todos os participantes tragam suas próprias especialidades e outros possam aprender. Nós compartilhamos as melhores práticas. Também encorajamos os outros países a fazerem compromissos em relação ao tema. Minha compreensão é de que o Brasil tem um forte compromisso com as merendas escolares, mas também tem trabalhado há bastante tempo nesse tema. O Brasil está mostrando uma boa liderança, é um exemplo na região, na América Latina e no Caribe. Mas também uma liderança que pode ser benéfica para o resto do mundo.
O senhor mencionou as excelentes relações bilaterais com o Brasil. Quais as áreas mais fortes de parceria?
A primeira delas é o front político. Eu mencionei a visita do presidente Sauli Niinistö ao Brasil, o que fortaleceu a colaboração em muitos aspectos dessa relação. O Brasil é membro de grupos e de iniciativas muito importantes, como o Brics. Também ocupará a Presidência do G20. Esse é o tipo de temas com os quais queremos desenvolver o nosso diálogo político com o Brasil, para discutir não apenas questões bilaterais, mas também temas que se impõem como desafios globais. Nós reconhecemos a importância do Brasil como player nessas discussões globais. O Brasil tem sido um país muito influente nesses grupos internacionais. Talvez a segunda área dessa relação seja no front mais econômico e comercial. Esses temas também foram abordados durante a visita do presidente Niinistö. Um número de companhias finlandesas participou da visita, as quais discutiram com as contrapartes brasileiras. Nossa abordagem é que as empresas fazem negócios, e o governo pode permitir ou facilitar os acordos comerciais. As áreas em que as colaborações podem ser fortes são aquelas em que temos uma classe de trabalho competitiva, como a transformação digital, tecnologia de bits, tecnologias de 4G e 5G. Outras áreas são a energia renovável, além de soluções de eficiência energética, a bioeconomia, a economia circular; isso inclui como aprimorar a eficiência de materiais. A Finlândia realizou o primeiro Fórum de Economia Circular e convidou o Brasil a aderir. Na área da silvicultura, somos um país de florestas. Há muitas coisas que podemos partilhar e aprender, em relação à fiscalização de florestas e investimentos. Uma área que mencionei envolve os satélites meteorológicos. Talvez outra área seja a da mineração. A Finlândia tem bastante perícia e, ao lado de softwares e de hardwares, a mineração é muito importante para a economia brasileira.
Essa parceria se estende para a União Europeia?
Nós somos membros da União Europeia. O Brasil é um importante parceiro para toda a União Europeia. Temos em andamento vários processos e iniciativas entre o bloco e o Brasil ou a América Latina que podem trazer benefícios mútuos para a Finlândia e o Brasil. Em julho, houve a cúpula entre a União Europeia e a Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos (Celac), em Bruxelas. A agenda política foi bem fortalecida, na ocasião. O acordo de associação entre União Europeia e Mercosul será esperançosamente concluído em algum momento. Acho que a União Europeia, como um todo, também é um parceiro muito importante para o Brasil.
Existe algum risco de a extrema direita finlandesa empurrar o país para fora da União Europeia?
Se colocarmos isso em um contexto mais amplo, teremos novos tipos de movimentos políticos ganhando popularidade em países europeus. Isso inclui a chamada extrema direita em nações populistas, além de outros grupos extremistas. Temos um novo governo na Finlândia, desde junho deste ano. Ele consiste em partidos conservadores e de direita. Mas eles não se qualificam de extrema direita. É um governo de coalizão. Um partido dessa coalizão teve, em seus documentos políticos, a meta de ver a renúncia da Finlândia à União Europeia a longo prazo. Mas, no programa de governo, estão comprometidos com a permanência da Finlândia como um contribuinte ativo e colaborador da União Europeia. O governo está comprometido em continuar membro da União Europeia.
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