Direitos LGBTQIA+

‘Estamos sob ataque’: como a vida está mudando para casais gays na Itália

Uma série de normas que estão prestes a ser aprovadas no país europeu pode tornar quase impossível que casais do mesmo sexo tenham filhos.

Maurizio e Mauro estão juntos há 20 anos e tiveram gêmeos graças a uma barriga de aluguel -  (crédito: BBC)
Maurizio e Mauro estão juntos há 20 anos e tiveram gêmeos graças a uma barriga de aluguel - (crédito: BBC)
BBC
Sofia Bettiza - BBC News
postado em 30/09/2023 15:03 / atualizado em 30/09/2023 15:09

As autoridades italianas estão impondo novas medidas contra as famílias LGBTQIA+ e limitando as opções para elas terem filhos.

Muitos casais do mesmo sexo avaliam que a nova lei, que procura proibir o uso de barrigas de aluguel fora do país, é um ataque pessoal contra eles.

“Temos duas opções: fugir ou ficar na Itália e ir para a prisão.”

Claudio e Davide (nomes fictícios) aguardam seu bebê, concebido no ventre de uma mulher que mora fora da Itália.

Essa prática, conhecida como barriga de aluguel, é proibida na Itália e na maioria dos países europeus. Por isso, muitos casais viajam para países onde isso é legalizado — como Estados Unidos e o Canadá —, fazem o processo com uma mulher que se oferece como barriga de aluguel e depois levam consigo o bebê nascido no exterior.

Mas o Senado italiano está prestes a aprovar uma lei que tornará a barriga de aluguel um “crime universal” — ou seja, punível mesmo que seja praticada fora do país, tal como acontece com o tráfico de seres humanos ou a pedofilia.

Nenhum outro país tem uma proibição semelhante em vigor.

Se a proposta se tornar lei, casais como Cláudio e Davide poderão enfrentar multas próximas de US$ 900 mil (cerca de R$4,4 milhões) e até dois anos de prisão.

“Tenho medo de que meu filho não cresça com os pais porque vamos acabar na cadeia”, diz Cláudio.

O casal teme o que pode acontecer com eles, por isso pediu que os nomes deles não fossem revelados. Eles têm medo que o governo italiano os identifique e passe a persegui-los.

Ambos indicam que estão prontos para fugir e procurar asilo político em um país mais amigável para a comunidade LGTBQIA+.

“Sinto que estão me forçando ao exílio só por querer ser pai”, lamenta Davide, que está aprendendo holandês e maltês.

O exílio seria uma mudança extremamente difícil para eles, que perderiam a proximidade da família e dos amigos.

“No nosso círculo íntimo, estão ansiosos para conhecer o bebê”, diz Cláudio.

O casal não tem consolo quando pensa numa saída forçada da Itália.

“Não quero sair do meu país. Sinto orgulho de ser italiano”, explica Davide.

“Tentei ser o melhor cidadão possível e agora me sinto tratado como um criminoso só porque quero constituir uma família”, declara.

Proposta polêmica

A proposta de lei contra a barriga de aluguel faz parte da agenda do grupo político conservador de Giorgia Meloni, a primeira mulher a ser primeira-ministra na história da Itália. O partido dela, os Irmãos da Itália, é originado de um movimento formado por ex-membros do partido fascista fundado por Mussolini.

Meloni se descreve como uma mãe cristã e acredita firmemente que os filhos devem ser criados apenas por uma mãe e um pai.

A Itália é um país onde a influência da Igreja Católica é muito forte. Por lá, o casamento gay é ilegal e os casais do mesmo sexo têm menos direitos do que em outros países da Europa Ocidental.

Por essa razão, a inseminação artificial ou mesmo a adoção não são opções para casais LGBTQIA+. Assim, para muitos, procurar uma mãe de aluguel fora do país é a única opção para aumentar a família.

Agora, a prática está no centro de vários debates políticos do país.

Meloni descreveu a barriga de aluguel como um “símbolo de uma sociedade abominável que confunde desejo com direitos e substitui Deus por dinheiro”.

O vice-primeiro-ministro, Matteo Salvini, comparou a barriga de aluguel a um caixa eletrônico.

“É uma caixa que produz bebês. Para mim, é uma aberração”, declarou. “Vou lutar contra essa prática bárbara, só de pensar nisso fico doente.”

Já para Angelo Schillaci, professor de direito da Universidade Sapienza, a proposta é “irracional”. Ele defende que não faz sentido colocar a barriga de aluguel no mesmo nível da pedofilia e dos crimes contra a humanidade.

“A lei procura punir o que é perfeitamente legal em países aliados, como os EUA e o Canadá”, diz Schillaci. “É como punir alguém por fumar maconha em Amsterdã quando está de volta ao país."

Para o acadêmico, a lei também é problemática porque é um claro ataque aos direitos da comunidade LGTBQIA+ na Itália.

Carolina Varchi, que é parlamentar do partido de Meloni, foi quem apresentou o projeto e rejeita esse tipo de interpretação.

“A maioria das pessoas que usam barriga de aluguel são heterossexuais”, afirma a parlamentar.

Os especialistas apontam que quase 90% dos casais que recorrem a uma barriga de aluguel na Itália são heterossexuais, muitos dos quais escondem o fato de terem viajado para o exterior para ter o filho.

No entanto, os casais do mesmo sexo que regressam à Itália com filhos não podem esconder esse fato.

Proteção para a mulher

Varchi argumenta que a nova lei “protegerá as mulheres e a sua dignidade”.

“É intolerável. O corpo da mulher fica reduzido a um objeto que é alugado por nove meses para trazer ao mundo um bebê, que deve sair imediatamente de seus braços para entregá-lo aos seus clientes”, declara a parlamentar.

“Não estamos discriminando crianças. Essa lei foi elaborada para pais que encomendam, como qualquer outra compra, um filho.”

Varchi disse à BBC que a barriga de aluguel deveria ser vista como um crime tão grave quanto a pedofilia — e processada de acordo.

No entanto, a parlamentar dá a entender que a maioria das pessoas receberia multa em vez de ir para a prisão.

Nos países onde a barriga de aluguel é legalizada, as normas variam e incluem considerações sobre o consentimento livre e esclarecido e sobre os valores que a mulher que irá gestar pode receber.

Mas Varchi observa que mesmo em países como os EUA e o Canadá, onde a prática é altamente regulamentada, as mulheres fazem isso por dinheiro.

“É um negócio que vale milhões. Em 2023, devemos ter coragem de dizer que o dinheiro não compra tudo. E certamente não se pode comprar o corpo de uma mulher, muito menos uma vida humana”, argumenta.

Entretanto, as famílias com quem a BBC conversou dizem que têm um ótimo relacionamento com as mulheres que tiveram ou ainda geram seus bebês.

A mulher que carrega o bebê de Carlo e Davide entregou para eles um ursinho de pelúcia no qual é possível ouvir os batimentos cardíacos do filho — som que ela registrou durante uma ultrassonografia.

“Quando os políticos falam sobre barriga de aluguel, usam termos como ‘úteros alugados’”, diz Maurizio, cujos filhos gêmeos também nasceram por meio de barriga de aluguel.

Para ele, essa definição tem o objetivo de humilhar.

Mas não se trata apenas da barriga de aluguel: o governo italiano também está usando outros meios para tornar ainda mais difícil que casais da comunidade LGBTQIA+ possam constituir uma família.

Sob ataque

Antes de Mauro e Maurizio conseguirem que a Itália reconhecesse as certidões de nascimento dos gêmeos, o município de Milão, tal como outras localidades do país, recebeu uma ordem do governo central para parar de registrar filhos de casais do mesmo sexo.

O casal conta que essa decisão fez com que os dois filhos até agora não tenham cidadania italiana. Com isso, as crianças terão dificuldades no acesso ao sistema de saúde gratuito ou à creche.

“Os nossos filhos não existem aos olhos do Estado italiano. Eles são tratados como imigrantes ilegais. É uma discriminação total”, explica Mauro.

Essa situação tem causado muita ansiedade no casal: sempre que saem com os gêmeos Luisa e Giorgio, devem ter em mãos uma série de documentos caso tenham que provar que são realmente seus pais.

A parlamentar Varchi afirma que “os pais não biológicos podem solicitar a adoção dessas crianças e, em circunstâncias especiais, isso será aprovado”.

No entanto, esse processo, denominado “adoção de enteado”, é caro e pode levar anos.

“É humilhante que você tenha que adotar seu próprio filho. É um ato homofóbico o governo acreditar que os pais homossexuais não podem criar os seus próprios filhos”, diz.

Na cidade de Pádua, no norte da Itália, as coisas tomaram um rumo mais drástico.

Um promotor exigiu o cancelamento de 33 certidões de nascimento de filhos de casais de lésbicas emitidas nos últimos seis anos.

Todas as mães não biológicas perderão os direitos sobre os seus filhos.

Caterina é uma das meninas cujo mundo virou de cabeça para baixo.

Filha de um doador de esperma dinamarquês, ela tem cabelos loiros e olhos azuis. Suas mães, Valentina e Daniela, decidiram registrá-la em Pádua porque o prefeito da cidade estava disposto a incluir pais do mesmo sexo nas certidões de nascimento.

Mas, agora, sua filha está presa em um limbo jurídico.

"Todas as pessoas LGBT na Itália estão sob ataque. Para o governo, as nossas famílias não são famílias reais", diz Valentina, contendo as lágrimas enquanto observa a filha de 16 meses correndo atrás de coelhos no parque.

Como mãe biológica da criança, o seu direito dela está assegurado. Mas a ordem do Ministério Público é que o sobrenome da outra mãe, Daniela, seja retirado da certidão de nascimento de Caterina.

“Não poderei levar minha filha à escola, não poderei tomar decisões por ela no hospital, não poderei viajar com ela para o exterior sem a autorização por escrito da Valentina”, lamenta Daniela.

“Se Valentina morresse, a nossa filha ficaria órfã à disposição do Estado e eu também estaria perdida”, acrescenta.

As mães afetadas em Pádua se preparam para ir ao tribunal para pedir a anulação da decisão, mas pais do mesmo sexo já foram derrotados na Justiça anteriormente.

“Sentimos que o governo italiano está travando uma guerra contra os nossos filhos”, diz Valentina.

Tal como outros pais LGBTQIA+, ela acredita que o governo de direita quer impor a ideia de uma “família tradicional”.

“Estou muito revoltada. É uma injustiça total: nossos filhos estão sendo agredidos por uma questão ideológica”, afirma Daniela.

Até o momento, não há indicação de que o governo recuará.

A proposta de tornar a barriga de aluguel um crime universal irá provavelmente se tornar lei, minando o já frágil estatuto da comunidade LGBTQIA+ da Itália.

As pessoas com quem conversamos nos disseram que não querem que os seus filhos sejam tratados como cidadãos de segunda classe e que continuarão lutando pelo direito de ter uma família.

“Estamos todos furiosos”, diz Daniela.

“Isso faz o nosso sangue ferver e nos dá energia para continuar lutando. Como em todos os períodos sombrios, temos que enfrentar isso com coragem.”

As leis sobre a barriga de aluguel pelo mundo

  • Itália, Espanha, França e Alemanha estão entre os países europeus que proíbem todas as formas de barriga de aluguel.
  • Na Irlanda, nos Países Baixos, na Bélgica e na República Tcheca não é possível ir ao tribunal para fazer cumprir um acordo de barriga de aluguel se ele for violado.
  • No Reino Unido, é ilegal que terceiros façam barriga de aluguel com fins lucrativos e a gestante registrará a criança por meio da certidão de nascimento até que a guarda seja transferida por ordem judicial.
  • A Grécia aceita casais estrangeiros e proporciona proteção legal aos futuros pais (a mãe de aluguel não tem direitos legais sobre a criança). Porém, o país determina que é preciso haver uma mulher no casal que busca uma barriga de aluguel (excluindo assim casais de homens ou homens solteiros).
  • Os Estados Unidos e o Canadá permitem a barriga de aluguel para casais do mesmo sexo e os reconhecem como pais legais desde o nascimento do bebê.
  • Tentativas anteriores de proibir a barriga de aluguel no exterior, como foi proposto na Itália, falharam em outros países — incluindo Austrália e Hong Kong. “As leis eram inaplicáveis ??— não havia vontade de processar porque seria desastroso para a criança”, explica a advogada Natalie Gamble, do escritório britânico NGA Law.
  • No Brasil, a barriga de aluguel ou gestação de substituição é permitida quando a gestante é parente consanguínea de até quarto grau de um dos parceiros. Recentemente, o Conselho Federal de Medicina (CFM) também passou a permitir que "na impossibilidade de atender à relação de parentesco”, é possível pedir “ao Conselho Regional de Medicina (CRM) da jurisdição" uma autorização para que uma pessoa de fora do círculo familiar do casal gere o bebê. No entanto, o Brasil proíbe que essa prática tenha qualquer fim lucrativo. Além disso, também é permitido que pais brasileiros busquem barriga de aluguel em outros países (onde a prática com fins lucrativos seja permitida) e tragam seus filhos para cá após o nascimento.

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